Opinião

A sindacabilidade dos atos estatais não administrativos

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6 de dezembro de 2021, 9h08

Recentemente, grande alvoroço foi causado por decisão monocrática (depois confirmada pelo Pleno) da ministra Rosa Weber, do STF, no âmbito da ADPF 854, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), determinando que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal modificassem as chamadas regras do "orçamento secreto". Não obstante, por óbvio não se trata, tecnicamente falando, de "orçamento secreto" (black budget, na prática anglo-saxã, ou fond spéciaux, na França), já que na sua versão "autêntica" não há publicidade nem sobre quem teve a iniciativa do dispêndio, nem sobre o destino deste.

Na sua versão nacional, o "segredo" limita-se à não identificação (e, consequentemente, a "paternidade") de qual parlamentar solicitou ao relator do orçamento a inclusão de tal ou qual "emenda do relator".

Ainda que discutível desde o ponto de vista da democracia enquanto "transparência", essas emendas de relator são utilizadas desde a promulgação da CF/88, não tendo sofrido maiores contestações até o presente. A par do possível casuísmo de um "descobrimento" tardio do mecanismo (33 anos após a promulgação da CF), causa espécie a argumentação utilizada pela ministra em sua decisão liminar (depois confirmada pelo Pleno): segundo esta, tratar-se-ia de aplicar o artigo 37, caput, da CF, que requer, sem embargo,

"Artigo 37  A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…)".

Importa notar que a CF fala em "administração pública de qualquer dos Poderes", ou seja, a CF fala daqueles atos administrativos praticados por quaisquer dos poderes da União, do Distrito Federal ou dos municípios, mas não recobre a totalidade dos atos estatais realizados no âmbito desses mesmos poderes. O entendimento contrário poderia dar a entender que as decisões judiciais, por exemplo, estariam submetidas ao princípio da "eficiência", estando o julgador manietado a essa corrente utilitarista de interpretação da norma. Ou então, que atos materiais, quais sejam as conversas do presidente da República com seus ministros, estariam sujeitos ao princípio da "publicidade", devendo ser prontamente registrados e o seu conteúdo, dado a conhecer ao público.

No imbróglio, trata-se de entender duas coisas:

a) Pode ser considerado o regramento do procedimento atual de formação das emendas de relator um ato administrativo?;

b) Pode o STF, diante da necessária separação entre os poderes, interferir nos procedimentos internos das casas?

À primeira pergunta, não hesitamos em responder negativamente: os atos administrativos de modo algum se confundem com os atos políticos (ou governamentais), que são aqueles praticado pelos agentes políticos no desempenho das funções precípuas, sejam estas executivas, legislativas ou judiciárias, de acordo com a competência estabelecida na Constituição Brasileira. Os atos políticos estão diretamente relacionados à liberdade de planejar e direcionar as atividades públicas, não sendo um ato limitado a um poder ou um órgão. Mas talvez a mais importante especificidade dos atos políticos em relação aos atos administrativos seja o fato de os atos administrativos realizarem-se sempre sob regime de subordinação: por caracterizarem-se como declarações da Administração Pública que visam a dar cumprimento a disposições legais (ou, mais raramente, diretamente constitucionais), que dispõem sobre direitos e deveres dos administrados e estabelecem regras aplicáveis à administração de qualquer dos poderes, estes realizam-se sempre em regime de subordinação. Explica-se: mesmo quando praticado por agente público não subordinado (agente político), o ato administrativo tem de obedecer aos mesmos requisitos de legalidade estrita, moralidade, publicidade, finalidade e outros. Assim, a título de exemplo, na hipótese em que o Congresso Nacional realize um concurso público de provas e títulos para preencher vagas do pessoal administrativo das casas, um candidato eventualmente prejudicado na ordem de classificação poderia se socorrer do Poder Judiciário para ter seu direito assegurado.

Já o regramento que as casas do Congresso Nacional dão a si mesmas no que concerne ao processo legislativo é um ato político, derivado diretamente da soberania popular que elegeu os representantes de cada uma das casas. Tal não significa que tais atos sejam por natureza insindacáveis pelo Poder Judiciário, tal como ocorre na doutrina europeia — notadamente na doutrina francesa —, mas que tal sindacabilidade (garantida, em qualquer caso, entre nós, pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição — "Artigo 5°, XXXV a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito") só pode ocorrer em caso de violação à Constituição.

Com efeito, submeter os atos políticos ao escrutínio do Poder Judiciário (para além da matéria estritamente constitucional) seria aceitar uma proeminência deste sobre os demais poderes, inaceitável no Estado democrático de Direito. Certamente, o fato de, no processo de formação da lei orçamentária, existir um "resto" de emendas que podem ser elaboradas pelo relator, sem que este mencione qual foi o(s) parlamentar(es) que mais influiu para a sua concretização, longe de caracterizar "abuso", pode ser tranquilamente considerada uma praxe exigível pela complexidade do processo formador das leis orçamentárias. De qualquer modo, o juízo sobre a conveniência e oportunidade do procedimento, é algo muito mais afeto à prudência e descortino do Parlamento do que ao Poder Judiciário.

Para finalizar, podemos dizer que a intervenção intromissiva do Poder Judiciário nas emendas de relator esbarra em pelo menos três óbices, sendo dois de natureza jurídica e um de natureza prática: em primeiro lugar, não se tratam de simples atos administrativos, a serem sindacados pelo Judiciário, mas de atos políticos; em segundo lugar, não pode o Judiciário interferir no processo interno de formação da lei, a não ser que este viole frontalmente a CF; e, finalmente, minúcias, problemas e complexidades do procedimento de formação das leis orçamentárias, definitivamente, por razões técnico-práticas, não são tema afeto ao Poder Judiciário.

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