Segunda Leitura

Direitos humanos x culturas indígenas, a complexidade como regra

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de dezembro de 2021, 8h00

A política de tratamento dos indígenas brasileiros foi, por séculos, de busca de integração dos grupos à nossa cultura europeia ocidental. No entanto, após a Constituição de 1988 essa visão foi alterada, de forma a respeitá-los como tendo e sendo uma cultura diversa e que deve ser preservada.

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Evidentemente, essa é uma premissa fácil de se chegar, basta ler os artigos 231 e 232 da Carta Magna e procurar um artigo de antropologia no Google. Difícil é aplicá-la no mundo real, diante das múltiplas situações que a vida nos apresenta. Com foco na região amazônica, onde está concentradaa a maioria das tribos indígenas, vejamos dois casos que geram perplexidade e que merecem ser avaliados com equilíbrio e maturidade.

Fato 1: No ano de 2013, em um pequeno comércio da área urbana de Uiramutã, estado de Roraima, dois irmãos indígenas da etnia Macuxi ingeriam bebida alcoólica quando foram encarados por um terceiro que, pedindo um copo de cachaça, encarou um deles e disse que ia amarrá-los no curral.

Ocorre que os dois irmãos viram naquele indígena um Cainamé, que é o nome que se dá a uma entidade da etnia Macuxi, considerada a mais perigosa por poder causar morte de pessoas. E pouco tempo antes, na comunidade Enseada, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, um Canaimé havia causado a morte de um índio. Como, segundo as normas daquela etnia, não se punem aqueles que tentam identificar e matar um Canaimé, os dois irmãos tentaram exterminar aquele que julgaram ser um deles.

Promovidas as investigações, ambos foram denunciados e pronunciados pelo crime de homicídio tentado e lesões corporais perante a Justiça Estadual. Todavia, aquele não seria um julgamento comum pelo Tribunal do Júri, pois o juiz de Direito resolveu realizar o ato na comunidade do Maturuca, com a presença de centenas de indígenas, autoridades, imprensa e estudantes. Registre-se que o juiz e o defensor público eram descendentes de indígenas e todos os jurados ostentavam a condição de indígenas da região.

Realizou-se o julgamento e o Tribunal do Júri absolveu os pronunciados por homicídio tentado, condenando-os por lesões corporais leves, em seguida, reconhecendo a prescrição.

Ocorre que, os membros indígenas Macuxi no dia seguinte reuniram-se na sede da Comunidade Maturuca, a fim de debater o julgamento. Ao final, desprezando a decisão judicial, condenaram os envolvidos à prestação de serviços comunitários e a um pagamento através da entrega de cabeças de gado.

Fato 2: Em 1º/6/2015 um índio da etnia Manduruku morreu em um rio por afogamento. Crendo que a morte foi por pajelança braba, os pais da vítima consultaram o pajé e outras lideranças e todos concluíram que realmente o foi.

Pajelança braba é uma espécie de maldição praticada por um pajé brabo, por meio dos seus conhecimentos secretos de recursos cosmológicos, provocando doenças e morte em terceiros. Só outro pajé pode procurar identificar o autor e para isto fará um exame do morto, tal como se fosse uma perícia. E só a ele caberá extrair a alma do pajé brabo em um ritual, por ser considerada muito perigosa.

Em 24/7/2015 a mãe da vítima compareceu na Delegacia de Polícia Civil de Itaituba/PA, dizendo que seu filho Geilson Karo Manduruku, com 16 anos de idade, no dia 21/06/2015, foi morto por tiro de espingarda, condutas praticadas na aldeia Sai Cinza, que causaram a morte de Fagno Karo Manduruku. O corpo de Geilson foi arrastado até o rio Cabitutu, esquartejado, retirados e triturados o fígado e o coração, tudo amarrado em uma pedra e jogado no rio.

A denúncia da mãe de Geilson, assessorada pelo parente e professor indígena Jairo Torres Alves, lança a suspeita de que o índio Fagno teria sido causada por Aleandro Karo, dentro de uma canoa, por questões de ciúmes e que a alegada pajelança de Geilson teria sido a forma de encobrir os fatos. Acrescente-se a esta complexa situação o fato de que o professor Jairo ter representado contra Rosildo Saw Manduruku, filho do cacique Manoel Roque Saw Manduruku, por discordar da presença ilegal de garimpeiros não indígenas no Território Indígena Sai Cinza, acusando pai e filho de protegerem Uilsom  Uilson Batista Ribeiro, vulgo Parafuso.

Em 2/9/2015 a Procuradoria da República em Itaituba, PA, instaurou Procedimento Criminal Investigatório (PIC) de nº 1.23.008.000394/2015-61, a fim de apurar a morte de Geilson Caro Manduruku, sendo que o laudo antropológico elaborado pelo Analista do MPU, que é a peça principal, atribui os fatos a um costume ancestral da etnia Manduruku que, por sinal, considera-o privado, não o discute publicamente e nem aceita a interferência da FUNAI.

A Procuradoria em Itaituba determinou o arquivamento do PIC em respeito aos costumes da etnia Manduruku e remeteu os autos para a Procuradoria Geral da República, em Brasília, onde os fatos foram reexaminados pela 2ª. Câmara de Coordenação e Revisão Criminal.

A decisão da 2ª. Câmara, dada em sessão realizada em 8/11/2021, confirmou o arquivamento, baseando-se no fato de que a Constituição assegura aos indígenas a resolução de conflitos por métodos próprios tradicionais e que eles, não consideravam ter feito algo errado, condenável, logo não deveriam responder ação penal perante o Judiciário brasileiro.

Expostos os fatos com a síntese que esta coluna recomenda, passemos à sua análise. A primeira observação é a de que os conflitos entre os direitos indígenas e sua absorção pela Justiça brasileira serão cada vez mais intensos e por isso já passou da hora de serem conhecidos e discutidos por todos. A segunda é que as duas ocorrências são de complexidade extrema e por isso não faço nenhuma crítica aos que assim decidiram, inclusive por conhecer e respeitar os integrantes da 2ª. C.C.R. do MPF.

Os dois fatos são comuns na complexidade e antagônicos na solução. Vejamos primeiro as normas que regem o assunto.

A Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, de 1948[i], dispõe que:

Art. 8º – Toda a pessoa direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas Tribais[ii], ao tratar da aplicação da legislação nacional aos povos indígenas, registra no art. 9º o seguinte:

I. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.

A Constituição de 1988[iii] afirma:

Art. 231.  São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Agora vejamos a adequação aos casos.

O julgamento dos indígenas Macuxi negou a Justiça Estatal ao condenar os dois envolvidos. Não respeitou a coisa julgada, impôs penas e as executou. Que poderia fazer a Justiça de Roraima? Nada. A menos que fosse provocada pelos condenados na Comunidade Maturuca.

Que proveito pode, disto, ser tirado? Apenas o de que a oportuna iniciativa de levar o julgamento ao interior da comunidade indígena não é um passaporte para a adesão dos membros da etnia Macuxi e, quem sabe, de outras.

No caso relatado como Fato 2, bem mais complexo, deu-se o inverso. Os membros da etnia Manduruku julgaram como lhes parecia certo e quem procurou a autoridade estatal foi a mãe do adolescente Fagno, assassinado e esquartejado.

A Constituição, é certo, assegura aos indígenas no art. 231 o reconhecimento de seus costumes e crenças. Mas, contra eles está a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Convenção 169 da OIT. Ali estão os limites de respeito aos direitos fundamentais. A morte pela suspeita da prática de pajelança braba, por óbvio, viola tais regras?

O respeito à cultura indígena inclui o direito a julgamentos. Mas se estes ferem direitos humanos básicos, evidentemente, não podem ser exercidos no interior das tribos e reconhecidos pelo Estado. E não se pode concluir que a genérica afirmação do art. 231 da CF alcança o direito a tal prática, pois a própria Carta Magna assegura os direitos fundamentais no art. 5º e estabelece que ao Poder Judiciário cabe o exercício da jurisdição.

Claro que o tema é espinhoso e coloca em conflito teses de direitos humanos, já que a controvérsia é insuperável. O STF nunca se manifestou a respeito, os julgamentos que mais se aproximam são os da prática da vaquejada e briga de galo[iv], infinitamente mais simples.

E tem outro aspecto. A interpretação da Constituição cabe ao STF, fato que dispensa comentários. Ao arquivar o PIC, sem a chancela judicial que permitiria, posteriormente, a discussão pelo Supremo, o MPF assume função que não lhe atribui a Constituição. Em última análise poderia, até, não denunciar, mesmo que a Corte entendesse o contrário. Mas a discussão teria sido posta e enriquecida por debates, inclusive de especialistas de outras áreas (e.g.,antropologia).

Em suma, volto ao dito antes. A questão de algumas práticas indígenas versus direitos humanos precisa ser mais estudada e discutida judicialmente, inclusive em outros temas como o direito de algumas tribos à morte de crianças deficientes ou gêmeas. Não é fácil, mas é necessário.


[i] Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.

[ii]Disponível em: Acesso em 4 dez. 2021. https://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%ADgenas%20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf. : Acesso em 4 dez. 2021.

[iii] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. : Acesso em 4 dez. 2021.

[iv] ADI n. 4983/CE, Rel. Min. Marcos Aurélio, j. 06.10.2016 (vaquejada); RE n. 153.531, 2ª Turma, Rel. p/o acórdão, Min. Marco Aurélio, j. 03.06.1997.

Autores

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    é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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