Opinião

Senado aprova PL que proíbe discriminação de doadores por orientação sexual

Autor

  • Júlia Regina Feier

    é advogada pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho e associada do Núcleo de Relações de Consumo do escritório Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados.

9 de dezembro de 2021, 6h02

No dia 4 de novembro foi aprovado o projeto de lei que proíbe a discriminação de doadores de sangue com base na orientação sexual, bem como propõe punição em caso de desrespeito à normativa com base na Lei do Racismo (Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989).

De acordo com os fundamentos do Projeto de Lei nº 2353 de 2021, a Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e a Resolução 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária são discriminatórias ao declarar como inaptos temporários à doação de sangue por 12 meses aqueles que tiverem relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes [1].

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sustenta que a restrição à doação de sangue para gays e bissexuais masculinos se fundamenta em evidências epidemiológicas e técnico-científicas, visando ao interesse coletivo na garantia máxima da qualidade e da segurança transfusional para o receptor de sangue. Alega que a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) recomendam inaptidão de 12 meses para a doação de sangue por homens que tiverem relações sexuais com outros homens, em virtude de estes envolverem riscos maiores de infecção por doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) [2].

Para o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot [3], a fundamentação utilizada para tal restrição parte do pressuposto de que homens gays e bissexuais estão inseridos em um grupo de risco, sendo pessoas mais suscetíveis a contrair e a transmitir DSTs pelo simples fato de praticarem relações sexuais com outros homens.

Nesse contexto, refere que a ideia de tal público ser tratado como de risco remonta ao início da epidemia de síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids, do inglês acquired immunodeficiency syndrome), causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV, do inglês human immunodeficiency virus), na década de 1980. Condizia com os primeiros afetados pela doença, geralmente os homossexuais, os que faziam uso de drogas injetáveis e os hemofílicos. No entanto, essa concepção está ultrapassada, uma vez que o vírus se espalhou de forma geral e indistinta na população, não havendo mais de se falar em "grupo de risco".

A prova de que esse entendimento está ultrapassado se faz pelos dados apresentados pela Unaids (2016), a qual mostra índices consideráveis de contágio do vírus em heterossexuais, assim como a maior parte dos 51% de pessoas do mundo que vivem com HIV corresponde a mulheres, não restringindo tal contágio apenas a homens que praticam relações sexuais com outros homens [4].

Em verdade, o erro consiste em confundir grupo de risco com comportamento de risco. Ou seja, o enfoque das normativas acima apontadas deveria ser se o doador de sangue faz uso de preservativo, dado que este seria o comportamento de risco à transmissão de doenças.

Para além disso, é obrigatória a realização de exames laboratoriais de alta sensibilidade a cada doação, a fim de detectar marcadores para infecções transmissíveis pelo sangue, como sífilis, doença de Chagas, hepatite B, hepatite C, Aids e HTLV (vírus T-linfotrópico humano), conforme previsto no artigo 130 da Portaria nº 158/2016. Ou seja, ainda que as normativas não previssem qualquer vedação temporária à doação de sangue para grupos de risco ou para comportamento de risco, a única garantia na segurança da transfusão de sangue saudável se baseia em tal teste.

A respeito do tema, houve o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade visando a discutir as referidas normativas. Em decisão, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos, fundamentando que basear a proibição temporária à doação de sangue a grupos de risco, e não a comportamento de risco, incorre em discriminação e viola os princípios da dignidade humana e da igualdade.

Ainda que tal decisão tenha trazido considerável avanço à matéria, há notícia de que a Anvisa expediu ofício determinando que a decisão do STF não fosse cumprida pelos laboratórios, ainda que cientes do julgado [5].

O projeto de lei aprovado pelo Senado agora segue para apreciação da Câmara dos Deputados e, acaso aprovada, seguirá ao presidente da República para deliberação a respeito de sua sanção.

 


[1] Artigo 64, inciso IV, da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e artigo 25, inciso XXX, alínea 'd', da Resolução 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

[2] Fundamentos extraídos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.543

[3] Em sustentação proferida junto à ADI nº 5.543, em 06/09/2016

[4] UNAIDS. ONU Brasil. Resumo global da epidemia de AIDS. Brasília, ago. 2017. Disponível em: <https://unaids.org.br/estatisticas/>. Acesso em 11 dez. 2017

[5] O ESTADO DE SÃO PAULO. Anvisa contraria STF e mantém veto a doação de sangue por homens gays. São Paulo, 6 de jun. 2020. Disponível em: <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,anvisa-contraria-stf-e-mantem-veto-a-doacao-de-sangue-por-homens-gays,70003326319>. Acesso em 13 novembro 2021.

Autores

  • Brave

    é advogada, pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho e associada do Núcleo de Relações de Consumo do escritório Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!