Tribuna da Defensoria

A instituição da ADPF em Minas e a nova vertente de atuação da Defensoria Pública

Autores

  • Gustavo Dayrell

    é defensor público em Minas Gerais membro eleito do Conselho Superior da Defensoria Pública biênio 2022-2024 ex-assessor judiciário do TJ-MG e ex-procurador municipal de Sete Lagoas (MG).

  • Renata Martins de Souza

    é defensora pública do estado de Minas doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG e professora de graduação do curso de Direito.

7 de dezembro de 2021, 8h00

A arguição de descumprimento de preceito fundamental é uma ação constitucional que tem por escopo evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder público, prevista no artigo 102, §1º, da Constituição da República de 1988 e regulamentada pela Lei 9.882/99.

Sua instituição no âmbito dos estados é facultativa — tal como a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) —, já que o artigo 125, §2º, da CF/88 tornou obrigatória tão somente a instituição da representação de inconstitucionalidade de leis.

Gilmar Ferreira Mendes enfatiza que a ADPF:

"Além de permitir a antecipação das decisões sobre controvérsias constitucionais relevantes, (…) poderá ser utilizada para solver controvérsia sobre a legitimidade do direito ordinário pré-constitucional em face da Constituição que, anteriormente, somente poderia ser veiculada mediante a utilização do recurso extraordinário. Ademais, as decisões proferidas pelo STF nesses processos, para o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico, editados pelas diversas entidades municipais".

Nessa esteira, George Abboud corrobora a importância do mecanismo, prelecionando que "a amplitude do conceito de ‘ato do Poder apto a de ser objeto de ADPF torna-a importante via processual de controle democrático, uma vez que essa abertura permite que atos bastantes atípicos sejam confrontados com a Constituição" [1].

Em que pese a destacada relevância do instituto, apenas quatro estados instituíram a ADPF, prevista, originariamente, nas Constituições dos estados de Alagoas (artigo 133, IX, "r", e artigo 134, caput) [2], Rio Grande do Norte (artigo 71, I, "a", e §2º) [3] e Mato Grosso do Sul (artigo 123, §3º) [4].

Abro parêntese para marcar a posição de Ariel Uarian Queiroz Bezerra, que entende também haver previsão da ADPF na Constituição do estado da Paraíba: "O Estado da Paraíba consta uma construção diferente, em que a ADPF consta de uma interpretação do seu texto alínea 'e', do inciso I, do artigo 105" [5].

A novidade é a recente instituição da ADPF em Minas Gerais por meio da Emenda à Constituição Estadual nº 110, de 5 de novembro deste ano, que acrescentou a alínea "l" ao inciso I do artigo 106, bem como o §10º ao artigo 118, ipsis litteris:

"Artigo 106 Compete ao Tribunal de Justiça, além das atribuições previstas nesta Constituição:
I – Processar e julgar originariamente, ressalvada a competência das justiças especializadas:

(…).
l) arguição de descumprimento de preceito fundamental, em face da Constituição (EC n. 110/21).
Art. 118 – São partes legítimas para propor ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade:
(…).

§10 – O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, à arguição de descumprimento de preceito fundamental, em face desta Constituição" (EC nº 110/21).

Na justificativa da proposta da PEC 59/20 — que originou a EC nº 110/21 —, de autoria deputado Doorgal Andrada, asseverou-se a importância da adoção da ADPF também em âmbito estadual [6]:

"Neste contexto, ao deixar de lado a arguição de preceito fundamental, deixou-se um limbo jurídico, permitindo que determinadas situações violadoras da Constituição não possam ser submetidas ao controle concentrado, causando enorme insegurança jurídica e enfraquecendo a supremacia constitucional.
Este é o caso, por exemplo, de normas pré-constitucionais (anteriores à Constituição Estadual) e de atos do poder público que não sejam propriamente atos normativos (como decisões judiciais e atos do Ministério Público que violem a Constituição), que ficam impedidos de ser submetidos ao órgão de cúpula do Judiciário Mineiro, pois não se adotou a arguição de descumprimento de preceito fundamental em âmbito estadual.
Assim, visando sanar essa lacuna, reputa-se fundamental a adoção deste instituto jurídico no âmbito estadual, o que certamente fortalecerá os direitos e garantias individuais dos cidadãos e garantirá a participação da sociedade civil no controle das políticas públicas e dos atos do poder público em geral, tendo em vista que o rol de legitimados para propositura das arguições é amplo, contribuindo para o que se chama de 'sociedade aberta de intérpretes'".

Ressalto, por relevante, outro importante fator que em muito contribui para a edificação desta "sociedade aberta de intérpretes" acima invocada: Alagoas e Minas Gerais também conferiram legitimidade ao defensor público-geral para atuação perante a jurisdição constitucional estadual e, por isso, são também legitimados universais no manejo da ADPF.

Nessa esteira, em 10 de novembro a defensoria mineira, por meio de seu defensor público-geral, propôs a primeira ADPF [7] perante o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, buscando o reconhecimento da não recepção dos dispositivos pré-constitucionais da Lei nº 979, de 12 de dezembro de 1977, de Guaranésia (MG) (Código Tributário Municipal), que instituíram as taxas de serviços de pavimentação, taxas de limpeza pública e taxas de conservação de calçamento.

Já havia sido proposta pela instituição ação direta de inconstitucionalidade em face dos referidos dispositivos, apontando a ausência de especificidade e divisibilidade dos tributos. No entanto, a ação foi extinta por ausência de interesse processual, justamente em razão do ato normativo ter sido editado sob a égide de sistema constitucional anterior [8].

E, ante a impossibilidade de manejo de ação civil pública em matéria tributária (artigo 1º, parágrafo único, da LACP), percebe-se que ADPF veio para reparar verdadeiro déficit de proteção de direitos fundamentais, colmatando este limbo que enfraquecia a supremacia constitucional.

A boa utilização do mecanismo, especialmente pela Defensoria Pública, poderá representar importante avanço na proteção de direitos fundamentais, buscando correções em estados de coisas inconstitucionais, bem como do conjunto de decisões judiciais e correntes interpretativas violadoras de preceitos fundamentais.

Nesse ponto, destaca-se que as Coordenadorias de Atuação Estratégica (CAEs), criadas no âmbito da DPMG (Deliberação nº 196 do Conselho Superior), por serem órgãos de atuação de natureza permanente e de abrangência estadual, podem desempenhar importante papel na identificação, e encaminhamento, de tais desconformidades.

Cumpre ter presente, ainda nesse ponto, o fato de que em relação ao argumento de que o mecanismo de controle difuso seria mais democrático que o abstrato, imperioso reconhecer que o diminuto número de defensores — atuantes em menos de metade das comarcas do estado de Minas Gerais — reforça o argumento de que, a despeito das vantagens inquestionáveis do modelo difuso, o manejo dos mecanismos de controle abstrato pode figurar como mais uma ferramenta de emancipação de enorme contingente de pessoas que encontram obstáculos quanto ao acesso à Justiça em virtude da escassez de defensores em seus municípios, além de implicar democratização do exercício da jurisdição constitucional (Souza, p. 25).

Quanto ao aspecto procedimental da ADPF estadual, não houve até o momento edição de lei estadual regulamentando o tema, e tampouco modificação do regimento interno do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, razão pela qual as normas gerais da Lei 9.882/99 são aplicadas de forma analógica e supletiva (Bezerra, 2021, pág. 89).

Por fim, não é demais consignar que os antecedentes da ADPF remontam ao agravo constitucional (verfassungsbeschwerde) previsto no artigo 93-A da Constituição Federal alemã (GG), sendo da essência do instituto a utilização por qualquer um do povo.

Assim, sendo a ADPF importada com uma legitimação bem mais restrita, e em razão da Defensoria Pública ser a porta-voz dos vulnerabilizados, que representam imensa maioria da população brasileira, conclui-se ser cada vez mais necessário o efetivo e adequado o manejo da ação pela instituição, viabilizando maior promoção de direitos humanos e proteção dos direitos fundamentais.

 

Referências bibliográficas
ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil. 2020. Pág. 510.

BEZERRA, Ariel Uarian Queiroz. Controle Concentrado de Constitucionalidade dos Estados-Membros, Curitiba. Juruá Editora. 2021. Pág 82.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

DAYRELL, Gustavo. A atuação da Defensoria de MG no controle concentrado de constitucionalidade. In Consultor Jurídico (ConJur). Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-abr-20/tribuna-defensoria-atuacao-defensoria-mg-controle-constitucionalidade.

MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. In: Curso de Direito Constitucional, 4ª edição, Editora Saraiva, 2009. Pág. 1195.

MINAS GERAIS (Estado). Constituição (1989). Constituição do Estado de Minas Gerais. Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.

MINAS GERAIS (Estado). Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais. PEC 59/2020. Disponível em: https://www.almg.gov.br/atividade_parlamentar/tramitacao_projetos/texto.html?a=2020&n=59&t=PEC

SOUZA, Renata Martins. Controle de constitucionalidade e defensoria: por uma jurisdição democrática e não seletiva. Belo Horizonte: D’ Plácido, 2021.

 


[1] Abboud, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 4. Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil. 2020. Pág. 510.

[2] "Artigo 133 — Compete ao Tribunal de Justiça, precipuamente, a guarda da Constituição do Estado de Alagoas, cabendo-lhe, privativamente: (…).
IX – processar e julgar, originariamente: (…).

r) a arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição.
Art. 134. Podem propor ação de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo estadual ou municipal, em face desta Constituição, bem assim de ato que descumpra preceito fundamental dela decorrente".

[3] "Artigo 71 — O Tribunal de Justiça tem sede na Capital e jurisdição em todo o território estadual, competindo-lhe, precipuamente, a guarda desta Constituição, com observância da Constituição Federal, e:
I – processar e julgar, originariamente:
a) a arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição, na forma da lei".

[4] "Artigo 123, §3º — A arguição de descumprimento de norma de eficácia plena, de princípio ou de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Tribunal de Justiça".

[5] "Artigo 105 — Compete ainda ao Tribunal de Justiça: I – processar e julgar: (…).
e) a representação para assegurar a observância de princípios indicados nesta Constituição".

[7] ADPF n. 1.0000.21.242265-3/000. Ressalte-se que o sistema de cadastramento do TJ-MG não foi atualizado para contemplar a ADPF e, por isso, a ação foi cadastrada/distribuída como ação direta de inconstitucionalidade.

Autores

  • é defensor público em Minas Gerais, membro eleito do Conselho Superior da Defensoria Pública, biênio 2022-2024, ex-assessor judiciário do TJ-MG e ex-procurador municipal de Sete Lagoas (MG).

  • é doutora em Direito Público, mestre em Teoria do Direito pela PUC Minas, professora de graduação do curso de Direito e defensora pública do estado de Minas Gerais.

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