Opinião

O ilícito lucrativo como lacuna da responsabilidade civil brasileira

Autor

  • Marcos Bonfim

    é pós-graduado em Direito das Famílias e Sucessões pela Academia Brasileira de Direito Constitucional e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná.

6 de dezembro de 2021, 6h02

São inegáveis, para o escopo indenizatório da responsabilidade civil, os avanços produzidos pela sua objetivação e pelas técnicas de socialização dos custos da reparação. Isso está a salvo de questionamentos.

Não obstante, esse caminho unidimensional — tendo em vista apenas a vítima e seu prejuízo — resultou na desconsideração do outro lado da equação, fazendo desse ramo jurídico um algo neutro em relação às condutas antissociais.

O dito responsável é, na maior parte das vezes, apenas aquele que se reputou estar em melhores condições de arcar com a indenização e diluir socialmente seus custos.

Daí resulta que, quando este se confunde com o efetivo causador do dano, seu comportamento, mesmo se censurável — fruto de dolo ou culpa grave —, não será alvo de qualquer reprimenda [1]. Ele é apenas um canal por meio do qual o segurador — privado ou coletivo — é acionado e a vítima é reparada.

Os custos dos danos são internalizados previamente por esse desenvolvedor da atividade, figurando no seu orçamento ao lado das outras rubricas contábeis — na forma do prêmio do seguro, ou da taxa vertida ao fundo coletivo. A indenização não sairá, efetivamente, de seu patrimônio, mas da conta do segurador, deixando de ser sentida, assim, como uma externalidade.

É dizer, a maior ou menor causação de danos, a intencionalidade ou não na sua produção são circunstâncias que passarão absolutamente ignoradas pelo ordenamento e, consequentemente, pelo bolso do ofensor [2]. O Direito Civil, ao dessa forma desconsiderar a conduta do infrator, deixa de oferecer qualquer razão para a abstenção da prática de atos ilícitos por parte dos agentes de mercado.

Esse panorama pode ser mais bem assimilado com a ajuda do instrumental exógeno da análise econômica do Direito.

O estudioso da responsabilidade civil, afinal, não pode mais se permitir o segregacionismo, sob pena de fazer a forma prevalecer sobre a função. No direcionamento da disciplina ao eficiente cumprimento de seus objetivos constitucionais, deve-se ter como imprescindível o exame do impacto que suas normas acarretam na conduta de seus destinatários. Para isso, os ensinamentos da economia são indispensáveis.

Os autores da análise econômica do Direito, que se debruçam especificamente sobre este tema, partem da consideração elementar de que os agentes de mercado são orientados pela maximização do lucro — e aqui não vai uma crítica, é de sua natureza. Alicerçados nisso, investigam o oferecimento, pelo ordenamento jurídico, de razões financeiras para que as empresas ajam em conformidade com o padrão de conduta estabelecido. Trata-se, ensinam, de uma condição para que a norma se faça respeitada pelas sociedades empresárias.

Esse conhecimento, aplicado ao objeto de estudo deste trabalho, ajuda a compreender que a responsabilidade civil, quando reduzida a mera técnica de alocação dos custos da reparação — sem que seja complementada pelo viés preventivo, como aqui se propõe —, representa enorme incentivo ao ilícito lucrativo, fazendo a lógica de mercado sobrepor-se aos valores constitucionais.

Diante de uma responsabilidade civil indiferente à conduta dos agentes econômicos, fazendo-os apenas reparar os danos, na mesma monta, quer adotem um grau de cuidado ótimo, quer não empreguem cautela alguma, natural é que esses empreendedores optem pelo nível de diligência mínimo. Afinal, a única coisa que oscilará com o número e a gravidade dos sinistros será o prêmio do seguro, que responde ainda a tantas outras variáveis.

Fácil perceber que, dessa forma, o ordenamento não oferece àqueles que desenvolvem atividades de risco qualquer incentivo econômico à eficiente prevenção de acidentes.

Com os olhos fechados para esse lado da matemática do dano, o Direito acaba por consentir com o desprezo dos empreendedores às potenciais consequências nefastas da atividade que desenvolvem. Os agentes de mercado, em um raciocínio ex ante, próprio de sua lógica econômica, deixam ocorrer os danos ligados à sua operação toda vez que, em um cálculo de custo/benefício, reparar for mais barato do que prevenir. À dignidade humana é dado um preço, contando-se com a leniência do direito civil.

Não à toa, diversos teóricos da análise econômica do Direito anotam uma tendência de aumento do número de acidentes nas searas em que se opta pela responsabilidade objetiva — quando essa opção não é secundada por uma punição que, impedindo a realização do cálculo de custo benefício entre a reparação e o lucro ilícito, possa dissuadir esses comportamentos grosseiramente negligentes.

Mais do que isso, um tal sistema de normas de responsabilidade, indiferente ao ofensor, além de consentir com a omissão ilegal, incentiva a prática de atos antijurídicos comissivos. Isso porque a empresa tem a cômoda posição de saber que, caso seu "comportamento estratégico inescrupuloso" [3] seja descoberto, terá apenas de reparar o prejuízo causado, valor muitas vezes menor que o lucro obtido — ou passível de sê-lo — mediante a conduta ilícita.

O que se tem, em ambas situações, é a percepção de que em numerosas hipóteses a atribuição somente do dever de reparar — que hoje não tem o mesmo peso, uma vez que sua diluição é incentivada pelo ordenamento — erige-se em convite ao comportamento antissocial. Isso porque permite que o ofensor conserve o lucro — ou a economia — obtido ilegalmente, mesmo após arcar com as indenizações — ou melhor, com o prêmio do seguro.

E, obtendo vantagem econômica, que é o fim para o qual um agente de mercado está voltado, esse transgressor tem um óbvio incentivo a perpetuar o sistemático desrespeito ao ordenamento jurídico.

Para não se restar apenas no plano das abstrações, cumpre ilustrar esses ilícitos lucrativos com exemplos, baseados em casos reais, dissecando seu raciocínio matemático e suas consequências perversas.

Nessa tarefa, pense-se, primeiro [4] em uma grande companhia fabricante de veículos que acaba de projetar um novo automóvel. Com a linha de produção já pronta e prestes a ser iniciada, seus engenheiros percebem uma falha de concepção no tanque de combustível. Constatam que o defeito pode levar à sua ruptura, bastando, para tanto, que o carro sofra impactos moderados na retaguarda.

Os especialistas noticiam o problema à gerência da empresa, que encomenda estudo para verificar quanto seria necessário despender para corrigir este defeito.

O memorando interno que veicula essa apuração traz um cálculo que leva em consideração, de um lado, US$ 200 mil multiplicados por prováveis 180 mortes por ano, mais US$ 67 mil multiplicados por prováveis 180 acidentes não fatais — incluindo danos morais e materiais da vítima. De outro lado, US$ 11 multiplicados por 12,5 milhões de unidades do veículo a serem produzidas em um ano.

A sociedade empresária conclui, com base nessa conta, que permitir a ocorrência dos danos à pessoa humana — possivelmente fatais — é mais benéfico economicamente à empresa do que alterar a linha de montagem do novo veículo.

Essa fria racionalidade econômica resulta em mortes e sequelas permanentes.

Agora visualize-se [5] uma gigante petrolífera que explora recursos naturais perto do litoral.

O relatório de segurança interno da plataforma aponta para a precariedade do mecanismo de contenção de gás natural que é liberado durante a perfuração dos poços de petróleo do leito do oceano. A direção da empresa decide não parar o intenso trabalho de extração — o que causaria um prejuízo milionário — e opta por adotar medidas paliativas.

Pouco tempo depois, um maciço vazamento de gás natural passa desapercebido, e a substância emerge à superfície provocando uma grande explosão. A plataforma on-shore é atingida, levando instantaneamente à morte dezenas de trabalhadores. O petróleo vaza durante dias, sem que a empresa consiga contê-lo, restando clara a ausência de um plano sério de emergência para acidentes daquela natureza.

A substância se espalha rapidamente pela costa, causando intenso e incalculável dano ambiental, prejudicando, ainda, o turismo e a pesca, resultando na consequente inviabilização do labor de milhares de pessoas.

Tenha-se em mente, desta vez [6], um veículo de comunicação que consegue acesso a um ensaio fotográfico sensual de uma famosa atriz. As fotos haviam sido feitas mediante contrato com uma revista renomada no ramo e para exclusiva publicação nesse periódico. Tendo pleno conhecimento disso, os editores do jornal popular decidem, no entanto, estampar uma das imagens da artista, desnudada, em sua capa, calculando que a expectativa de lucro com a venda do tabloide superaria qualquer reparação de danos.

A conduta resulta em abalo à imagem, à honra e à integridade psicofísica da atriz, que jamais desejou ver suas fotos íntimas estampadas em outro local que não a reservada revista para a qual havia posado.

Por fim, idealize-se [7], nesta oportunidade, uma grande empresa que contata uma cantora para divulgar sua nova companha publicitária. Esta, todavia, recusa a oferta, não em razão do valor oferecido, mas por ter desavenças com a política ambiental da companhia, uma das maiores emissoras de gases poluentes do planeta. O agente econômico, no entanto, certo de que a famosa intérprete renderia à empresa o bônus buscado com a publicidade, emprega uma sósia em seu lugar, levando o público, efetivamente, a acreditar se tratar daquela artista. Para tanto, a empresa realiza um cálculo de custo/benefício e delibera que pagar, em uma ação de responsabilidade, o valor médio da licença autoral da cantora lhe seria vantajoso economicamente, tendo em vista os lucros passíveis de serem gerados com o comercial.

Tal comportamento redunda na cínica desconsideração da vontade daquela celebridade, olvidando seu consentimento para a exploração de sua imagem — e convidando outros agentes econômicos a fazer o mesmo.

Muitos outros exemplos, igualmente impactantes, poderiam ser trazidos, envolvendo o meio ambiente, a saúde pública, os atributos da personalidade, a vida humana em geral. Esses apenas foram selecionados por representar diferentes espécies de ilícitos lucrativos: a) a grosseira negligência no desempenho de atividades de risco, deixando-se de adotar medidas elementares de cuidado, tendo em vista uma economia; b) a conduta mal-intencionada que, na busca do lucro, despreza as potenciais consequências danosas de seu comportamento comissivo; c) a expropriação da projeção de um atributo da personalidade de um particular, com vistas ao fato de que o lucro ilícito a ser obtido mediante a usurpação supera potencial condenação a arcar com a licença de uso.

Ante estes casos, basta a constatação de que, se semelhantes hipóteses fáticas tivessem lugar, hoje, no Brasil, não se disporia de soluções efetivas para a punição do ofensor, convidando os agentes de mercado a reprisar esses comportamentos deploráveis.

Resta-se, atualmente, à mercê do Direito Penal, que diariamente dá mostras de sua inaptidão para atingir a capacidade econômica das empresas, mirando "em pessoas facilmente substituíveis, como administradores e representantes legais" [8]. Igualmente não somos socorridos pelo Direito Administrativo, em um país que vive um histórico e peculiar "capitalismo de Estado" [9], em que as agências reguladoras parecem atuar em prol das empresas, e não do interesse público [10].

Deixa-se passar incólume o lucro, fator que leva as pessoas jurídicas à prática desses atos censuráveis. Desse modo, permite-se que a danosidade social prossiga de forma sistemática, tomando a rápida via entre a inefetividade do Direito Penal, a promiscuidade do Direito Administrativo e a condescendência do Direito Civil, espraiando-se em nossa sociedade como uma doença infectocontagiosa. O mercado, dessa forma, subjuga valores constitucionais de elevada importância. Dada a generalização dessa conduta, não é exagero afirmar que a credibilidade do sistema jurídico corre o risco de se ver abalada.

Rosenvald, com bastante precisão, conclui diante desse cenário que o aprofundamento das técnicas de reparação e a socialização de seus custos, conquanto os elogiáveis avanços já destacados, provocou o "ocaso ético" dos agentes econômicos, que já não possuem mais qualquer razão para não lesar [11].

Esse importante efeito colateral de uma responsabilidade civil reduzida à compensação dos prejuízos coloca em xeque o modelo tradicional de responsabilidade, apontando para a urgência de sua complementação pelo princípio da prevenção, com a assimilação do instrumental da pena civil, fazendo a indenização, por vezes, superar o valor do dano para dissuadir o ofensor da prática ilícita.


[1] Pior ainda quando o "responsável" pela indenização não se confunde com o real autor do dano, caso em que o efetivo causador do prejuízo sequer será acionado.

[2] Porque o infrator, repita-se, ou não será acionado, por não ser aquele a quem o ordenamento, por razões socioeconômicas, atribuiu o encargo de indenizar, ou, caso se confunda com este, já haverá internalizado previamente os custos da reparação quando do pagamento do prêmio do seguro ou da taxa vertida a fundo coletivo.

[3] HIGA, Flávio da Costa, op. cit., p. 48.

[4] Este exemplo baseia-se no caso Ford x Grimshaw, julgado pela Suprema Corte da Califórnia em 1981. Uma análise completa desta decisão pode ser encontrada no texto a segui referenciado: "The Ford Pinto Case: The valuation of life as it applies to the negligence-efficiency argument", cuja íntegra está disponível em http://users.wfu.edu/palmitar/Law&Valuation/Papers/1999/Leggett-pinto.html#1. Acesso em 27/06/2019.

[5] Esse exemplo baseia-se no caso do derramamento de petróleo no Golfo do México em 2011 após explosão ocorrida na plataforma Deepwater Horizon, da British Petroleum. Uma análise completa do acidente, bem como de suas repercussões — inclusive judiciais — pode ser encontrada no texto Farber, Daniel A. Lessons from the BP Oil Spill. In: Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), nº 3, v. 6, p, 232-245, out/dez 2014.

[6] Este exemplo baseia-se no caso da atriz Maitê Proença contra o jornal carioca Tribuna da Imprensa, datado de julho de 1996. O caso foi julgado em 2000 pelo Superior Tribunal de Justiça: REsp 270.730/RJ, relator ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, relator p/ acórdão ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/12/2000, DJ 07/05/2001, p. 139.

[7] Esse exemplo baseia-se no caso Midler x Ford, julgado em 1988 pelo Ninth Circuit Court of Appeals. Uma análise completa da decisão pode ser encontrada no texto LAPTER, Alain J. How the Other Half Lives: Twenty Years Since Midler v. Ford, a Global Perspective on the Right of Publicity. In: Texas Intellectual Property Law Journal, v. 15, 2007. Disponível em http://ftp.documation.com/references/ABA10a/PDFs/1_7.pdf. Acesso em 10/08/2019.

[8] ROSENVALD, Nelson, op. cit., p. 173.

[9] ROSENVALD, Nelson, op. cit., p. 184.

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    é pós-graduado em Direito das Famílias e Sucessões pela Academia Brasileira de Direito Constitucional e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná.

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