Opinião

A busca de justiça e as manifestações judiciais equivocadas por fat fingers

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10 de dezembro de 2021, 21h22

Em abril de 2018, a Samsung Securities Co., uma das maiores corretoras da Coréia do Sul, ia pagar dividendos a dois mil funcionários um valor de mil wons (93 centavos de dólar dos Estados Unidos, na cotação da época) por ação, sob um plano de compensação da empresa. Entretanto, por engano ou erro de digitação, a empresa transferiu mil ações da empresa cada. As coisas pioraram quando 16 funcionários venderam as ações, provocando um prejuízo de mais de US$ 100 milhões e uma desvalorização de 12% das ações em alguns minutos.

No famoso caso sul-coreano citado, o prejuízo não foi maior porque o sistema financeiro permite a correção do equívoco. Esse problema é comum no mercado financeiro e tem até um nome para esse erro. É o chamado fat finger, pois muitas das incorreções ocorrem por erro de digitação.

E se, ao invés de ter sido no mercado financeiro, o lapso fosse em um processo eletrônico, o que ocorreria? Haveria preclusão consumativa ou o advogado poderia corrigir o deslize? Neste pequeno texto, pretendemos abordar essa questão a apresentar soluções e peculiaridades dessa situação.

De largada, não se descuida de que o processo civil é uma ciência em si mesma, laborada e desenvolvida ao seu estado de arte a partir de doutrinadores de escol ao longo do tempo. De outra quadra, também não se descuida que o processo é meio para atingimento de busca de Justiça e da reparação de desvios sociais, sejam eles realizados por particulares, sejam eles realizados pelo Estado.

Com as reformas promovidas na legislação processual, de modo especial com o advento do atual Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15), houve uma minimização das formalidades instrumentais do procedimento, podendo citar como exemplo a intimação para apresentação de depósito recursal mesmo tendo havido a interposição da apelação em momento anterior sem que seja considerada deserção.

É nessa perspectiva que o texto busca a reflexão e disseminação da mitigação da preclusão consumativa, no caso de flagrante erro na apresentação de manifestação (fat finger[1], mesmo sabendo que se trata de um fundamento bastante caro ao sistema de inteligência do processo civil pátrio.

Vale recordar que a ideia (por trás) da preclusão consumativa é a que  uma vez manifestada a opinião de qualquer das partes  ela se sedimente e não possa  ao menos naquele momento  ser alterada a fim de evitar que haja tumulto nos autos e que a marcha processual siga o seu rumo.

Voltando aos antigos cadernos processuais, especialmente para os juristas mais novos, a petição física era protocolizada em um setor de protocolos, normalmente uma sala fora da vara e acompanhada por um funcionário da Justiça que apunha data e assinatura, conferindo a tempestividade da manifestação. Esse documento seguia  muitas vezes no dia seguinte  para a vara indicada na petição (que devia possuir o número do processo sob pena de não ser juntada) e que exigia a tarefa de outro serventuário para identificação do processo correspondente, numeração das páginas, juntada ao caderno e, por fim, elaboração de termo de juntada, devolvendo o processo à prateleira correspondente. Se houvesse um erro nesse processo, como era decorrente de uma atividade do Judiciário, a correção era de ofício e sem consequências processuais.

Imaginar que  para que o processo ficasse limpo e escorreito  a retirada de uma manifestação em desordem com o processo exigia pedido do autor, despacho judicial fundamentando a medida, a confecção de termo de desentranhamento e todos os demais procedimentos envolvendo a devolução da manifestação equivocada.

Pois bem, o processo se tornou eletrônico, menos formalista, mas a preclusão consumativa — estaca basilar  permaneceu sem reavaliações. Será que deveríamos usar a mesma lógica para situação tão diversa?

Pois bem, o processo eletrônico na busca de um caminho célere tem o seu custo e a realidade deve se adequar a essa nova exigência constitucional. Desse modo, o que se propõe é uma mitigação da preclusão processual sem que haja afetação da segurança jurídica e que tal medida encontre o seu fim: um processo justo e igual para as pessoas que litigam buscando a mesma tutela.

Em linha de raciocínio, as manifestações, sobretudo em lote e de responsabilidade de patronos que podem manusear até uma centena de processos em único dia em nada se assemelham, repita-se, com aquela confecção artesanal de outrora. Aumenta-se, assim, o risco de erro, equívoco, de manifestação estranha ao objeto dos autos ou ao momento processual. Esse aumento do risco não deveria impactar o custo processual das partes, sob pena de gerar injustiças.

Entende-se bem o valor da preclusão consumativa, isto é, de que o processo caminhe para frente. Isso, todavia, deve se coadunar com a forma que o processo é tratado hoje em dia.

Postas todas as premissas acima, pergunta-se: é justo que o jurisdicionado seja prejudicado por um erro do seu patrono quando o processo eletrônico exige que este mesmo patrono tenha de se manifestar inúmeras vezes e que  sendo ele humano  obrigatoriamente errará?

Com a tecnologia, houve mudança em quase todos os setores da sociedade. Os mercados financeiros mudaram suas operações de leilões presenciais, com manifestações de vontade de forma inequívoca, para pregões eletrônicos com risco de erros de digitação (fat fingers). Assim, houve uma flexibilização de irreversibilidade das ordens (de compra ou venda). Quando se muda a realidade (premissas), as regras (conclusões) devem ser distintas. O mundo jurídico deve fazer o mesmo, mitigando a ideia da preclusão lógica, para albergar a possibilidade de correção de erros, reduzindo injustiças.

Inserido nesse contexto, isto é, de que o processo deve ser equânime para todos, que tem de caminhar para frente, que tem de ser célere, resta uma solução para a promoção da justiça: a mitigação da preclusão consumativa. Tendo havido manifestação da parte, imperativo que ela se solidifique em busca da segurança jurídica. Mas e se a manifestação não corresponder à vontade? Que solução o novo processo eletrônico poderia dar a esse desencontro entre a vontade e a sua expressão?

Até na plataforma mais famosa atualmente (Gmail) de envio de mensagens eletrônicas (e-mails) já é possível cancelar o envio, mesmo depois de enviado, de igual forma nos aplicativos de mensagem (Whatsapp, Telegram e outros), de sorte que já existe solução similar para as manifestações de vontade da esfera civil.

A solução encontrada pelos autores deste texto é que as plataformas processuais (PJE, E-proc do TRF da 4ª Região) possuam um botão "desfazer petição" que fique válido por um tempo exíguo (três ou cinco minutos por exemplo), de modo que a manifestação seja apagada dos autos por um simples comando, desde que dentro do prazo processual.

Vale lembrar que essa possibilidade existe para os magistrados de corrigir alguns documentos, mesmo depois de já ter ocorrido o carregamento do arquivo.

Afinal de contas, quem nunca digitou algo errado atire a primeira pedra.

 


[1] Utilizou-se a terminologia — na falta de conhecimento dos autores de uma no ramo jurídico — emprestada do mercado financeiro que se traduz no erro de digitação, muito comum quando seria uma ordem de compra a realização de uma ordem de venda ou o acréscimo de um zero a mais (do lado direito da vírgula) em uma compra definida de uma quantidade de ações.

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