Opinião

As indenizações em desapropriações por utilidade pública e o RE 922.144/MG

Autores

  • Luiz Manoel Gomes Junior

    é advogado doutor e mestre em Direito pela PUC-SP professor nos programas de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Itaúna (UIT-MG) de mestrado da Universidade Paranaense (Unipar-PR) dos cursos de pós-graduação da PUC-SP e da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Mato Grosso (FESMP-MT).

  • Ana Lúcia Ribeiro Mól

    é advogada doutoranda em Proteção dos Direitos Fundamentais pela Universidade de Itaúna (UIT) mestre em Direito Processual pela PUC-MG e professora da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).

  • Lorrane Queiroz

    é advogada doutoranda e Mestra em Proteção dos Direitos Fundamentais pela Universidade de Itaúna (UIT) e especialista em Contratações Públicas pela Universidade Castilla – La Mancha (UCLM).

6 de dezembro de 2021, 14h04

Em outubro de 2015, foi reconhecida a repercussão geral sobre a forma de pagamento das indenizações em ações de desapropriação por utilidade pública, nas hipóteses em que tenha havido depósito prévio insuficiente para fins de imissão provisória do ente público na posse no imóvel expropriado. O Tema nº 865 originou-se do RE nº 922.144/MG [1] e o início do julgamento virtual do recurso pelo Supremo Tribunal Federal, já com votos embasados em teses opostas, acende o debate sobre a questão e demanda a necessidade de se estabelecer uma leitura pós-moderna de princípios ínsitos ao direito administrativo, de modo a adequá-los às perspectivas do texto constitucional de 1988 e ao paradigma do Estado democrático de Direito.

Volvendo-se ao caso concreto, o recurso extraordinário em análise, de relatoria do ministro Luís Barroso, versa sobre ação de desapropriação proposta pelo município de Juiz de Fora (MG), com a finalidade de construção de hospital de urgência e emergência nos imóveis expropriados, sendo requerida sua imissão provisória na posse dos bens, mediante depósito prévio do valor da avaliação. Anos depois, após a conclusão do processo, apurou-se que o valor dos bens seria duas vezes maior do que o montante depositado, levando-se a questão se o pagamento dessa diferença deveria ou não seguir o regime dos precatórios, dada a previsão constitucional de que a indenização, nas desapropriações por utilidade pública, deve ocorrer de forma justa e prévia (artigo 5º, inciso XXIV, da Constituição).

No voto proferido pelo relator, o ministro Luís Barroso destaca que o sistema de pagamentos pela via dos precatórios não atende ao preceito constitucional posto em xeque, uma vez que os proprietários dos imóveis objeto de desapropriação, não obstante privados de usar, gozar e dispor dos bens por força da imissão provisória do Estado em sua posse, não recebem de imediato a indenização devida. Ao revés, aguardam por anos o adimplemento da diferença apurada entre o valor do depósito inicial e o valor da avaliação definitiva, inclusive porque, em grande parte das vezes, os precatórios sequer são quitados nos prazos previstos na Constituição.

Em função dessas circunstâncias, o relator do recurso propõe, para assegurar a aplicação do que estabelece o artigo 5º, inciso XXIV, do texto constitucional, que, nessas hipóteses, ao final da ação de desapropriação, o pagamento dessas diferenças havidas seja realizado por meio de depósito direto, salvo se a quitação dos precatórios pelo ente estatal estiver regular.

Em contraponto, o ministro Gilmar Mendes instaurou divergência, insistindo em seu voto que, por exigência constitucional estabelecida no artigo 100, o valor final do bem nas desapropriações por utilidade pública deve, sim, ser pago mediante precatório, descontado o montante do depósito prévio realizado por ocasião da imissão provisória na posse, uma vez que é essa a forma de pagamento estabelecida na Constituição em casos de sentenças proferidas contra o poder público que lhe imponham uma obrigação de pagar. Esclarece, basicamente, que tal exigência encontra-se reiterada na legislação infraconstitucional, em especial no artigo 15-B do Decreto-Lei nº 3.365/1941, estando em conformidade com as exigências impostas pelo sistema público orçamentário, que determinam a necessidade de que todas as despesas sejam previamente previstas e regulamentadas nas leis orçamentárias.

A tese proposta pelo ministro Gilmar Mendes não destoa da jurisprudência já consolidada no Supremo Tribunal Federal, que há tempos vem entendendo que a perda da posse do imóvel expropriado deve ser ressarcida ao antigo proprietário não apenas a partir do valor do bem, conforme apurado ao final do processo, mas também pela incidência dos juros compensatórios, devendo tais valores serem adimplidos pela via do precatório [2].

Contudo, esse entendimento jurisprudencial não mais encontra respaldo na perspectiva pós-moderna do Estado e de suas relações com os particulares. É de se ressaltar, a esse respeito, o especial enfoque que deve ser dado ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, base e fundamento principal da desapropriação de imóveis por utilidade pública, que vem sendo repensado dentro de uma estrutura que não mais coloca o Estado como o eixo de gravidade do sistema jurídico.

Sob essa perspectiva, o interesse público não se desponta como algo dissonante e autônomo em face dos interesses individuais. Estes, em última análise, são frações do próprio interesse público, que, por isso mesmo, não pode ser utilizado como pretexto para violação pura e simples de direitos e garantias fundamentais, mas antes deve ser o fundamento para estabelecer a sua efetiva proteção [3]. O interesse público não é, nem pode ser, utilizado como contraposição aos interesses dos cidadãos, como se necessariamente se tratasse de tese e antítese.

A ideia de verticalização despótica e autoritária da relação entre Estado e particular deve permanecer na era do absolutismo, sendo incompatível com a evolução estatal cunhada a partir da concretização do Estado de Direito, que estabeleceu ganhos sistêmicos na tutela das prerrogativas dos particulares, posteriormente potencializados pelo princípio democrático e por sua ínsita valorização da cidadania e da soberania popular [4].

Tais ganhos, que não permitem mais qualquer retrocesso, sobrelevam-se em importância ao serem incorporados na Constituição, que, atualmente, posiciona-se como norma fundante do ordenamento jurídico e estabelece a tônica da interpretação de todas as normas jurídicas, que devem ser aplicadas a partir da perspectiva que melhor se adeque ao texto constitucional.

Tomando como ponto de partida essas premissas, agora para a análise da desapropriação, é preciso considerar que tal instituto posiciona o Estado, de início, numa situação proeminente em face do particular, ao permitir uma intervenção estatal na propriedade privada, consubstanciada na transferência compulsória de certos imóveis para o patrimônio do ente estatal expropriante. Numa tentativa de reequilibrar essa relação, minorando os efeitos deletérios dessa circunstância, a Constituição exige que haja indenização justa, prévia e em dinheiro ao particular, quando se tratar de desapropriação por utilidade pública. Essa prerrogativa, aliás, é alçada à categoria de direito fundamental, estando elencado no já citado artigo 5º, inciso XXIV, do texto constitucional de 1985.

Não há dúvidas de que esse direito é assegurado quando, pela via administrativa, o poder público e o proprietário do imóvel chegam a um consenso quanto ao valor do bem e este é devidamente pago ao particular, em conclusão ao procedimento expropriatório. O questionamento surge nas hipóteses em que é preciso recorrer ao Judiciário para efetivar-se a transferência compulsória do imóvel ao Estado, especialmente quando se tem pedido de imissão provisória na posse.

É que, em tais situações, a lei exige que seja feito um depósito prévio do valor do bem, conforme avaliação efetivada de forma unilateral pela Administração Pública, que, em grande parte das vezes, não toma por base os valores praticados no mercado, ofertando-se um preço bem aquém daquele efetivamente devido. Apurado, ao final do processo, que o valor do imóvel é superior ao depósito prévio, o pagamento do montante remanescente pela via do precatório não apenas desconsidera o direito fundamental mencionado, mas também desequilibra ainda mais as partes envolvidas, posto que confere inúmeras vantagens ao Estado, em nítido detrimento do particular. Em uma palavra, impõe-se, do modo mais claro possível, a visão absolutista da supremacia do interesse público.

Nesse contexto, o proprietário do bem, além de ficar privado das várias prerrogativas ínsitas ao direito de propriedade, não usufruirá, de imediato, da indenização correspondente a tal circunstância, mas deverá aguardar por anos o adequado pagamento do valor efetivamente devido. O Estado, de outra banda, já se utiliza do imóvel para a finalidade pretendida com a desapropriação e posterga, e muito, os gastos com o adimplemento de sua transferência para o patrimônio público.

Esclareça-se, desde já, que a questão orçamentária, levantada no voto do ministro Gilmar Mendes para defender a utilização do precatório nessas hipóteses, não obstante reconhecer-se sua importância no controle e alocação de receitas e despesas públicas, não pode ser posta como pretexto para se impingir ao particular despesas que já deveriam ser suportadas pelo poder público em período anterior, conforme determinação expressa da Constituição nesse sentido.

Aliás, a principal razão para não se aplicar o regime dos precatórios nas desapropriações por utilidade pública está justamente no fato de que o texto constitucional é categórico ao estabelecer a anterioridade da indenização ao proprietário. A previsão constitucional estabelecida no artigo 100 da Constituição não se aplica nas demandas expropriatórias simplesmente porque há norma específica no próprio texto constitucional estabelecendo um regramento diverso para tais processos. Nessa esteira, pode-se dizer que as ações de desapropriação por utilidade pública configuram-se numa exceção à regra de pagamento das sentenças condenatórias contra o poder público por meio dos precatórios.

Ressalte-se, nesse ínterim, que a norma contida no artigo 15-B do Decreto-Lei nº 3.365/1941, determinando-se a observância do regime de precatórios nessa situação, cai por terra ante a disposição contida no inciso XXIV do artigo 5º da Constituição, haja vista a posição hierarquicamente superior das normas constitucionais. Nessa esteira, cabe à legislação infraconstitucional conformar-se ao texto constitucional, e não o contrário.

Em conclusão, pode-se afirmar que, na perspectiva de constitucionalização do Direito Administrativo, não se pode admitir que o ressarcimento do proprietário nas ações de desapropriação por utilidade pública se dê pela via do precatório. Tal entendimento, esposado no voto do ministro Luís Barroso no RE nº 922.144/MG, é o único capaz de harmonizar os interesses privados do particular com os interesses gerais da sociedade na utilização pública do imóvel expropriado, afastando as premissas já superadas de imunidade irrestrita de responsabilidade do Estado e de legitimação de seus privilégios a qualquer custo e a despeito dos direitos e garantias fundamentais.

 

[1] STF, RE nº 922.144/MG. relator ministro Luís Barroso. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4864567. Acesso em: 05 dez. 2021.

[2] STF, RE nº RE 176108/SP. relator ministro Carlos Velloso. Publicado aos 26 fev. 1999. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur110928/false. Acesso em: 05 dez. 2021.

[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 34. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019.

[4] BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 239, p. 01-31, jan./mar. 2005.

[5] CARDOZO, Dimitri de Souza; DUARTE, Luciana Gaspar Melquíades. A indenização prévia no processo judicial de desapropriação por utilidade pública. Algumas premissas para superação do entendimento jurisprudencial hodierno. Direitos Fundamentais e Justiça, a. 08, nº 29, p. 47-65, out./dez. 2014.

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    é doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, professor nos programas de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Itaúna (UIT-MG), de mestrado da Universidade Paranaense (Unipar-PR), dos cursos de pós-graduação da PUC-SP e da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Mato Grosso (FESMP-MT) e advogado.

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    é advogada, doutoranda em Proteção dos Direitos Fundamentais pela Universidade de Itaúna (UIT), mestre em Direito Processual pela PUC-MG e professora da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).

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