Opinião

A Lei Mariana Ferrer e as suas restrições ao direito à prova das partes

Autores

  • Jimmy Deyglisson

    é presidente da Abracrim-MA discente do LLM em Direito Penal econômico pelo IDP especialista em ciências penais e advogado criminalista.

  • Carlo Velho Masi

    é advogado criminalista vice-presidente da Abracrim-RSdoutorando e mestre em Ciências Criminais (PUC-RS) especialista em Direito Penal e Política Criminal (UFRGS) Direito Penal Econômico (Universidade de Coimbra) Ciências Penais (PUCRS) e Direito Penal e Processo Penal (Unisinos) e coordenador estadual adjunto do IBCCRIM no Rio Grande do Sul.

9 de dezembro de 2021, 6h33

Na lição de Ráo, a elaboração da lei resulta de uma técnica especial própria, denominada técnica legislativa, a qual fornece regras segundo as quais as normas escritas se formulam, exprimem e se agrupam [1].

Citado pelo jurista paulista, em alusão à atividade legislativa em Roma, Edouard Cuq, autor do célebre "Manuel des institutions juridiques des Romains", atribuía àquela técnica uma tríplice finalidade, qual seja: "a) conferir uma precisão suficiente às regras de direito, para que não houvesse hesitação ao serem aplicadas; b) destacar os princípios gerais; c) facilitar a compreensão e o progresso do direito, pela classificação sistemática de suas disposições por uma terminologia rigorosa" [2].

A recente modificação do Código de Processo Penal, trazida pela Lei 14.245/21, que, na nebulosa intenção de proteger vítimas e testemunhas de constrangimentos em processos judiciais durante a instrução, veda o transbordar da pertinência temática e a utilização de linguagem ou informações que as ofendam, descumpre todas as finalidades da técnica acima recomendada.

Chamada de Lei Mariana Ferrer, tal como outras legislações nominadas a partir de personagens alçadas pela mass media à condição de "exemplos", com uma forte carga punitivista e restritiva de direitos  especialmente do direito de defesa , em verdade, trata-se de mais uma manobra que se vale do Direito Penal e do Processo Penal para tentar impor comportamentos do alto para baixo e aumentar o controle estatal, ampliando ainda mais o poder de punir.

Em primeiro lugar, conduz o intérprete a uma tautologia entre a realidade e a pretensão teorética, pois a obrigação de manter pertinência aos fatos do processo durante a instrução é algo que já se recomenda desde a lógica elementar e se pratica desde sempre.

Todos os atores processuais são fiscais uns dos outros no processo e qualquer destes que, em sua atuação, desborde dos fatos discutidos, poderá ser advertido. Veja-se que, por exemplo, incumbe ao juiz, de ofício ou por provocação, reprimir postulações ou provas protelatórias, irrelevantes ou impertinentes (CPC, artigo 139, III; CPP, artigo 400, §1º, e artigo 411, §2º).

Portanto, uma vez que é obrigação legal estendida a juízes, promotores e advogados, já que todos produzem prova (não entremos no mérito quanto à produção de prova pelo juiz no processo penal, já que, em que pese a discordância doutrinária, o código vigente autoriza), é evidente que se trata de uma lei para somente dizer o que já havia sido dito e que já estava clarividente como o sol.

Em segundo lugar, a ofensa à dignidade da vítima ou testemunha é reprimida pela legislação vigente, pois prevista a indenização por danos materiais e morais a qualquer que se sinta ultrajado por conduta de outrem (CF, artigo 5º, incisos V e X; CC, artigos 186, 927, 953 e 954), bem como estatuída pena criminal à ofensa contra honra (CP, artigos 138, 139 e 140).

Mas não é só isso. A desobediência à boa técnica legislativa está contida também na imprecisão linguística da modificação, pois os termos utilizados são deveras amplos, de tessitura significativa alargada, aptos a encampar inúmeras situações que não se amoldam à ofensa da dignidade.

Se antes era necessária a aplicação do devido processo para se chegar à conclusão de que alguém, de fato, ofendeu a dignidade de outra pessoa, com toda a repercussão punitiva daí decorrente, agora basta a manifestação da parte/testemunha ou do juízo, que, numa leitura açodada dos fatos, muitas vezes levado pela carga emotiva comum em toda audiência, poderá concluir pela existência da ofensa, sem qualquer possibilidade de defesa daquele que foi acusado.

Em terceiro lugar, a reforma não se ateve às complicações da aplicação da lei processual penal no tempo. Imagine-se a hipótese de que, antes da entrada em vigor da referida lei, a instrução de primeira fase do júri de determinando processo se deu com inúmeras informações negativas a respeito da vítima. Indo o julgamento para o plenário, estará o defensor impedido de citar ou utilizar a prova produzida na primeira fase, uma vez que a regra para aplicação da norma penal processual no tempo é o tempus regit actum, o que, de regra, impediria a utilização de tais informações? A seguir a lógica da lei, sim, a mordaça estará posta.

Nesse ponto, indo mais adiante, a vedação específica da possibilidade de menção a "circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos" dirigida a esses atores é restrição extremamente ampla e genérica, que causará imprevisibilidade e elevada insegurança jurídica para todos.

Na reconstituição fática e na apuração dos motivos do crime, não raro as partes necessitam apurar fatos e informações que só estão ligados ao caso concreto de maneira indireta. Seria a hipótese clássica, por exemplo, de uma acusação de estupro em que o acusado alega a falsidade do relato da vítima em função de motivações pessoais da mesma para prejudicá-lo. A lei não pode simplesmente proibir a defesa de fazer menção a tais elementos, pressupondo que eles não estão relacionados ao fato em si, mas dizem respeito à vida pregressa da ofendida, por exemplo. Inclusive, toda prova testemunhal defensiva poderá ser destinada a provar elementos que demonstrem a falsidade das acusações, valendo-se de circunstâncias que ainda não constam do processo. Em um crime contra a vida, estaria a defesa impedida de fazer referência a antecedentes da vítima para sustentar que possuía outros inimigos?

Os processos criminais são, por excelência, ambientes férteis à apuração de conjunturas correlacionadas ao fato principal e que são, sem a menor dúvida, fontes a serem exploradas pelas partes. Vedaria a lei, por exemplo, que o promotor indagasse a vítima ou as testemunhas sobre situações que não estejam delimitadas na denúncia e que possam levar ao descobrimento de outros crimes? Proibir isso contrastaria com a possibilidade de o Ministério Público aditar a denúncia a qualquer tempo, durante a instrução probatória. A propósito, uma das técnicas muito utilizadas pela acusação no Tribunal do Júri é a menção a antecedentes do acusado, o que, até então, não encontrava nenhuma possível vedação legal.

Como se percebe, embora sob uma justificativa em tese louvável, as alterações promovidas dão margem ao tolhimento do direito à produção probatória e do direito ao contraditório, ao arbítrio do juiz. Na perspectiva do acusado, as novas restrições, com toda certeza, afrontam o direito constitucional à ampla defesa, na medida que o constituinte expressamente referiu que tal garantia será assegurada "com os meios e recursos a ela inerentes". Para o amplo exercício da defesa até mesmo a prova ilícita, sob certas condições, pode ser admitida. Lembremos que, a amparar a previsão constitucional, também a Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura que todo ser humano acusado de um ato delituoso tem direito a um "julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa" (artigo 11). E mais: entre as garantias judiciais asseguradas a toda pessoa acusada de um delito previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos estão a concessão dos "meios necessários à preparação de sua defesa" e o direito de inquirir testemunhas e obter o comparecimento de outras "pessoas que possam lançar luz sobre os fatos" (artigo 8º, 2, "c" e "f"). No Tribunal do Júri, tais considerações ganham ainda maior importância, na medida que a "amplitude" de defesa dá lugar à sua "plenitude", isto é, um grau superior de possibilidade de ser exercida.

Não se nega, com isso, que mesmo o direito de defesa deva encontrar alguns limites, até mesmo sob os pontos de vista ético e moral. O "caso Mariana Ferrer" é emblemático nesse sentido. Por óbvio, o processo penal não se presta a ofensas seja contra as vítimas, seja contra os próprios acusados. O fato de uma vítima afirmar que não deseja ser tratada como "acusada" também revela o grave problema da estigmatização do processo penal. Deve-se ter em mente que a dignidade é um valor subjetivo, de difícil aferição, e que não é o processo penal palco para que vítimas venham buscar reparações ou assumir função superior a uma fonte de prova pessoal. Mesmo a ampla reforma de 2008, que inseriu na sentença penal condenatória a fixação de um valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, relegou a completa apuração dos eventuais prejuízos ao juízo cível competente. 

Logo, num contexto tão desfavorável a um discurso democrático e repressivo aos direitos e garantias fundamentais, urge que esse tipo de legislação irrefletida e assistemática passe por um filtro constitucional e convencional, de modo a poder resguardar um mínimo de coerência num sistema anacrônico que exige uma reforma global urgente. 

Em quarto lugar, a mudança não orna com o ordenamento jurídico, já que, segundo o §2º, artigo 7º, da Lei 8.906/94, o advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria ou difamação puníveis qualquer manifestação da sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, respondendo perante a OAB pelos excessos que cometer. Posto isso, como podem conviver em harmonia uma disposição legislativa que veda a ampla liberdade de fala ao lado daquela que a permite, inclusive excluindo a punibilidade de eventual crime contra a honra, à exceção da calúnia?

Como ensina Alimena, é justo que o Estado possa proibir determinadas condutas, "mas não é menos justo que eu, antes de fazer algo, saiba quais as ações obrigatórias, quais as permitidas e quais as proibidas" [3]. Considerando as duas leis em vigência, forçoso reconhecer que o advogado não sabe o que pode falar ou calar no exercício de sua função. A legislação é dúbia.

A partir da proibição do ministro Dias Toffoli sobre a utilização da tese da legítima defesa da honra no plenário do júri, inaugurou-se um período obscuro no panorama jurídico nacional, que é possibilidade de o Estado imiscuir-se na consciência mesma do indivíduo e vedar determinado pensamento ou sua verbalização. Agora, mais uma vez, sob a falsa proteção da honra de vítimas ou testemunhas, tolhe-se a fala, permitindo, na prática, as mais sangrentas injustiças sob o pálio do ressentimento vitimista, o qual não deveria ocupar as finalidades do processo, senão secundariamente e desde que não obnubilassem os princípios cardeais da persecução penal.

 


[1] RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 298.

[2] Idem, ibidem.

[3] ALIMENA, Bernardino. Introdução ao direito penal. 1 ed. São Paulo: Rideel, 2007, p. 141.

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