Controvérsias Jurídicas

Dolo penal na improbidade administrativa

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

9 de dezembro de 2021, 8h00

O princípio constitucional da moralidade administrativa compreende o conjunto de regras que delimitam no âmbito da Administração Pública, a linha divisória entre o certo e o errado, o bem e o mal, o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o honesto e o desonesto, o moral e o imoral. A Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Federal, em seu artigo 2º, define a moralidade como a atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé. Maria Sylvia Zanella Di Pietro a conceitua como "(…) a moral, os bons costumes, as regras da boa administração, os princípios de justiça e equidade, a ideia comum de honestidade" [1]. Ato ímprobo é aquele intencionalmente ilegal, imoral, desonesto, contrário à boa-fé e ao dever de lealdade para com a sociedade.

De acordo com o artigo 37, § 4º, CF: "os atos de improbidade administrativa provocam a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário, sem prejuízo da ação penal cabível".

A Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) compõe-se de cinco pontos estruturais: sujeito passivo, sujeito ativo, tipos de improbidade, sanções e procedimentos administrativos e judiciais. Quanto à tipologia, os atos de improbidade são os que: (a) importam em enriquecimento ilícito (artigo 9º); (b) causam dano ao erário (artigo 10); (c) decorrem de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário (artigo 10, XXII); e (d) atentam contra os princípios a Administração Pública (artigo 11).

Enriquecimento ilícito (LIA, artigo 9º) é a obtenção de qualquer vantagem patrimonial indevida em razão do exercício do cargo, mandato, função, emprego ou atividade das entidades referidas no artigo 1º. Dano ao erário (LIA, artigo 10) consiste em qualquer perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades contidas no artigo 1º. O artigo 10, XXII, por sua vez, também trata como improbidade o ato que vise conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário contrariamente ao que dispõe o "caput" e o § 1º, artigo 8º-A, da Lei Complementar nº 116/03 [2]. O artigo 11 dispõe que constituem improbidade as condutas atentatórias aos princípios da administração pública.

Fora da LIA, existe ainda o artigo 52 da Lei nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade), o qual estabeleceu que, sem prejuízo da punição de outros agentes públicos e da aplicação de outras sanções cabíveis, o prefeito incorre em improbidade administrativa, nos termos da Lei nº 8.429/92, quando violar regras de conteúdo urbanístico.

Na exegese e aplicação desses dispositivos, por muito tempo se discutiu a necessidade de dolo ou culpa para a responsabilização do agente por ato de improbidade.

No STJ, a primeira turma entendia ser necessário o dolo para caracterização das condutas previstas nos artigos 9º e 11, e admitia tanto dolo, quanto culpa nas do artigo 10 da Lei nº 8.429/92, uma vez que este último dispositivo tipificava como ímprobo tanto o dano doloso, quanto o culposo. Com relação aos artigos 9º e 11, aplicava-se a regra do artigo 18, parágrafo único, do CP, segundo a qual, salvo previsão expressa da modalidade culposa, a infração somente será punida a título de dolo [3]. A segunda turma, por seu turno, divergia na hipótese do artigo 11, entendendo que a lei não exigiu dolo, bastando a mera voluntariedade.

A controvérsia teve fim com o julgamento do REsp nº 875.163/RS, relator ministro Mauro Campbell Marques, 1ª Seção, julgado em 23/06/2010, firmando entendimento da imprescindibilidade da demonstração do dolo para reconhecimento do ato de improbidade previsto no artigo 11. A necessidade do dolo nas ações de improbidade também foi profundamente debatida no REsp nº 765.212/AC [4], em função de recurso interposto pelo Ministério Público do Acre, em ação ajuizada contra o ex-prefeito e a ex-secretária municipal do município de senador Guiomard, prevalecendo no julgamento, a necessidade de dolo, nos mesmos moldes da legislação criminal.

Partindo da premissa de que as sanções por improbidade carregam caráter claramente punitivo, como supressão de direitos políticos, perda de bens e valores, perda da função pública e multa, parte dos administrativistas já sinalizava a aproximação com as regras e princípios do Direito Penal, a fim de garantir ao acusado as mesmas garantias do contraditório, ampla defesa e devido processo legal [5] .

No próprio julgamento do REsp 765.212, em um primeiro momento, o ministro Herman Benjamin defendeu a adoção da Teoria da Voluntariedade, em função da relevância do bem juridicamente tutelado pela LIA. O ministro Mauro Campbell, no entanto, distinguiu os conceitos de "consciência e vontade", de um lado, e "mera voluntariedade" de outro, esclarecendo que "voluntariedade (…) não se confunde com vontade. A vontade necessariamente pressupõe uma conduta com resultado querido. Novamente, como Luiz Regis Prado, citando Welzel: (…) a voluntariedade significa que um movimento corporal e suas consequências podem ser conduzidos a algum ato voluntário, sendo indiferente quais consequências queria produzir ao autor. Isso quer dizer que a voluntariedade se caracteriza pela simples enervação muscular que põe em andamento um processo de natureza causal. De outro lado, a vontade tem conteúdo próprio inerente ao comportamento humano, e diz respeito ao resultado querido (…)" [6]. Deste modo, restou superada a adoção da Teoria da Voluntariedade, com o reconhecimento de que no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, deve ser adotada a responsabilidade subjetiva, mediante a exigência de dolo.

Em reforço a esta tese já prevalente, a Lei nº 14.230/21 encerrou definitivamente qualquer controvérsia acerca do dolo. Conferindo nova redação ao artigo 1º, § 1º, LIA, passou a considerar atos de improbidade administrativa somente as condutas dolosas tipificadas nos artigos 9º, 10, 11. Assim, tornou atípico qualquer conduta desprovida de dolo, não admitindo a mera voluntariedade para incidência do artigo 11 e ainda, excluiu do rol do artigo 10, as condutas lesivas ao erário praticadas por negligência, imperícia ou imprudência, as quais não mais se consideram atos de improbidade.

O § 2º do artigo 1º, conceitua dolo como a vontade livre e consciente de produzir o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11. Não basta, todavia, o dolo genérico, consistente na consciência e vontade de praticar o ato e produzir o resultado. Agora, é necessário, além disso, a finalidade especial do agente de violar a lei. Em outras palavras, exige-se que tenha consciência e vontade de realizar a conduta para buscar um fim ilícito.

O artigo 1º, § 3º, da LIA, foi claro ao dispor que o mero exercício de função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade. Na tradicional terminologia penal, trata-se do dolo específico, exigência expressa da nova lei.

Não basta, agora, para configurar ato de improbidade administrativa a realização intencional de uma das condutas descritas nos tipos dos artigos 9º, 10 e 11, sendo necessária a consciência e a vontade de realizar todos os elementos da definição legal, com o objetivo de buscar um resultado moralmente afrontoso à ordem jurídica.

Tomemos como exemplo, uma ata de reunião do conselho diretor de uma empresa pública, no qual se deu a aprovação por unanimidade a adoção de um critério de reajuste ou a celebração de um determinado contrato. O membro do colegiado que teve a consciência e a vontade de se manifestar favoravelmente, mas sem o intuito de burlar a lei, não cometeu ato de improbidade por faltar o elemento subjetivo do tipo exigido pela nova lei. Passa a ser imprescindível a demonstração de todos os dados e circunstâncias externas e objetivas indicativas de que o sujeito agiu para atingir um fim ilícito.

A Lei 14.230/2021 constituiu novo patamar civilizatório, coíbe a utilização abusiva e inconsequente da Lei de Improbidade e configura enorme avanço na efetivação das garantias constitucionais. Ao mesmo tempo, impede que sanções tão rigorosas quanto as de natureza penal sejam impostas com supressão do núcleo de garantias do processo penal. Ao exigir dolo com finalidade especial do agente, contribui para evitar a utilização do processo como pena e equipara o Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador, dando a situações equivalentes, tratamento assemelhado. Sendo norma mais benéfica retroage para alcançar todos os atos praticados e os processos instaurados antes de sua entrada em vigor, nos termos do artigo 5º, XL, da CF.


[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 20ª edição. Ed. Atlas, 2007, p. 70.

[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 35ª edição. Ed. Atlas, 2021, p. 1.130: "O caput do referido dispositivo fixa em 2% a alíquota mínima do imposto sobre serviço de qualquer natureza. De outro lado, o § 1º veda a concessão de isenções, incentivos ou benefícios tributários e financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido ou outorgado, ou de qualquer modo que redunde em carga tributária menor do que a decorrente da aplicação da alíquota mínima acima mencionada, excetuando-se apernas alguns serviços relacionados em anexo da mesma LC 157".

[3] STJ, REsp 604.151/RS, 1ª Turma, relator ministro José Delgado, j. 25/04/2006.

[4] STJ, REsp 765.212/AC, relator ministro Herman Benjamin, j. 02/03/2010, Dje: 23/06/2010.

[5] FERREIRA, Vivian Maria Pereira. O dolo da improbidade administrativa: uma busca racional pelo elemento subjetivo na violação aos princípios da Administração Pública, in Revista DireitoGV, v. 15, nº 13, 2019, p. 7.

[6] STJ, REsp 765.212/AC, relator ministro Herman Benjamin, j. 02/03/2010, Dje: 23/06/2010, p. 28.

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