Improbidade em debate

A reforma da improbidade chegou ao STF

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10 de dezembro de 2021, 12h55

Nesta semana, foi ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.042 pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal. Distribuída à relatoria do ministro Alexandre de Moraes, na ação são objeto de questionamento as alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021 no que dizem respeito à legitimação exclusiva do Ministério Público para aviamento de ação de improbidade.

Spacca
Resumidamente, os argumentos invocados pela autora consistem em: 1) inconstitucionalidade formal por ofensa ao pacto federativo, tendo norma federal disposto sobre aspecto associado à autonomia dos Estados e às atribuições de suas advocacias públicas; e 2) inconstitucionalidade material por violação ao princípio da vedação ao retrocesso social e ao direito fundamental à probidade.

Tendo tomado conhecimento da referida ação, buscamos revisitar o percurso que culminou na sobredita legitimidade exclusiva como opção adotada pela reforma operada pela Lei nº 14.230/2021. No ponto, a mudança já se fazia presente desde o anteprojeto gestado por comissão de juristas, merecendo justificativa pelo deputado federal Roberto de Lucena nos seguintes termos:

"(…) Entendeu-se por bem manter a legitimidade exclusiva do Ministério Público para a propositura das ações de improbidade administrativa. Isso se deu por consideração à natureza do provimento requerido no seio de ações desta natureza.
Não é razoável manter-se questões de estado ao alvedrio das alterações políticas e nem tratar questões de ato de improbidade como se administrativas fossem. Há um viés político-institucional que deve ser observado, o que torna salutar e necessária a legitimação exclusiva.
Obviamente, as ações de ressarcimento são de titularidade do ente público lesado, e mesmo com a titularidade exclusiva para a ação de improbidade do Ministério Público, os entes não perdem a legitimidade para as ressarcitórias" [1].

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Ainda no âmbito da Câmara dos Deputados, o tema mereceria atenção destacada da parte do relator, deputado federal Carlos Zarattini, que, diante de emendas parlamentares pretendendo restabelecer a legitimidade concorrente, reforçou a conveniência de que o viés sancionador de que se reveste a improbidade administrativa se cingisse a uma atuação ministerial, mais infensa a desvirtuamentos políticos:

"As Emendas nºs 2 e 3, dos deputados Tadeu Alencar e outros e Fábio Trad e outros, objetivam a reintrodução, no Projeto de Lei, da legitimidade ativa das Advocacia Pública par proposição de Ações de Improbidade. Com o devido acatamento à manifestação exarada, o regime das sanções previstas na Lei de Improbidade encerram restrições a direitos fundamentais de cidadania, como a suspensão dos direitos políticos dos agentes considerados ímprobos. Por esta razão, na mesma linha adotada no sistema penal, é imprescindível que a atuação seja feita por meio de órgão legitimado e isento. Ademais, a suspensão de direitos políticos impacta diretamente as disputas eleitorais, razão pela qual a manutenção da exclusividade da titularidade ativa no Ministério Público de modo a impedir a intervenção de agentes políticos no manejo de ações de improbidade" [2].

No Senado Federal não foi diferente, tendo o senador Weverton, confrontando com novas tentativas de ampliação da legitimação pela via de emendas, insistido numa perspectiva mais limitada. Interessante notar, nada obstante, a sofisticação do raciocínio empreendido pelo senador para o fim de buscar imunizar a opção a questionamentos sobre sua constitucionalidade:

"Do ponto de vista da constitucionalidade material, porém, vislumbro a necessidade de saneamento da proposição. Com efeito, dentre as principais alterações trazidas pelo Projeto de Lei nº 2.505, de 2021, está a restrição da legitimidade ativa ad causam para propor ações civis públicas de improbidade administrativa, limitando-a apenas ao Ministério Público competente, o que não se afigura, à primeira vista, compatível com o regramento constitucional.
Atualmente, na legislação em vigor, a legitimidade do Ministério Público é concorrente com a da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na qualidade de pessoa jurídica interessada. Acontece que, para além da previsão legal, ou seja, do disposto no artigo 17 da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, esse atributo jurídico deferido aos entes federativos decorre, na atual conformação da matéria, da própria Constituição.
Isso porque o §1º do artigo 129 da Constituição dispõe expressamente que a legitimação do Ministério Público para as ações civis a ele incumbidas não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, de modo que, de princípio, o Projeto de Lei nº 2.505, de 2021, padece de inconstitucionalidade ao excluir a legitimidade das pessoas jurídicas interessadas — União, Estados, Distrito Federal e Municípios , isto é, como terceiros, para fins do referido dispositivo constitucional. Esse vício, contudo, não impede o aproveitamento da opção política do legislador ordinário em limitar a legitimidade ativa da ação de improbidade, como proposto no Projeto de Lei nº 2.505, de 2021.
Referindo-se o §1º do artigo 129 da Constituição às ações civis (públicas), a alteração da natureza jurídica das ações de improbidade administrativa na legislação, reconhecendo-as como ações sancionatórias, de caráter repressivo, afasta a referida condicionante constitucional da legitimação para a causa a terceiros. Na verdade, essa distinção conceitual, sem maior rigor técnico, é implicitamente reconhecida no Projeto de Lei nº 2.505, de 2021, ao especificar que a ação de improbidade não é a via própria de controle de legalidade de políticas públicas, devendo a responsabilidade de entes públicos e governamentais por violações a interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos ser apurada, processada e julgada nos termos da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.
A definição explícita, clara e incontroversa de que as ações de improbidade administrativa, destinadas à imposição de sanções pessoais, não se confundem com as ações civis públicas, cuja vocação é a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, esvazia eventual pecha de inconstitucionalidade do Projeto de Lei nº 2.505, de 2021. Para tanto, propõe-se emenda que altere o §5º do artigo 1º da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, na forma dada pelo artigo 2º do Projeto de Lei nº 2.505, de 2021, de modo que o bem jurídico tutelado pelos atos de improbidade não seja o patrimônio público e social  hipótese em que se atrairia, de fato, o campo das ações civis públicas , mas sim a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, por sua vez, que atente contra sua integridade" [3].

O racional sustentado no excerto acima foi de fato perspicaz: antevendo possíveis questionamentos — como aquele enunciado na citada ação direta — no sentido de que a Constituição asseguraria amplamente, também às entidades públicas, a tutela do patrimônio público e social, o recorte sugerido no parecer foi no sentido de realçar na improbidade seu caráter sancionatório, estremando-a da defesa pura e simples de direitos difusos e coletivos, a serem postulados pela via da ação civil pública.

Dito ainda de outro modo, rechaçando a fusão que a práxis findou por promover entre ação de improbidade e ação civil pública, o aludido parecer resgatou a distinção entre os instrumentos para reservar à improbidade viés eminentemente punitivo e creditar à ação civil pública um escopo de controle de políticas públicas, de implementação de direitos sociais e de tutela de direitos transindividuais em sentido amplo (meio ambiente, consumo, educação etc.). A engenhosa construção teria o condão, então, de conciliar uma legitimidade exclusiva ministerial, órgão titular da ação penal e ponta de lança do aparato punitivo estatal, com o reconhecimento do papel dos entes federativos de somar-se à defesa de direitos em perspectiva macro, incluída a proteção do erário. E eis no ponto outro trecho do parecer, emblemático:

"É importante ressaltar, por fim, que a exclusividade do Ministério Público, na forma do Projeto de Lei nº 2.505, de 2021, para propor ação de improbidade administrativa  com base no §4º do artigo 37 da Constituição , não exclui o direito das pessoas jurídicas de direito público interno ajuizarem as competentes ações de ressarcimento, cujo fundamento de validade constitucional é outro, o §5º do artigo 37 da Constituição, e que, nessa qualidade, a respectiva pretensão já foi reconhecida como imprescritíveis pelo Supremo Tribunal Federal  STF, em sede de repercussão geral (RE nº 852.475, Red. Min. Edson Fachin, julgado em 08/08/2018). (…)
Deveras, não se pode confundir a tutela da probidade administrativa, objeto da respectiva ação sancionatória (de improbidade), com a proteção do patrimônio público e social, mediante ação civil pública, por terceiros ou pela própria pessoa jurídica de direito público, como nas ações de ressarcimento referidas anteriormente.
Outra nota final de relevância é que a legitimidade exclusiva do Ministério Público, como proposta, não mitiga ou inibe a atuação das entidades públicas em esforços para a responsabilização de atos contra a Administração Pública em outras dimensões da tutela da integridade do patrimônio público e social, como é o caso dos acordos de leniência, cuja titularidade prevista para tais entes, prevista no artigo 16 da Lei nº 12.846, de 2013, não se derrogada pelas disposições legais a inovarem o ordenamento jurídico com o Projeto de Lei nº 2.505, de 2021".

O indigitado parecer aparentemente previu os fundamentos da ação direta de inconstitucionalidade antes mencionada, rebatendo em prolepse boa parte de seus argumentos. De nossa parte, naquilo em que a inicial da ação inovou no debate, temos alguma ressalva quanto às teses de inconstitucionalidade formal e material.

A uma, no que toca à suposta intromissão da União na esfera de autonomia dos estados, não deixa de ser curioso que a previsão de legitimidade na redação anterior da Lei nº 8.429/1992, que contemplava os estados, restasse inatacada, quiçá porque a eles interessante — dito de outro modo, se a eliminação de legitimação invade autonomia, a previsão de legitimação igualmente invadiria, como aliás a própria Anape ataca na ADI 6.915 quanto às disposições da Lei nº 14.133/2021 [4].

A duas, como já pudemos sustentar neste espaço, não vislumbramos o tal direito fundamental à improbidade como parâmetro válido de controle de constitucionalidade e nem cremos que uma maior restrição à legitimação para o aviamento da ação de improbidade importe em retrocesso ao sistema de combate à corrupção — dimensão e controle amplíssima, como a ação popular, não assegura um controle mais ou menos qualificado que instrumentos mais restritos, como a ação de improbidade.

A três, reputamos que o escopo de atuação das entidades federativas segue adequadamente prestigiado pela via de ações de ressarcimento em geral, ações fundadas na Lei Anticorrupção, possibilidade de celebração de leniência, controle de contas, processos disciplinares e quejandos, de fato mais se aproximando pretensões puramente sancionadoras da esfera ministerial.

Seja como for, o dado objetivo de realidade é que a reforma operada pela Lei nº 14.230/2021 teve o primeiro questionamento sobre sua constitucionalidade lançado ao debate, inaugurando teatro de discussões na mais alta corte do país.

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