Opinião

Sobre o 'erro médico': culpa, intercorrência ou caso fortuito?

Autor

  • Mario Warde

    é cirurgião plástico doutor em Ciências Médicas pela Faculdade de Medicina da USP bacharel em Direito e perito médico com atuação no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP).

6 de dezembro de 2021, 13h03

Ao longo de minha vida médica, sempre tive comigo o dito popular de que "se fazer uma cutícula pode trazer consequências desagradáveis, imagine um procedimento médico!".

Isso, é evidente, em razão de intercorrências que podem ocorrer. Mesmo quando o médico faz tudo com absoluto rigor e segue todos os protocolos, ainda assim o paciente pode se deparar com situações que, infelizmente, são desagradáveis ao se submeter a um procedimento médico, qualquer que seja.

Seja numa aplicação de toxina botulínica (botox) em consultório, para fins estéticos, seja numa cirurgia para remoção do pâncreas e estômago por conta de um tumor agressivo, sempre a equipe médica torce pelo melhor, é claro! Mas algo de errado pode acontecer pelo caminho. E quando se diz "errado", pode-se dividir esta situação em três modalidades diferentes:  O errado resultante de erro do profissional, que por conta de alguma inabilidade do tipo negligência, imperícia ou imprudência em sua prestação de serviços médicos, pode levar a um resultado danoso em relação àquele procedimento; o errado no sentido de uma "intercorrência médica", que é algo previsto na medicina, como uma complicação que pode, infelizmente, ocorrer; e o dar errado de forma inesperada, uma fatalidade, algo que não estava previsto.

Na Medicina isso, às vezes, é muito difícil de distinguir, e merece, sem dúvidas, uma apuração cuidadosa do caso.

Infelizmente, a palavra "erro", com o cunho de "erro médico", tornou-se forte e midiática, alvoroçando meios de comunicação, redes sociais, e muitas vezes provocando um julgamento antecipado, sem provas, e pior: sem o direito constitucional do contraditório por parte do médico, que em muito pouco tempo recebe o famigerado e pesaroso carimbo social de "culpado".

Mas esse profissional médico foi culpado mesmo? Juridicamente ele é entendido como tendo cometido um erro se caracterizada uma ou mais destas três situações em sua prestação de serviços: Negligência (deixou de fazer algo); imprudência (passou do ponto em alguma ação médica); ou imperícia (a mais difícil de se caracterizar, geralmente por conta do não seguimento de protocolos médicos ou entendimentos na Medicina).

Mas tudo isso é muito difícil de entender até no Judiciário, onde juízes de Direito necessitam chamar para perto peritos médicos que, através de investigação clínica, trazem seus entendimentos sobre a má prática médica do profissional em questão, ou não. Como os juízes, o público em geral também não tem esse entendimento. O entendimento mais fácil é o lado do paciente, que, sem dúvida, está sofrendo. Mas está sofrendo por quê? Essa é a pergunta que tem de ser feita.

Nada melhor do que exemplos para elucidar algumas situações: o médico João fez um preenchimento de contorno facial em Maria  o que midiaticamente tem se chamado de "harmonização facial" —, e Maria ficou com um centímetro de necrose (morte) de pele na asa do nariz. Talvez a pergunta que passe pela mente de todos os leitores seja: isso é normal? Não, claro que não é normal. Mas pode ocorrer.

Logo, está descartada a hipótese de um caso fortuito, ou seja, um revés, uma desventura, um azar. Por quê? Porque esse evento está descrito na literatura médica. Apesar de raro, o material de preenchimento pode entupir vasos sanguíneos e provocar uma baixa de oxigênio numa dada região, explicando o sofrimento de pele que Maria teve. Agora restam as perguntas: foi realmente uma intercorrência médica ou foi culpa do serviço médico prestado pelo dr. João? Nada pode ser dito enquanto não houver uma exímia elucidação do caso. Esse é o trabalho dos peritos judiciais e dos assistentes periciais quando essa pergunta vai ao Judiciário.

Infecções também são casos fortuitos? Não. Elas estão previstas em literatura e devem ser tratadas conforme protocolos infectológicos pertinentes. Culpa do médico? Apenas se ficar comprovado que ele subtraiu passos de sua prestação de serviços, a ponto de o paciente infectar-se — afinal, as infecções comuns, assim como as hospitalares, são em sua maioria complicações, ou seja, intercorrências inerentes àquele tipo de procedimento. E, nesses casos, cabe um vasto leque de questionamentos pertinentes, como: a infecção foi provocada por bactéria hospitalar ou não? Em caso de resposta positiva, isso envolve o hospital também. O micro-organismo causador da infecção é agressivo e resistente a antibióticos comuns? Quanto tempo depois do ato médico se desenvolveram os sintomas? O médico cumpriu protocolos? O paciente cumpriu protocolos?

Enfim, a investigação médica consegue, sim, diferenciar o que ocorreu. À base de muita coerência, sensatez e imparcialidade.

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  • é cirurgião plástico, doutor em Ciências Médicas pela Faculdade de Medicina da USP, bacharel em Direito e perito médico com atuação no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP).

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