Opinião

Algumas anotações sobre a fundamentação da prisão preventiva

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8 de dezembro de 2021, 9h07

Tema por demais amplo e profundo, mostra-se o mesmo como terreno acidentado a se percorrer. Adiante. O ponto central do artigo será que deixemos de ter como válido e normal aquilo que, de fato, verdadeiramente não o é. De se dar um basta ao enorme abismo entre a teoria e a prática, entre o Direito posto e o escamoteamento deste por grande parcela do Judiciário.

As coisas neste país, no tangente ao acatamento das normas do CPP e dos valores constitucionais, estão cada dia mais longe de serem cumpridas, de serem realizadas em conformidade com o Estado democrático de Direito. Já tivemos de tudo. Até ex-presidente denunciado e preso e o MP a dizer: "Não tenho provas, mas tenho convicção". Naquilo que tange à decretação maciça da cautelar liberticida, a coisa, então, é escabrosa. Urge reavaliar o custo da fabril decretação destas com lastro em abusos do Direito posto.

Constata-se que o discurso teórico caminha no sentido de que "o processo deve ser baseado na ideia de que o acusado pode ser inocente, ou seja, deve garantir o respeito pela inocência, de modo que o código do processo penal seja a Magna Carta do indivíduo, a salvaguarda da galanteria, o código de Honra" [1]. Mas a prática, o dia a dia forense, aponta, vergonhosamente, no sentido de que "o sistema penal da América Latina nos últimos anos tem regredido nos aspectos humanistas e humanitários, que poderia ter tido, e tornou-se uma máquina para enviar pessoas para as prisões" [2].

E por que se diz "vergonhoso"? Simplesmente porque o que se vê nas inumeráveis e infindáveis decretações fordianas da liberticida é um "esquartejamento do verdadeiro Direito penal, aquele cuja função primordial é a contenção do poder punitivo. Esse esquartejamento dará origem a um direito penal vergonhoso" [3].

O fato é que, no dia a dia forense, o que observamos são prisões decretadas às mãos cheias, de maneira banal, sendo utilizadas pelo sistema penal de modo distorcido, de forma policialesca, esquecendo-se da teoria da cautelaridade e sendo utilizada ora como pena antecipada, ora como inquisitória [4].  

Os números, ainda que não tão confiáveis, fornecidos pelo Depen, apontam, em 2019, uma população prisional de 773.151 pessoas privadas de liberdade, sendo 33% de presos provisórios [5].

Os dados indicam, como concluiu o ministro Gilmar Mendes, que "a prisão cautelar é utilizada para finalidades outras que não as declaradas pela lei adjetiva penal" [6]. Malversação do instituto da custodia cautelar que o ministro Marco Aurélio também aponta e repreende [7].

Disso não resta em nós a menor dúvida, o uso banalizado da prisão preventiva se faz de forma distorcida, abusiva, atribuindo-se à mesma ora a função de afastamento dos "indesejados", dos "estranhos" à comunidade, dos pobres e negros, como "um aparelho de contínua operação de auto limpeza do corpo popular" [8], ora a função sedante, analgésica das tantas insatisfações da sociedade ou, pior ainda, onde esta cautelar apodera-se do "indivíduo que é usado como meio para conferir 'credibilidade institucional' por meio da prisão preventiva" [9], tudo como se "esquecido" fosse pelo julgador que "a cautelar é dissipadora de riscos e não resposta criminal" [10].

Para fazê-lo, para a sua decretação, de acordo com Voltaire, "o direito natural exige que o detentor de tal poder preste contas das causas que a determinaram" [11].

Por força do artigo 93, IX, da CF combinado com o artigo 315 do CPP, este prestar contas se faz através da fundamentação e da motivação, devendo ser estas de forma explícita, densa, clara, de maneira a que o juiz  "traga à superfície" as causas que entendeu ter para tão drástica medida, que demostre de forma argumentativa a imprescindibilidade de cárcere. Com esse dispositivo legal, o julgador não deve somente reproduzir o que diz o Codex, mas indicar, de maneira sólida e explícita, onde, dentro dos autos do caso concreto, ocorra embaraço à instrução, com a eliminação de provas, risco à aplicação da lei penal ou de reiteração delitiva, obviamente sem o malfadado e costumeiro uso de decisões chapadas, genéricas ou de suposições, futurologia ou achismos. Observa-se que "aqui, o legislador criou constrangimentos hermenêuticos muito bem-vindos para, quem sabe com o tempo, reduzirmos cada vez mais o espaço de arbitrariedade" [12].

É até muito pouco a se exigir do magistrado diante de uma medida tremenda que arrebenta a vida de quem a sofre e vai colocar o cidadão num "estado de coisas inconstitucional". Somente um desafeto da Constituição [13]  seria resistente a tanto. Somente um desafeto. Como Solgenítsin bem demonstrou, essa medida mais dura do ordenamento penal é de uma opressão inigualável: "Detenção! Será necessário dizer que isso representa uma brusca reviravolta em toda a sua vida? Que é como a queda a pique de um corisco sobre a sua cabeça? Que é uma comoção espiritual insuportável, a que nem todas as pessoas podem adaptar-se, e que frequentemente leva à loucura? O universo tem tantos centros quantos os seres vivos que nele existem. Cada um de nós é o centro do mundo e do universo, e ele se desmorona quando alguém nos sussurra ao ouvido: 'Está preso!'" [14].

O fato é que o legislador pátrio deu "ênfase na motivação das decisões cautelares, tendo-a como garantia das mais importantes para a realização de um processo penal justo" [15].  Habemus lex.

O princípio da legalidade  vale dizer, a observância do texto, da norma de regência no momento da prolação da decisão é a mais saliente garantia contra o abuso de poder nesse momento. Nesse sentido, "o poder judiciário é um dos pilares do próprio Estado Democrático de Direito, fato pelo qual deve observar as balizas anteriormente impostas pela lei- art. 93, IX DA CF c/c artigo 315 do CPP" [16]. Não se pode mais continuar se aceitando uma justiça descomprometida com a Constituição e que atue, no tangente a fundamentação da prisão preventiva, de modo dissociado do texto legal. No caso presente o que se quer e se defende é uma Justiça que atue em conformidade com a norma de regência. Um processo penal marcado pela legalidade estrita. Incrível ter de se defender isso!

Até porque, importa o alerta, mostra-se autofágico o poder que exija do cidadão o estrito cumprimento da lei quando ele mesmo não cumpre e nem a respeita.

 


[1] BELING, E. in RODRIGUEZ, Javier Llobet. Beccaria e o Direito Penal de hoje, 2ª Ed. Tirant Lo Blanch, 2021, pg. 195.

[2] RODRÍGUEZ, Javier Llobet. Beccaria e o Direito Penal de hoje, 2ª Ed. Tirant Lo Blanch, 2021, pg. 14.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raul [Et al]. Benvindos ao Lawfare, Ed. Tirant Lo Blanch, 2021, pg. 32.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, Ed. RT, 2017, pg. 716-717.

[5]  BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias infopen — dezembro 2019.

[6] AKERMAN, William. Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal, Ed. RT, 2021, pg. 240.

[7] in STF – ADC 43/DF.

[8] ZAFFARONI, Eugenio, Doutrina Peal Nazista, Ed. Tirant Lo Blanch, 2019, pg. 122.

[9] FRAGA, Marcos Pippi. Processo Penal Contemporâneo em Debate, Ed. Tirant Lo Blanch, 2021, pg. 96.

[10] STJ  HC 509.030/RJ, voto do Min. Nefi Cordeiro.

[11] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, Ed. RT, 2014, pg 138.

[12] PINHO, Ana Claudia Bastos de. Código de Processo Penal. Estudos comemorativos aos 80 anos de vigência, Ed. RT, ano 2021, Tomo I, pág. 194.

[13] Expressão cunhada por Geraldo Ataliba e citada no STF  HC 84.078-7/MG, Rel. Min. Eros Grau.

[14] SOLJENÍTSIN, A. Arquipélago Gulag, Ed. Difel, 1973, pg. 15.

[15] CRUZ, Rogério Schietti. Prisão Cautelar, Ed. Juspodivm, ano 2021, pg. 339.

[16] FRAGA, Marcos Pippi. Processo Penal Contemporâneo em Debate, Ed. Tirant Lo Blanch, 2021, pg. 103.

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