Território Aduaneiro

Preferências tarifárias e tarifa externa comum nos lindes do território aduaneiro

Autor

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

7 de dezembro de 2021, 8h00

Bem-vindo novamente ao Território Aduaneiro, sua coluna semanal da ConJur que aborda as questões de Direito Aduaneiro e comércio internacional mais relevantes!

Spacca
Como tivemos oportunidade de ler no artigo de abertura desta coluna, o conceito de território aduaneiro dos países e blocos está sempre atrelado à área de aplicação da legislação aduaneira de cada ente [1]. Contudo, a definição desse território não é uníssona e tem encontrado diferentes matizes na normativa de países e organismos internacionais, seja na Europa, na América do Sul, seja em outras regiões do globo.

O território aduaneiro é definido pela legislação de cada país ou bloco e pode ter enclaves e exclaves. Por exemplo, certas partes do território nacional, especialmente as zonas francas, para muitos, não constituem o território aduaneiro [2]. Cabe lembrar que o Brasil não adotou essa corrente, até porque a Zona Franca de Manaus [3] tem características muito peculiares e, assim, tanto a Zona Franca quanto as áreas de livre comércio integram o território aduaneiro brasileiro.

Na verdade, no Brasil, ficamos limitados às definições da nossa legislação, enquanto não temos vigente o Código Aduaneiro do Mercosul estabelecendo o território aduaneiro mercosulino [4].

Conforme se observou no primeiro artigo desta coluna, originalmente no Brasil não havia uma preocupação de distinção entre território aduaneiro e território nacional. Nossa "lei aduaneira", o Decreto-Lei nº 37/1966, não se preocupava com a distinção, de forma que a legislação se limitava a prescrever que o território aduaneiro compreende o território nacional [5].

Mas qual a abrangência do território aduaneiro do Brasil? Qual a relevância dessa definição? Qual a importância para o controle aduaneiro e para a tributação da importação?

Comecemos discorrendo sobre os limites do território aduaneiro brasileiro. Ele compreende realmente todo o território nacional e também as áreas de controle integrado (ACIs) em regiões limítrofes do Brasil com outros países do Mercosul, mesmo que tais ACI estejam no território nacional dos países vizinhos. É da leitura do artigo 3º, §5º, do Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009) que inferimos que essas ACIs [6] integram o território aduaneiro brasileiro [7].

O primeiro ponto a ser observado é que, para os acordos pertinentes ao Direito Aduaneiro e ao comércio internacional, é absolutamente relevante o conceito de território aduaneiro. Ou seja, os países celebram acordos sobre controle aduaneiro, preferências tarifárias considerando o território aduaneiro de cada signatário. Vale anotar que muitas vezes são negociadas nos acordos disposições para incluir ou excluir mercadorias originárias de parte do território aduaneiro, mas esse território continua sendo a referência [8].

Esse aspecto internacional se reflete na legislação interna do Brasil. Ou seja, é imprescindível que tenhamos conceito e definição de território aduaneiro — ainda que, no caso do Brasil, muito próximos do de território nacional — para que as legislações decorrentes de acordos internacionais de matéria aduaneira e de comércio internacional sejam efetivamente aplicadas no Brasil e também aos bens produzidos no país (originários do nosso território aduaneiro) exportados.

Dessa forma, é necessário possuir definição própria de território aduaneiro, embora na nossa vida aduaneira cotidiana o conceito de território aduaneiro se confunda frequentemente com o de território nacional. Isso porque, se não dispuséssemos da definição na legislação, teríamos dificuldades para aplicar a legislação aduaneira decorrente de acordos internacionais e também para desfrutar as preferências tarifárias concedidas por outros países para os produtos originários do nosso território aduaneiro.

Então, o primeiro aspecto de importância prática da definição do território aduaneiro é que este é a referência dos acordos internacionais e a aplicação desses acordos deve ser realizada em relação ao território aduaneiro (considerada a definição de cada signatário).

Outro ponto que merece referência é que legislação aduaneira nacional se aplica ao território aduaneiro brasileiro, logo a jurisdição aduaneira abrange todo esse território e nossa autoridade aduaneira tem o poder de fiscalizar, exigir o cumprimento da normativa aduaneira brasileira, cobrar tributos e impor multas em todo o território aduaneiro, ainda que esteja fora do território nacional, como pode ocorrer nas áreas de controle integrado [9]. Um bom exemplo é a área de controle integrado (ACI) São Borja (Brasil)/Santo Tomé (Argentina). Nessa ACI, as fiscalizações brasileira e argentina de cargas ocorrem de forma integrada no lado argentino. Ou seja, a fiscalização brasileira trabalha, aplica a legislação aduaneira do Brasil e cobra tributos e multas brasileiros no território nacional argentino.

Por sua vez, a definição do território aduaneiro é também fundamental para a incidência do imposto sobre a importação e, naturalmente, para a imposição pelo Brasil da tarifa externa comum (TEC), bem como para a exigência dos demais tributos na importação.

A incidência do imposto sobre a importação se dá quando uma mercadoria [10] estrangeira é importada. Considera-se ocorrida a importação no momento do registro da declaração de importação, trata-se do aspecto temporal, sendo necessário que essa mercadoria adentre o território aduaneiro brasileiro [11], em regra, que tenha sido introduzida na a parcela do território aduaneiro denominada zona primária [12].

Assim, verificada a introdução no território aduaneiro, caracteriza-se a hipótese de incidência do imposto sobre a importação, devendo, em regra, ser aplicada a tarifa externa comum (TEC). Desse fato, decorre o dever de recolher o tributo, a não ser que a importação se enquadre em algumas das numerosas imunidades, isenções, reduções, margens de preferências [13], alíquotas zero ou ainda dos regimes aduaneiros especiais tidos como suspensivos na importação.

As hipóteses de incidência do IPI vinculado à importação, da contribuição para o PIS/Pasep-importação e da Cofins/importação, do ICMS incidente na importação e, no caso de alguns combustíveis, da Cide-combustíveis também estão relacionadas à entrada da mercadoria no território aduaneiro.

Cabe lembrar que a questão pertinente à incidência do imposto sobre a importação é tão relevante que a aplicação da tarifa externa comum serve como parâmetro para determinar o próprio território aduaneiro em muitos países.

Em suma, a aplicação da legislação aduaneira do Brasil e a exigência dos tributos sobre a importação ocorrem nos lindes do território aduaneiro definido pela legislação brasileira em consonância com os acordos internacionais comerciais/aduaneiros dos quais somos signatários, e as margens de preferências tarifárias com as quais o Brasil é beneficiado em regra alcançam as mercadorias exportadas originárias do nosso território aduaneiro.


[1] Nesse sentido é a indicação de território aduaneiro constante do Capítulo 2, Definições, da Convenção de Kyoto Revisada.

[2] A legislação da Argentina prescreve no artigo 2º do seu Código Aduaneiro que o território aduaneiro é onde se aplica a mesma tarifa externa e as mesmas proibições de caráter econômico às importações. O Código Uruguaio adota o conceito da Convenção de Kyoto Revisada, que é um pouco mais oblíquo, contudo na mesma linha, no artigo 160 do Código Uruguaio está disposto que as zonas francas são partes do território uruguaio nas quais as mercadorias introduzidas serão consideradas como se não estivessem no território aduaneiro do país.

[3] Fica aqui plantado um tema, a Zona Franca de Manaus, para aguçar as reflexões do leitor e deixá-lo na expectativa dos próximos artigos desta coluna. O que faz a ZFM especial e por que o Brasil, em oposição às políticas adotadas por muitos países, não excluiu a ZFM do território aduaneiro?

[4] O Código Aduaneiro do Mercosul (Decisão CMC no 27/2010), aprovado pelo Senado brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 149, de 2018, ainda está no processo de aprovação interna por membros do Mercosul. O CAM é outro tema com importância crescente, que deverá aparecer com destaque nesta coluna.

[5] No meu primeiro trabalho de fôlego sobre a matéria aduaneira, que se encontra no livro "Regimes Aduaneiros Especiais", publicado em 2002 como resultado da minha tese de mestrado em Direito, vi-me nessa emboscada: o artigo 33 do Decreto-Lei nº 37/66 indica a extensão do território aduaneiro, todavia o artigo 1º do mesmo diploma legal usa a expressão "território nacional" como sinônima de território Aduaneiro (MEIRA, Liziane Angelotti. Regimes Aduaneiros Especiais. São Paulo: IOB, 2002, p. 117-120).

[6] Na verdade, o Regulamento Aduaneiro afirma que a jurisdição dos serviços aduaneiros brasileiros se estende às ACI situadas nas fronteiras do Brasil com outros países do Mercosul. Deixamos os temas "Áreas de Controle Integrado" e "Jurisdição Aduaneira" já destacados como relevantes para abordagem em outros artigos desta coluna e nos limitamos a depreender da letra do Regulamento a interpretação de que essas ACI, mesmo no território nacional de outros países do Mercosul, integram nosso território aduaneiro.

[7] O §5º do artigo 3º do Regulamento Aduaneiro tem fulcro no Acordo de Alcance Parcial para a Facilitação do Comércio no 5 (Acordo de Recife), promulgado pelo Decreto nº 1.280, de 14 de outubro de 1994, bem como no Segundo Protocolo Adicional ao Acordo de Recife, artigo 3º, alínea "a", internalizado pelo Decreto nº 3.761, de 5 de março de 2001.

[8] O Brasil, com frequência, tem que negociar regras especiais para a Zona Franca de Manaus, verbi gratia, o Primeiro Protocolo Adicional ao Acordo de Complementação Econômica nº 74 (Brasil-Paraguai, internalizado pelo Decreto nº 10.493, de 23 de setembro de 2020). Ele se aplica aos bens originários dos territórios aduaneiros dos dois países signatários, mas o artigo 28 do documento excluiu expressamente os produtos automotivos produzidos nas zonas francas.

[9] Informações sobre as ACI são disponibilizadas pela Secretaria da Receita Federal do Brasil neste sítio: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/importacao-e-exportacao/recinto-aduaneiros/area-de-controle-integrado-aci. Acesso em 28 nov. 2021.

[10] Mercadoria ou produto? Outra dúvida que acompanha muitos aduaneiros! Mas em relação a esta questão, não há necessidade de aguardar mais, basta ler os esclarecimentos constantes do segundo artigo desta coluna, nas exímias palavras do colega Rosaldo Trevisan.

[11] Sobre as especificidades das norma de incidência do imposto sobre a importação, sugere-se leitura de MEIRA, Liziane Angelotti. Tributos sobre o Comércio Exterior. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 312-402.

[12] Aspectos relacionados à zona primária, especialmente a zona de processamento de exportação (ZPE), são também temas importantes, que serão objeto de análise nesta coluna.

[13] Regras de origem preferenciais e não preferenciais é mais uma tema relevante para o comércio internacional. De fato, os participantes deste coluna têm muito trabalho pela frente!

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    é conselheira e presidente de Turma no Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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