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Decreto nº 10.854: há um problema no Programa de Alimentação do Trabalhador

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

8 de dezembro de 2021, 8h00

O equivocado e agora agonizante Projeto de Lei nº 2.337, que objetiva alterar o Imposto sobre a Renda (IRPJ), incluiu, em uma de suas tantas versões, disposição que objetivava eliminar a dedução em dobro, no cálculo do lucro real das empresas, dos gastos com alimentação dos empregados relativamente a projetos aprovados na forma da Lei nº 6.321/76, que introduziu o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT). Ao longo do caminho legislativo percorrido pelo PL 2.337, afastou-se esse objetivo do Poder Executivo, dada a impropriedade do pretendido, especialmente em relação aos trabalhadores de menor renda que em projetos associados à adequada alimentação logram melhores condições para o desempenho de suas funções.

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O bom senso de alguns congressistas possibilitou afastar a tentativa de eliminar a dedução em dobro do benefício dos trabalhadores, certamente vislumbrando que isso pudesse levar a uma descontinuidade da oferta do benefício, e essa afirmativa decorre do fato de, na origem, ele ter servido como incentivo aos empregadores para cuidarem de seus empregados. Trata-se de uma norma que induz a comportamentos positivos em troca de uma vantagem que se consubstancia em redução do imposto a pagar.

Contudo, isso não parece ter demovido o Poder Executivo de liquidar com a dedução em dobro das despesas com o PAT, pois agora retorna à carga valendo-se do Decreto nº 10.854, ato normativo que regulamenta diversas disposições voltadas à legislação trabalhista, todas elas fruto de alterações que se produziram, recentemente, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Os programas de alimentação ao trabalhador também foram objeto desse decreto, sob dois diferentes aspectos: 1) artigo 178, o qual determina que a parcela paga in natura pela pessoa jurídica beneficiária, no âmbito do PAT, ou disponibilizada na forma de instrumentos de pagamento, não tem natureza salarial, não se incorpora à remuneração para quaisquer efeitos e não constitui base de incidência do FGTS, excetuada a hipótese de pagamento em dinheiro; e 2) artigo 186, o qual limita a dedução em dobro dos gastos com tais programas apenas em relação aos valores despendidos para os trabalhadores que recebam até cinco salários mínimos, podendo, entretanto, abarcar a totalidade dos trabalhadores da empresa beneficiária, desde que o benefício se consubstancie em serviço próprio de preparo de refeições ou de distribuição de alimentos por meio de entidades fornecedoras de alimentação coletiva, tudo limitado à parcela do benefício que corresponder ao valor de, no máximo, um salário-mínimo.

Como se observa, o artigo 178 põe termo, no âmbito do Poder Executivo, a um longo contencioso administrativo e judicial sobre o tema, afastando qualquer tentativa de cobrança de encargos trabalhistas ou previdenciários sobre o PAT. De sua vez, o artigo 186 inicia nova polêmica que, certamente, será judicializada, pois contraria frontalmente a Lei nº 6.321 sob diversos aspectos. E aqui se tem um primeiro comentário objetivo: a derrota sofrida no Congresso Nacional não impressionou o Poder Executivo, que segue, não se sabe por qual razão, em sua batalha para reduzir ou eliminar a vantagem tributária que as empresas detêm, por vias indiretas, inclusive por caminhos que o próprio Poder Judiciário já vetou, como se verá.

À época da introdução do PAT, algumas empresas, em caráter inovador, mantinham restaurantes, em suas dependências, voltados a fornecer refeições a seus empregados, benefício esse que podia ter seus custos compartilhados, ou não, com os beneficiários, operando esse compartilhamento como verdadeira "subvenção" do empregador ao empregado. Com isso, permitia-se oferecer alimentação de maior qualidade aos empregados, bem como evitar que eles tivessem de se deslocar em busca de refeição, ou, ainda, trazer os alimentos de casa, muitas vezes em condições menos adequadas.

Por óbvio que isso gerou, quando não era cobrado dos empregados, um benefício financeiro adicional indireto, objeto de muitas discussões nos tribunais, no que tange aos seus reflexos trabalhistas e previdenciários, estando hoje consolidada a sua intributabilidade na pessoa do empregado, como consta do Decreto nº 10.854.

A entrada em vigor da Lei nº 6.321/76 representou um avanço, pois garantiu a dedutibilidade dos gastos com alimentação de empregados, para as empresas que assim já o faziam, bem como acenou a todos com a dedução em dobro como contrapartida do benefício. Em decorrência da concessão desse benefício, com o tempo, formou-se verdadeira indústria voltada ao fornecimento de refeições para as empresas, e seu gerenciamento, nascendo um segmento especializado, reconhecido pelo Ministério do Trabalho e Previdência por sua atividade de montar programas e fornecer refeições. A evolução do mercado e da tecnologia levou ao nascimento das empresas que operam com meios de pagamento voltados à oferta e gerenciamento dos vales de refeições que podem ser trocados por refeições em locais devidamente credenciados.

De início, o artigo 1° da Lei nº 6.321 dispõe que o dobro das despesas comprovadamente realizadas no período base, em programas de alimentação do trabalhador, previamente aprovados, serão deduzidas do lucro tributável, não podendo essa dedução exceder em cada exercício financeiro, isoladamente, a 5% e cumulativamente com a dedução do vale transporte (Lei nº 6.297, de 15/12/1975), a 10% do lucro tributável. Ocorre que o Regulamento do Imposto sobre a Renda, de forma totalmente ilegal, determinou que essa dedução seja feita diretamente do imposto sobre a renda devido, assim afastando a dedução direta do lucro tributável, como determina a Lei nº 6321. Com isso, o valor do benefício pretendido pela lei se reduz substancialmente, em detrimento do contribuinte, inclusive porque o lucro tributável é conceito que abrange o chamado adicional de Imposto sobre a Renda.

Destaque-se que essa ilegalidade vem sendo perpetrada há tempos, como se observa dos Decretos 5/91 e 3.000/99, inclusive Instrução Normativa da antiga Secretaria da Receita Federal, atual Secretaria da Receita Federal do Brasil, nº 267/02, que, da mesma forma que o Decreto nº 9.850, impuseram limites não estabelecidos pela legislação ordinária, prejudicando, assim, os contribuintes detentores dos benefícios do PAT.

Esse tema já foi objeto de decisões emanadas das cortes superiores, como é o caso das 1ª e 2ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça, como por exemplo o AgInt no REsp 1491935/RS, da 1ª Turma, em 18/5/2020 e do AREsp 647.485/PE, da 1ª Turma, em 13/5/2019. Com isso é certo que o Poder Executivo, deliberadamente, insiste em desrespeitar princípios constitucionais básicos, como é o caso da necessária submissão do ato administrativo, o Decreto nº 9.850, à sua matriz legal, a Lei nº 6.231, cabendo na hipótese os mesmos fundamentos de decidir do STJ em relação a discussões voltadas aos antigos Regulamentos do Imposto sobre a Renda e à Instrução Normativa nº 267/02.

Outro aspecto de há muito decidido pelos tribunais diz respeito a restrições introduzidas por atos administrativos para o gozo do PAT, as quais resultaram afastadas. É o caso, por exemplo, da criação de limite aos custos máximos das refeições individuais dos trabalhadores para fins de cálculo da dedução do PAT, como se observa no REsp 157.990/SP, da 1ª Turma, e no REsp 990.313/SP, da 2ª Turma, bem como no AgRg no REsp 1.240.144/ RS, da 2ª Turma, e, por fim, no REsp 1.217.646/RS, da 2ª Turma, todas do STJ. Tendo em vista o claro posicionamento desse tribunal, a limitação imposta pelo Decreto nº 10.854 quando determina que a dedução do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas fica restrita ao montante da "parcela do benefício que corresponder ao valor de, no máximo, um salário-mínimo" é, no mínimo, ilegal e, portanto, discutível.

O STJ, em suas decisões acima colhidas, deixa claro que a limitação à alteração da base de cálculo do benefício do PAT, bem como a limitação a um valor de refeição, ofende o princípio da legalidade, fundamental em matéria de tributação, como se depreende do artigo 150 da Constituição Federal, que veda exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Insere-se na abrangência dessa disposição, sem dúvida, a edição de atos infralegais que descumpram ou colidam com as disposições das leis matrizes que os geraram, no caso do Decreto nº 10.854, a Lei nº 6.321.

Não menos relevante é o fato de que o Decreto nº 10.854 também viola os princípios constitucionais da anterioridade e da irretroatividade, já que as mudanças promovidas pelo Decreto nº 10.854 produzirão efeito ainda neste ano-calendário, de acordo com seu artigo 188, II. A despeito de tratar-se de um benefício fiscal, é certo que ele não pode ser suprimido ou limitado senão que a partir do ano calendário subsequente, de vez que essa supressão implica pagamento a maior de tributo. De fato, por força do artigo 150, II e III, da Constituição Federal, é vedado cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado bem como no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou. Nas duas hipóteses não se poderia limitar o uso do benefício, aplicável ao ano calendário de 2021, por força de norma editada neste mesmo ano-calendário e, inclusive, posteriormente a eventos econômicos nele ocorridos e, portanto, tributáveis.

O artigo 169 do Decreto nº 10.854 dispõe que para fins de execução do PAT, a pessoa jurídica beneficiária poderá: 1) manter serviço próprio de refeições; 2) distribuir alimentos; ou 3) firmar contrato com entidades de alimentação coletiva. Essas entidades de alimentação coletiva podem qualificar-se, por sua vez, como fornecedoras de alimentação coletiva ou facilitadoras de aquisição de refeições ou gêneros alimentícios, hipótese em que podem emitir ou credenciar a aceitação de instrumentos de pagamento para aquisição de refeições em restaurantes e estabelecimentos similares (refeição convênio) e fornecedoras de instrumentos de pagamento para aquisição de gêneros alimentícios em estabelecimentos comerciais (alimentação convênio).

Observe-se que para fins de dedução dos gastos em dobro, na apuração do lucro real, consoante o artigo 186 do Decreto nº 10854, somente podem ser aceitos os custos com entidades fornecedoras de alimentação coletiva, tudo limitado à parcela do benefício que corresponder ao valor de, no máximo, um salário mínimo. Isso significa que os gastos com as facilitadoras de pagamento estão vetados. Essa restrição, além de criar diferenciação odiosa entre as diversas entidades que atuam com a mesma finalidade, ofertar ou viabilizar a aquisição de refeições pelos trabalhadores, também entra na contramão da história visto que no mundo atual cada vez menos empresas dispõem de espaços para refeitórios, delegando essa tarefa às empresas especializadas.

Conquanto o artigo 171 do Decreto nº 9.854 disponha que o PAT deve atender prioritariamente aos empregados de baixa renda, eles não são os únicos beneficiários, podendo o programa abranger todos os trabalhadores da empresa, observado o cumprimento das condições para tanto. Essa determinação deve ser entendida como não podendo tais pessoas serem excluídas desses programas.

Todos esses fatos anunciam que um novo contencioso tributário está surgindo, por conta de reiteradas ofensas à Constituição Federal tais como inobservância do princípio da legalidade por ofensa à hierarquia constitucional das leis, inobservância dos princípios da anterioridade e da anualidade, discriminação de partes no negócio jurídico (empresas de fornecimento de refeições e de meios de pagamento), entre outros.

A grande lição que se tira desse deplorável Decreto nº 10.854, no que tange ao benefício do PAT, é que as autoridades descumprem e violam a Constituição Federal, de forma reiterada, com o único objetivo de aumentar a arrecadação, de vez que, como já se mostrou, o tema dos limites desse programa e seus objetivos, são pacíficos nos tribunais superiores. A nosso ver, duas podem ser as razões para tanto: 1) falta de conhecimento apropriado da lei, especialmente da matéria tributária, pelos agentes públicos; ou 2) intenção deliberada de não fazer cumprir a Constituição Federal, o que nos parece ser muito grave.

O mais assustador é que o sistema não prevê forma de cobrar um comportamento adequado e coerente desses agentes públicos, diante da lei, uma vez que soa absurdo imaginar que o Poder Executivo deixa de observar as regras básicas para edição de uma norma de caráter administrativo, infraconstitucional, a despeito de a Constituição Federal, de forma minudente, dispor sobra a matéria. Com isso rompe-se, a nosso ver, o liame de confiança que orienta a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, orientado pelo artigo 37 da Constituição Federal, que deverá obedecer aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. De todos esses, no presente caso, nos interessam a legalidade, que, como visto, foi abandonada pelo Decreto nº 10.854, moralidade a exigir respeito a padrões éticos, de boa-fé, decoro, lealdade, honestidade e probidade na prática diária de boa administração e eficiência que cobra do agente público a realização de suas tarefas com presteza e perfeição.

Ainda, no âmbito do artigo 37 e sua aplicação aos atos da Administração Pública, vale enfatizar que, aparentemente, o suprimento dos cofres públicos parece figurar como valor mais relevante do que o fornecimento de alimentação aos trabalhadores, o que parece ser questionável frente aos padrões da moralidade e da legalidade.

A principal consequência, no caso do Decreto nº 10.854, é que novo contencioso tributário se avizinha, junto aos tribunais judiciais, visto que ao contribuinte não se admite exercer seus direitos por conta própria, sob pena de lhe ser imputada multa de ofício de 75% por inobservância da lei posta, afora outros encargos. Se o contribuinte se antecipar e levar a juízo o tema poderá ser compelido a efetivar garantia na hipótese de não obter medida que lhe assegure a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, encargo adicional para ver reconhecidos sus direitos.

Com isso se observa que o Decreto nº 10.854 logra o feito de ofender todos os princípios que regem a relação entre o Estado e o contribuinte, conforme o artigo 37 de nossa Lei Maior.

Autores

  • é advogada em São Paulo, mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo-FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU - IICS.

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