Opinião

A representação fiscal para fins penais e a justa causa nos crimes fiscais

Autores

  • Vitória Parizzi Nogueira

    é advogada criminalista e pós-graduanda em Direito Penal.

  • Matheus da Silva Sanches

    é advogado criminalista mestrando em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino (ITE) de Bauru (SP) pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal (Toledo Prudente) pós-graduado em Direito Penal Econômico (Coimbra-Portugal) professor de Prática Jurídica Penal no Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente e membro da Associação Brasileira dos Advogado Criminalistas (Abracrim).

6 de dezembro de 2021, 18h08

Publicada em 2018, a Resolução 1750 da Receita Federal veio para regulamentar a representação fiscal para fins penais no tocante a fatos que possam configurar crimes contra a ordem tributária, contra a Previdência Social,  delitos de contrabando ou descaminho, crimes contra a Administração Pública federal, em detrimento da Fazenda Nacional ou contra Administração Pública estrangeira, de falsidade de títulos, papéis e documentos públicos e de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores, e também para subsidiar investigação de improbidade administrativa.

No que se refere aos crimes contra a ordem tributária, a portaria dispõe que o Fisco, no exercício de suas atividades, ao verificar indícios de uma possível ocorrência de crime tributário, poderá reunir as informações obtidas, formar uma conclusão e remeter a documentação ao Ministério Público para tomada das medidas cabíveis.

Destaca-se que o sistema processual penal, ainda que implicitamente, é acusatório, conforme entendimento das cortes superiores (STF AP 883/DF e STJ H.C. 329.128) e até alguns Tribunais de Justiça (TJ-SP Apelação 1500252-33.2020.8.26.0549).

Verifica-se a constitucionalidade da portaria, bem como do instituto que, a princípio, não viola os ritos de persecução. Pelo contrário, pode até ser considerado um mecanismo de celeridade, ante o caráter dispensável do inquérito policial.

Contudo, a interpretação dada a esses procedimentos na prática extrapola a sua finalidade, haja vista que, com certa frequência, ao tomar conhecimento das possíveis infrações, o Ministério Público oferece a denúncia sem a adoção de quaisquer diligências complementares, levando em consideração apenas as informações trazidas pelo Fisco, carecendo o feito de justa causa penal.

Deve-se reconhecer que a representação fiscal, muita das vezes, apura corretamente a materialidade do crime, pois trata-se de delitos que exigem determinado conhecimento técnico alheio às instituições persecutórias, em razão de sua especificidade. Assim, o Fisco torna-se grande aliado do Estado para apurar a materialidade nos crimes tributários.

Todavia, apesar de os órgãos fazendários gozarem de recursos para apurar a materialidade de um eventual delito tributário, não possuem a mesma capacidade para apurar a autoria desta espécie de infração.

Isso se dá em razão do regime de responsabilidade do Direito Tributário ser diverso do Direito Penal. Assim, a representação fiscal, por si só, não pode ser considerada apta na formação de justa causa penal.

Por englobar a responsabilidade objetiva, o Direito Tributário é muito mais amplo, pois atinge diretores e gerentes de pessoas jurídicas, ainda que estes não tenham concorrido para o ilícito tributário. Conforme se extrai do artigo 136 do Código Tributário Nacional, salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.

Por outro lado, o Direito Penal particulariza-se, entre outros fatores, por seu caráter subsidiário, ou seja, somente se deve recorrer a intervenção do direito penal em situações extremas, como última saída (última ratio) (Estefam, 2020), por se tratar de um mecanismo que priva o indivíduo de um de seus direitos básicos: a liberdade.

Nesse sentido, o ordenamento jurídico preceitua que a responsabilidade penal deve ser subjetiva, ou seja, decorre obrigatoriamente de dolo ou ao menos de culpa, quando a modalidade for prevista em lei. Sendo assim, para que haja a responsabilização penal, é necessário identificar quem de fato concorreu para a prática da infração penal, quem praticou o núcleo do tipo ou, ao menos, tinha conhecimento e concorreu para o resultado, salvo nas hipóteses de crimes ambientais.

Dessa forma, conclui-se que responsabilidade penal, ao menos no plano teórico, não pode ser presumida, tão pouco decorrer do mero exercício de determinado cargo, mandato ou profissão.

Em razão da previsão de responsabilidade objetiva no plano tributário, ao elaborar uma representação fiscal, o Fisco indica aqueles indivíduos integrantes do contrato social da pessoa jurídica, tendo em vista a responsabilidade pessoal prevista no artigo 135, CTN, tornando a autoria do delito uma consequência automática por estar consignado no contrato social.

Ocorre que, as instituições persecutórias, ao tomarem contato com a representação fiscal, na grande maioria das vezes dão início a ação penal sem adotar demais diligências, partindo de uma conduta de atribuição de responsabilidade objetiva aos indivíduos inseridos no contrato social da pessoa jurídica.

É extremamente corriqueiro o oferecimento de denúncia contra diretores, dirigentes, sócios, proprietários de empresas, sem que se indique corretamente qual foi a vinculação subjetiva entre a conduta de determinada pessoa e o crime supostamente praticado no decorrer da atividade empresarial. Na busca por uma responsabilização penal por determinada conduta, acusa-se os integrantes do contrato social sem fazer uma demonstração, ainda que indiciária, de que aquela pessoa tinha conhecimento da prática do crime de natureza tributária.

Ressalta-se ainda que essa habitualidade não decorre apenas de um comodismo do titular da ação penal, mas também da anuência dos magistrados de primeiro grau, que ao se depararem com uma denúncia limitada a acusar os sócios, dirigentes ou representantes de uma empresa, sem identificar efetivamente sua responsabilidade, recebem-na, compactuando com a omissão.

Em 2014, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça fixou entendimento no sentido de se exigir a delimitação da conduta dos acusados nesse tipo de delito:

"(…) 3. A imputação fática encontra-se insuficiente delineada na denúncia, visto que não é possível identificar, nos termos do que dispõe o artigo 41 do Código de Processo Penal, qual a responsabilidade do paciente no fato, vale dizer, qual a conduta ilícita supostamente por ele praticada que teria contribuído para a consecução do resultado danoso.
4. O simples fato de o acusado ser sócio e administrador da empresa constante da denúncia não pode levar a crer, necessariamente, que ele tivesse participação nos fatos delituosos, a ponto de se ter dispensado ao menos uma sinalização de sua conduta, ainda que breve, sob pena de restar configurada a repudiada responsabilidade criminal objetiva.
(…)
6. Não se pode admitir que a narrativa criminosa seja resumida à simples condição de acionista, sócio ou representante legal de uma pessoa jurídica ligada a eventual prática criminosa. Vale dizer, admitir a chamada denúncia genérica nos crimes societários e de autoria coletiva não implica aceitar que a acusação deixa de correlacionar, com o mínimo de concretude, os fatos considerados delituosos com a atividade do acusado (…)"
(HC 224.728/PE, relator ministro Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 10/06/2014, DJe 27/06/2014).

Não obstante, atualmente o que ainda predomina é o recebimento de denúncias genéricas, sob a clássica alegação de que em crimes coletivos é dispensável a prova de participação de seus integrantes para o oferecimento da denúncia, ou ao menos mantém-se a ideia com um texto mais rebuscado.

Ao nosso ver, tal postura não somente viola toda a sistemática penal, ante a ausência de permissivo legal (responsabilidade objetiva), bem como a presunção de inocência, valor este garantido constitucionalmente.

A título de exemplo, tem se admitido como indicio de participação a condição de gestor (contratual ou de fato) de empresas de pequeno porte (AgRg no RHC 103.206/PR), contudo, é comum a existência de empresas cujo contrato social prevê o nome do cônjuge ou dos filhos apenas para fins de registro perante a junta comercial, sem que a pessoa tenha conhecimento dos atos de gestão da empresa, a que seja apenas um sócio investidor, não participando das decisões.

Em suma, ainda que não se fundamente expressamente, esse é o raciocínio que ainda vem sendo aplicado no Judiciário brasileiro, salvo algumas exceções (STJ, RHC 105.167/SP).

Ante os elementos expostos, reitera-se a legitimidade da representação fiscal para dar início a uma investigação, porém, para a formação de justa causa penal é imprescindível a adoção de novas medidas a fim de se apurar precisamente a autoria do delito, sob pena de se instituir uma responsabilidade objetiva, fato este que, embora vedado pelo ordenamento, se faz muito presente nas ações penais.

Concluímos que os crimes tributários, no atual cenário, devem ser investigados com maior zelo pelas instituições persecutórias, ocasião em que os subsídios das instituições fazendárias não sejam a única fonte para formação de justa causa penal, ante as periculosidades da responsabilidade penal.

Por outro lado, caso seja do entendimento pela responsabilidade objetiva neste segmento, que seja instituída mediante lei, ao contrário do que vem sendo adotado.

 

Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

BRASIL. Código Penal (1940). Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.

BRASIL. Código Tributário Nacional (1966). Decreto Lei nº 5.172 de 25 de outubro de 1966

BRASIL. Receita Federal do Brasil (2018). Portaria nº 1.750 de 12 de novembro de 2018. Dispõe sobre representação fiscal para fins penais referente a crimes contra a ordem tributária, contra a Previdência Social, e de contrabando ou descaminho, sobre representação para fins penais referente a crimes contra a Administração Pública Federal, em detrimento da Fazenda Nacional ou contra administração pública estrangeira, de falsidade de títulos, papéis e documentos públicos e de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores, e sobre representação referente a atos de improbidade administrativa.

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: MÉTODO, 2016.

DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 6ª ed. rev., atual. e ampl. — São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

ESTEFAM, André. Direito penal, parte geral: artigos 1º a 120. 9ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

STF. Apelação 883/DF, relator ministro Alexandre de Moraes, Primeira Turma. DJe 14.05.2018.

STJ. AgRg no RHC 103.206/PR, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, T6 — Sexta Turma, julgado em 11/06/2019, DJe 25/06/2019.

______. Habeas Corpus 224.728/PE, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, T6 – Sexta Turma, julgado em 10/06/2014, DJe 27/06/2014.

______. Habeas Corpus 329.128/PI, Relator Ministro Jorge Mussi, T5 — Quinta Turma, DJe  23/05/2018.

______.RHC 105.167/SP, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, T5 — Quinta Turma, julgado em 21/03/2019, DJe 02/04/2019.

TJSP. Apelação 1500252-33.2020.8.26.0549. relator Desembargador Newton Neves. Julgado em 13/10/2021. DJe 15/10/2021.

Autores

  • é advogada criminalista e pós-graduanda em Direito Penal.

  • é advogado criminalista, mestrando em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino (ITE) de Bauru (SP), pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal (Toledo Prudente), pós-graduado em Direito Penal Econômico (Coimbra-Portugal), professor de Prática Jurídica Penal no Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente e membro da Associação Brasileira dos Advogado Criminalistas (Abracrim)

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