Diário de Classe

O que é isto — a crítica hermenêutica do Direito?

Autores

  • Ana Julia Silva Barbosa

    é mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e Defensora Pública do Estado do Rio Grande do Sul.

  • Vinícius Quarelli

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

11 de dezembro de 2021, 8h00

Introduzir algo é sempre um desafio, pois toda explicação nasce do e no desejo de vencer uma incompreensão. Nesse contexto, pontua-se que a crítica hermenêutica do Direito (CHD) é um fenômeno complexo tal como o Direito e o que se segue é um desenho geral da Teoria. Muito mais do que prometer uma simplificação impossível, apresenta-se um texto a partir do qual o(a) leitor(a) poderá se aprofundar em temas centrais da teoria, bem como em suas reflexões. No limite, que sirva de mapa para explorá-la.

Historicamente, a CHD é uma matriz teórica fundada no ano de 2002 por Lenio Luiz Streck e que foi inicialmente denominada como Nova Crítica do Direito ainda na primeira edição da obra "Jurisdição Constitucional e Hermenêutica". Em edições que se seguiram e a partir de obras como "Hermenêutica Jurídica e(m) Crise" é que a Teoria incorporou sua denominação definitiva: crítica hermenêutica do Direito.

Seguindo essa perspectiva histórica, desde logo vale frisar o lugar da teoria em comento. A CHD não deve ser compreendida como uma sucessão da tradição positivista. Conforme Streck deixa claro em "Hermenêutica, Jurisdição e Decisão: Diálogos com Lenio Streck", sua teoria não coaduna com os pressupostos do positivismo jurídico. A discussão aqui não se trata de uma continuidade, mas, sim, de uma ruptura. Trata-se, na verdade, de um não positivismo.

Apresentando uma definição, a CHD é uma nova teoria que exsurge da fusão dos horizontes da filosofia hermenêutica, da hermenêutica filosófica e da teoria integrativa dworkiniana. Sendo que dela exsurge a tese de que há um direito fundamental a uma resposta correta, entendida como adequada à Constituição. Tem-se uma matriz teórica com fundamentos filosóficos, bem como de teoria do Direito e que sob o aspecto metodológico, desenvolve o "método" hermenêutico, isto é, realiza o revolvimento do chão linguístico em que está assentada uma dada tradição para reconstruir a história institucional do fenômeno.

No que se refere à base teórica que estabeleceu as condições de possibilidade para que Streck fundasse a CHD, cumpre destacar: 1) o giro-ontológico-linguístico; e 2) seis autores em especial: Luis Alberto Warat, Ernildo Stein, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Wittgenstein e Ronald Dworkin.

Sobre esse primeiro ponto, recomenda-se a leitura do verbete destinado ao tema no "Dicionário de Hermenêutica", de Streck, bem como o livro "Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea", de Manfredo Araújo de Oliveira. De toda forma, o giro-ontológico-linguístico foi uma ruptura paradigmática na filosofia e uma superação da filosofia da consciência. Realizou-se uma incorporação dos questionamentos da filosofia da linguagem, bem como representou o ingresso do mundo prático na filosofia. A partir desse movimento, descobriu-se que para além do elemento lógico-analítico, pressupõe-se sempre uma dimensão de caráter prático-pragmático e que o sujeito surge na linguagem e pela linguagem. Em resumo: o giro ontológico-linguístico fez com que o sujeito não fosse mais o fundamento do conhecimento e também trouxe centralidade às noções de intersubjetividade e compreensão.

Já sobre o segundo ponto e sobre os pensadores, vale registrar que Warat foi um destacado professor que contribuiu na formação de Lenio Streck e de quem a CHD legou sua crítica ao senso comum teórico. Stein por sua vez foi um dos principais intérpretes de Heidegger e Gadamer no Brasil, dialogou com Streck e influiu na incorporação de elementos estruturais da hermenêutica filosófica e da filosofia hermenêutica.

No que diz respeito aos elementos estruturais, Heidegger (filosofia hermenêutica) e Gadamer (hermenêutica filosófica) se destacam. O primeiro foi um autor que construiu uma espécie de terceira cadeira que se estabelece entre os dois grandes paradigmas e que explicitou que o horizonte do sentido é dado pela compreensão [1]. Em relação ao segundo autor, Gadamer postulou que a filosofia não é lógica, que a filosofia não é ornamento e que a filosofia é, sim, condição de possibilidade, bem como que o ser que pode ser compreendido é linguagem [2].

Se autores como Heidegger e Gadamer contribuíram para o estabelecimento de temas como o da historicidade e linguisticidade da compreensão no ambiente teórico da filosofia continental, Wittgenstein, por sua vez, introduziu teses paralelas às da hermenêutica ao desenvolver ideias como a dos jogos de linguagem e, nesse sentido, da intersubjetividade linguística no âmbito da filosofia analítica. Através de sua crítica à noção de linguagem privada, exemplificada na alegoria do besouro na caixa [3], Wittgenstein aponta para o fato de que o processo de aquisição da linguagem é algo constitutivo do próprio desenvolvimento da consciência. Essa crítica foi decisiva não apenas para a filosofia da mente, mas para a epistemologia em sentido geral.

Já Dworkin foi um autor célebre por teses como a do romance em cadeia, juiz Hércules e defensor da coerência e da integridade no Direito. Sobre este último, a CHD incorpora a ideia de uma teoria da decisão que necessariamente respeite a coerência e integridade do Direito, bem como expande seus horizontes para construir uma proposta teórica capaz de lidar com a complexidade de países de modernidade tardia como o Brasil.

Fazendo um breve parênteses, acrescenta-se que a CHD não tem a intenção de "heideguerizar", "gadamerizar" ou tampouco "dworkinizar" o Direito. Ao contrário, tem-se uma teoria que assume um lugar de fala e que não busca dissimular o que propõe. O que não se pode pensar é que o Direito possa caminhar ao largo da filosofia.

Superada toda essa contextualização sobre a teoria, conclui-se se tratar de uma proposta eminentemente elaborada e que ao mesmo tempo é capaz de desenvolver críticas e propostas singulares. Segue-se com uma breve relação.

Entre outras questões, são objeto de crítica da CHD: positivismo jurídico desde suas raízes mais filosóficas, solipsismo, ativismo judicial, livre apreciação da prova, livre convencimento motivado, panprincipiologismo, senso comum teórico dos juristas, ensino jurídico, precedentalismo, discricionariedade, predação do direito e as recepções equivocadas em geral (vide ponderação alexyana e neoconstitucionalismo).

Por outro lado, concebeu diversas propostas como a resposta adequada à Constituição (e seus cinco princípios), as três perguntas fundamentais para se identificar ativismo judicial e judicialização [4], as seis hipóteses em que o Poder Judiciário pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei [5], o artigo 926 do CPC (enquanto codificação de um direito que se pretende íntegro e coerente) e o conceito de constrangimento epistemológico, bem como também firmou o "método" hermenêutico e consolidou-se enquanto uma proposta teórica que é a mais citada nas pesquisas em Filosofia do Direito na América Latina.

Ainda que várias críticas e propostas realizem desenvolvimentos importantes, escolheu-se explanar sobre três: constrangimento epistemológico, críticas ao positivismo jurídico e a proposta da resposta da resposta adequada à Constituição.

Sobre o constrangimento epistemológico, trata-se de um conceito cunhado por Streck e que se soma àquelas ideias que buscam criticar uma dogmática vazia em propostas e conteúdo (vide a crítica de Warat ao senso comum teórico dos juristas). Constranger epistemologicamente significa colocar em xeque decisões que se mostraram equivocadas e no fundo também é um modo de dizer que a doutrina deve (voltar a) doutrinar. Postula que o contentamento com posturas meramente descritivas incorre em um fatalismo que meramente reproduz as decisões dos tribunais como se corretas fossem e que sacramentam legislações e decisões judiciais em geral.

Em oposição à dogmática vazia, assevera que a dogmática jurídica deve ter um papel prescritivo e de enfrentamento contra manifestações arbitrárias. O que enfim se propõe é que a doutrina não seja leniente com negacionistas epistêmicos e com decisões voluntaristas-subsuntivas. No limite, ninguém tem o direito de dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa: seja essa pessoa juiz, ministro, procurador etc.

Passando para as críticas ao positivismo, registra-se aqui um especial convite a leitura do respectivo verbete. Trata-se de uma tradição inerentemente complexa e ainda muito mal compreendida. Isso posto, segue-se com a apresentação de algumas das reflexões da CHD e dos seus esforços de superar vulgatas, álibis teóricos e quejandos.

Streck desvela insuficiências teóricas que deitam raízes desde as vertentes mais primitivas do positivismo francês (escola exegética), alemão (jurisprudência dos conceitos) e inglês (jurisprudência analítica). Demonstra que o principal problema desse primeiro momento do positivismo jurídico diz respeito à análise sintática. De acordo com essa concepção, a interpretação do Direito se daria a partir da simples determinação da conexão lógica dos signos que compõem os códigos. Desse modo, ao promover uma grave confusão entre texto e norma, lei e direito, revela-se incapaz de conter toda a complexidade da realidade.

No plano metodológico, as críticas da CHD à tradição positivista direcionam-se à pretensão de descrever o Direito de forma neutral e externa, prendendo-se ao conceito de uma verdade correspondencial. Contudo, não é possível, do ponto de vista fenomenológico, representar o mundo independentemente de valorações. Nesse ponto, incumbe registrar que o positivismo jurídico tem como pressuposto essencial a separação entre sujeito e objeto, olvidando-se que a realidade já nos aparece antes disso.

Ademais, a crítica se pauta na cisão entre raciocínios jurídicos (teoréticos) e raciocínios práticos (aplicação judicial). Streck esclarece que o positivismo jurídico ignora a dupla estrutura da linguagem. Como se fosse possível partir de um grau zero de sentido. Uma vez que a compreensão consiste no próprio modo de ser do ser humano, tem-se uma antecipação de sentidos que implacavelmente interpela qualquer tipo de interpretação, qual seja, a pré-compreensão. Esta última funciona como fator de racionalidade, conformando o horizonte interpretativo do jurista a partir do entendimento de que a linguagem é condição de possibilidade e que não está à nossa disposição, posto que é fundamentalmente intersubjetiva. Logo, não há como separar a interpretação da aplicação. O texto jurídico só pode ser entendido a partir de sua aplicação no caso concreto e o Direito só é no seu tempo.

Outra grande crítica da CHD é a despreocupação do positivismo quanto ao ato decisório e a uma teoria da decisão. A corrente de pensamento positivista reconhece que as normas de ordenamento jurídico não abarcam todas as hipóteses de aplicação e, por isso, existiriam casos difíceis, que não seriam solucionáveis pelas normas jurídicas existentes. Segundo Kelsen, nessas situações, a solução ficaria a cargo dos juízes que, por um ato de vontade, estariam autorizados a escolher a interpretação que lhes conviesse, preenchendo o espaço deixado pela moldura da norma. Do mesmo modo, Hart defende que há uma textura aberta no Direito e que, portanto, na zona de penumbra os juízes poderiam decidir com base em juízos discricionários. Assim, o decisionismo kelseniano e o discricionarismo hartiano dão azo ao solipsismo e às arbitrariedades do intérprete. A hermenêutica, em sentido diverso, compreende o Direito como um fenômeno inserido em uma intersubjetividade racional, suplantando as visões individuais de cada intérprete.

Nesse contexto, a CHD propõe uma teoria da decisão que alcance a resposta adequada à Constituição. Em primeiro lugar porque a interpretação do Direito em um Estado democrático de Direito não é compatível com esquemas interpretativos-procedimentais que conduzam a múltiplas respostas. Tal como Dworkin (Law as Integrity), parte-se da ideia do Direito como atividade interpretativa, situando-o em um contexto intersubjetivo de fundamentação como forma de assegurar a coerência e a integridade da decisão, sem perder de vista a responsabilidade política do julgador na promoção da igualdade. Logo, o juiz deve decidir pela interpretação que melhor reflita a estrutura das instituições e decisões da comunidade.

Além disso, é imprescindível que o intérprete compreenda o sentido da Constituição, a partir do círculo hermenêutico, e não como um elemento objetivo, separado do intérprete. As condições de possibilidades para que o intérprete compreenda o texto constitucional implicam a existência de uma pré-compreensão sobre a totalidade do sistema jurídico-político-social, da qual depende a força normativa da Constituição. Nesse espectro, a baixa compreensão acerca do sentido da Constituição acarretará sua baixa aplicação e, por conseguinte, haverá um déficit à efetivação dos direitos e garantias fundamentais.

Assim, a proposta da CHD é a resistência através da Constituição como instância de autonomia do Direito, que está sob constante ameaça dos predadores endógenos (discricionariedades judiciais) e exógenos (política, discurso corretivo da moral e análise econômica do Direito). Busca-se o resgate do papel transformador do Direito pela obrigatoriedade de que as decisões judiciais estejam sedimentadas nos compromissos fundamentais que guarnecem a política de uma comunidade.

Dentro de uma estrutura democrática, o Direito deve ser uma prática de sentidos compartilhados. A decisão judicial não é um ato individual, e, sim, fruto de um debate público. A resposta adequada à Constituição é, portanto, aquela que respeita a autonomia do Direito, evita a discricionariedade e segue a coerência e a integridade do Direito a partir de uma fundamentação minuciosa.

Finalmente, apresenta-se aqui um roteiro para que o(a) leitor(a) possa expandir o horizonte da sua compreensão. Para além dos livros e verbetes mencionados, sugere-se as seguintes leituras. Livros: "Hermenêutica Jurídica e(m) Crise", "Verdade e Consenso", "O que é isto — decido conforme minha consciência?", "Precisamos falar sobre direito e moral", "Lições de Crítica Hermenêutica do direito", "Jurisdição Constitucional e Hermenêutica", "Jurisdição e Decisão: Diálogos com Lenio Streck". Verbetes: constitucionalismo contemporâneo, autonomia do direito, positivismo, constrangimento epistemológico e resposta adequada à Constituição (resposta correta).


[1] Sugestão de livro: "Ser e Tempo"

[2] Sugestão de livro: "Verdade e Método"

[3] Nesse sentido, o §293 de "Investigações filosóficas"

[4] Impressiona que o Judiciário e a doutrina continuem a cometer o equívoco — cotidiano — de confundir os dois conceitos. A CHD de Streck já de há muito demonstra, com acerto de mais de 95%, que é possível fazer a distinção entre decisões ativistas (equivocadas) e as que judicializam a política, que são contingentes e até mesmo desejáveis. Há inúmeros textos de Streck que demonstram isso.

[5] Despiciendo dizer que a aplicação desses critérios diminuiria, consideravelmente, o grau de arbitrariedade-discricionariedade nas decisões judiciais

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    é mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e Defensora Pública do Estado do Rio Grande do Sul.

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    é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-graduando em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst e membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

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