Opinião

O declínio da presunção dos danos morais nas relações aeronáuticas

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9 de dezembro de 2021, 13h42

As relações pactuadas entre as companhias aéreas e os passageiros são, muitas vezes, objetos de ações judiciais. Dessa forma, é de conhecimento geral que, em regra, os consumidores apresentam todo o seu relato da perspectiva de consumidor e, por óbvio, pleiteiam a aplicação da Lei 8.078/90 — Código de Defesa do Consumidor.

Em contrapartida, as relações aeronáuticas são tratadas de forma diferenciada pelas companhias aéreas, que se submetem às normas das agências reguladoras, às convenções internacionais e ao Código Brasileiro de Aeronáutica.

Nesse sentido, há muito tempo as ações promovidas pelos passageiros apresentam alegações referentes aos fatos ocorridos acompanhadas de pedido de indenização por danos morais a ser reconhecida in re ipsa, alegando que os danos se presumem pelos fatos narrados. Geralmente, invocando o CDC, pedem também a inversão do ônus da prova quanto aos fatos narrados, em razão de alegada hipossuficiência.

A jurisprudência, por muitos anos, acompanhou as alegações dos consumidores e presumiu a existência de danos nas narrativas. Entretanto, desde 2018, especialmente em razão de entendimento proferido pela ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi nos autos do Recurso Especial nº 1.796.716-MG (2018/0166098-4), verifica-se que, se demonstrado o cumprimento das resoluções normativas da Anac quanto à assistência ao passageiro, o dano não mais seria presumido, cabendo ao passageiro provar a ocorrência de abalo moral.

Em que pese esse ter sido o primeiro avanço quanto à não presunção dos danos morais, o que se verificava, na prática, era que ainda ficava a cargo das companhias aéreas a responsabilidade de comprovar a ausência de dano moral, visto que, ao aplicar o CDC aos processos, havia a inversão do ônus da prova.

O cenário apresentado sofreu nova alteração apenas no ano de 2020, com a pandemia da Covid-19. A chegada da pandemia possibilitou a formalização de termo de ajuste de conduta entre as companhias aéreas, o Senacon e o MPF, sendo que entre as diversas informações constantes destacava-se a seguinte:

"Em razão da pandemia e dos atos de governo a ela relacionados (que caracterizam força maior e caso fortuito), não será exigido das empresas a assistência material prevista na Seção III da Resolução 400 da Anac – Agência Nacional de Aviação Civil, de 03 de junho de 2016, nos casos de passageiros impactados por atrasos ou cancelamentos de voos decorrentes do fechamento de fronteiras que impeçam as companhias aéreas de manterem seus voos para a localidade afetada. Todavia, as companhias aéreas comprometem-se a envidar esforços para auxiliar o Ministério das Relações Exterior para localizar e trazer brasileiros localizados no exterior".

Assim, pela primeira vez restaria impossível a presunção dos danos morais, visto que a necessidade de prestação de assistência encontrava-se suspensa e, nesse aspecto, o condicionamento de não presunção mediante a prestação de assistência, constante do julgamento base da ministra Nancy Andrighi, restou prejudicado.

Todavia, em que pese a menção à desnecessidade de prestação de assistência constante do TAC, o Judiciário, em sua grande maioria, não acolheu as tratativas firmadas, mantendo a presunção dos danos morais em caso de não comprovação específica da prestação das assistências.

Concomitantemente, em maio de 2020 a Anac expediu a Resolução nº 556/2020, que, de forma taxativa, declarou que a assistência material descrita pela Resolução 400/2016 encontrava-se suspensa durante o período da pandemia, auferindo ainda mais credibilidade aos termos apresentados no termo de ajuste de conduta.

No mesmo intuito, no dia 5 de agosto de 2020 foi sancionada a Lei 14.034/2020, cujo teor trata, em sua grande maioria, acerca da pandemia, mas que também trouxe à tona importante alteração ao Código Brasileiro de Aeronáutica, inserindo o artigo 251-A, cujo teor afirma que: "A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga".

Dessa forma, pela primeira vez tornou-se tipificada a obrigatoriedade de comprovação específica dos danos alegados por aquele que o alega, por óbvio, mitigando qualquer possibilidade de presunção dos danos morais sem qualquer consubstanciamento.

Em que pese a promulgação da Lei 14.034/2020, durante o período de 2020, poucas foram as decisões que aplicaram o artigo 251-A do Código Brasileiro de Aeronáutica ou as determinações da Resolução 556/2020, desconsiderando seu conteúdo e, por muitas vezes, promovendo a condenação em danos morais in re ipsa pela ausência de comprovação da prestação de assistência, ainda que a norma esteja suspensa pelo órgão regulador das atividades aeronáuticas.

Observou-se, portanto, a resistência do Judiciário em deixar de presumir como verdadeiros os danos alegados sem comprovação fática, salvo raríssimas decisões.

Essa injustificada resistência, enfim, parece estar superada. Nos últimos meses, especialmente nos estados de São Paulo, Paraná e Minas Gerais, esse cenário apresentou alteração. São inúmeros os acórdãos que pontuam taxativamente a impossibilidade de presunção dos danos morais em razão do que determina o artigo 251-A do Código Brasileiro de Aeronáutica, afastando a inversão do ônus da prova (e, consequentemente, o CDC) e, nesse aspecto, obrigando que o consumidor comprove o dano alegado.

Se não o bastasse, são cada vez mais comuns as interligações entre o pretérito entendimento da ministra Andrighi e a Resolução 556/2020, demonstrando que se encontram suspensas as obrigações de prestação de assistência material e, por óbvio, inexiste presunção de dano se não houve assistência em razão de cancelamentos, atrasos etc.

Assim, após aproximadamente três anos da decisão que deu o "pontapé inicial" no fim da presunção dos danos morais nas relações de consumo no âmbito da aviação civil, enfim, os magistrados parecem demonstrar compreensão no sentido de que cabe àquele que alega a existência de um dano que o comprove e, portanto, inexiste espaço para presumir qualquer fato ou dano não comprovado.

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