Opinião

Precisamos falar mais sobre as vítimas abandonadas

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9 de dezembro de 2021, 12h04

"Diga o teu endereço
É uma cama de jornal

Sob o teto de estrelas

Sobre o solo nacional"
(trecho da canção "Cruz do Mundo", de Helio Graça-Filho)

Maria das Dores acaba de completar 18 anos. Seu aniversário não teve bolo, nem festa. Fugiu de casa e mora na rua desde os 13 porque era abusada pelo padrasto. Chegou a contar para a mãe, que não acreditava até o dia em que viu com seus próprios olhos.

Quando isso aconteceu, a mãe tentou acudi-la. Aos vizinhos, impossível não ouvir os gritos. Porém, nada fizeram. O resultado é que as duas acabaram espancadas e, naquela noite, vestidas de hematomas, dormiram abraçadas. Foi o último abraço que mãe e filha se deram.

É que Das Dores acordou na manhã seguinte determinada a dar um basta naquele pesadelo. Com a roupa do corpo, saiu pela porta de casa. Perambulou por aí e acabou chegando a um posto de gasolina repleto de caminhões. Ali conseguiu uma carona que a levasse para longe.

Lá se vão cinco anos sem família, sem escola, sem trabalho, sem renda, sem dignidade. Tempo passado nas ruas, alimentando-se de esmolas e sobras que encontra nas lixeiras. Nunca escolheu parceiro, sempre foi escolhida. Duas gravidezes interrompidas. Ora invisível, ora desprezada.

Das Dores agora é maior de idade e aceitou contar sua história. Afinal, publicações só revelam os nomes das vítimas mediante seu consentimento. Ou então quando estão mortas.

Indagada sobre sua situação, disse não ter arrependimento e que está melhor assim.

Nossa personagem ficcional Maria das Dores tem sua existência inspirada em milhares de meninas que, por serem vítimas dentro de seus lares, fogem e são empurradas para a escola da vida.

Renata Mena Brasil do Couto, assistente social e pesquisadora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (Ciespi), confirma essa realidade: "A violência, os abusos e a negligência no contexto familiar são os principais motivos que levam crianças e adolescentes a buscar nas ruas uma alternativa de vida".

Das Dores simboliza o sofrimento coletivo dessas tantas jovens em condição de fragilidade familiar e, para que essas iniquidades sejam reduzidas, não podemos nos omitir nunca, pois, como aponta Irene Rizzini, fundadora do Ciespi, "quanto mais cedo se agir para romper com ciclos de violência e desproteção, melhor".

Portanto, precisamos falar mais sobre isso. Conscientizar as pessoas para que fiquem atentas aos mínimos sinais de abuso e, ao percebê-los, tomem providências. Seja com os seus, com os outros, com quem for.

Então, pode ser que, no futuro, histórias como a de Maria das Dores existam apenas na ficção. Mas, se acontecerem, que o crime não acarrete o desamparo daquela que mais precisa de proteção, a jovem vítima.

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