Processo Tributário

Transação tributária e jurisdição voluntária: união de importantes institutos

Autor

  • Paulo Cesar Conrado

    é juiz federal em São Paulo professor do Curso de Especialização do Ibet professor e coordenador do curso e do grupo de estudos do "Processo tributário analítico" do Ibet e professor do programa de mestrado profissional da FGV Direito-SP.

5 de dezembro de 2021, 8h00

Jurisdição voluntária, um conceito de certa forma extravagante no contexto do direito processual, raramente aparece(ia) no cotidiano tributário.

Por regra, o exercício da atividade jurisdicional sempre supôs o prévio estabelecimento de um estado de dissenso que, formalizado em linguagem tida como apropriada, era(é) levado a conhecimento do Estado-julgador, a quem se comete(ia) o encargo de desfazer o nó havido entre os envolvidos (fisco e contribuinte, no âmbito tributário).

Substitutiva da vontade divergente que imobiliza(va) os atores do conflito: assim se coloca(va) a jurisdição, em sua essência típica.

Quando falamos em jurisdição voluntária, a premissa é bem outra: no lugar do estado de divergência, o que se vislumbra é a convergência de posições, submetendo-se o ato de vontade expressivo dessa convergência a exame jurisdicional unicamente para fins de homologação — não de construção substitutiva de solução.

Aí, justamente, a "anomalia em termos" de que se reveste a expressão "jurisdição voluntária": em sentido próprio, jurisdição (a típica) evoca a produção pelo Estado-juiz de ato substitutivo da vontade das partes, supondo conflituosidade; na excêntrica jurisdição voluntária, o Estado-juiz não substitui a vontade de quem quer que seja, mas sim homologa, convalidando juridicamente, a vontade pressupostamente convergente dos atores.

Pois é na precisa direção dessa excentricidade que tipifica a jurisdição voluntária que a Lei nº 13.988/2020 — instituidora da transação tributária no plano federal — parece nos levar. Natural: em tempos como o atual, no qual tanto se enaltece o consensualismo tributário, é de certa forma imperativa a recuperação desse "esquecido" conceito (o de jurisdição voluntária). Usando outros termos: se eram raras as ocasiões em que essa forma atípica de jurisdição se coloca(va), sobretudo em nível tributário, passamos a tê-la como algo mais próximo do "comum" na exata proporção em que nos encaminhamos para o uso concreto de meios consensuais de solução de litígios, caso da transação.

Ao menos duas específicas situações preconizadas na Lei nº 13.988/2020 podem-devem ser nesse sentido realçadas.

A primeira diz respeito a créditos que, constituídos, se encontrariam sob debate administrativo.

Observados os termos da lei, é possível, nesses casos, que fisco e contribuinte ajustem a solução da contenda, retirando-se da precedente posição de divergência para a de convergência. Assim ocorrendo, a lei prescreve a possível submissão do ato à homologação judicial [1], mecanismo que, para se materializar em termos práticos, demanda(rá) o aparelhamento de um feito de natureza não-contenciosa, assim compreendido justamente em razão da inexistência, dada a transação no processo administrativo, de dissídio a ser composto.

"Homologação", pelo que se vê, é verbo que designa a atividade judicial desempenhada pelo Judiciário com o intuito de cobrir o ato praticado a partir da convergência de posições entre fisco e contribuinte do tônus legalmente desejado (vale dizer: de título judicial, tal como assinala a combinação do já indicado artigo 26 da Lei nº 13.988/2020 com o artigo 515 do Código de Processo Civil, dispositivo expressamente referido por aquele outro) [2].

Daí a necessária conclusão: quando suscitado em termos de homologação, ao Judiciário não é dado ingressar no mérito da solução apetrechada pelas partes, senão controlar sua legalidade do ponto de vista formal.

A segunda das situações de interesse nesse mesmo contexto diz respeito aos créditos tributários que, posto inscritos em dívida ativa, não foram ajuizados pela Fazenda.

Segundo o artigo 18 da Lei nº 13.988/2020 [3], é possível encartar tais casos no contexto das chamadas transações "por adesão no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica", caminho que, à falta de processualidade previamente instalada, imporá, por lógica, o aparelhamento de procedimento de jurisdição voluntária tal qual o que já referimos.

Afinal, reiteremos: se o crédito a que nos reportamos encontra-se inscrito, mas não ajuizada a correlata execução, supondo-se, a par disso, que as condições materiais que expressam esse mesmo crédito enquadram-se nos termos de eventual edital de "transação no contencioso", é perfeitamente viável (ou melhor, impositivo) que seja aberto campo para fins de formalização de acordo que passará a governar a conduta dos atores da relação, dali em diante.

Como na primeira, também nessa hipótese vale a advertência: não será o Judiciário demandado a praticar atos jurisdicionais típicos — voltados a dizer e/ou executar forçadamente o direito material posto —, mas a dar à vontade convergente manifestada por fisco e contribuinte a necessária cobertura jurídico-formal.

Se tais acordos envolverem a prática de atos diferidos no tempo — como o pagamento parcelado do crédito tributário, situação muito comum —, distende-se a possibilidade de intercorrente ruptura do pacto, o que faz aflorar o vigor prático da jurisdição voluntária de que falamos: uma vez colocados, no curso da vigência do acordo, em posição de divergência (desta feita não quanto ao direito em si, mas quanto ao cumprimento dos termos da transação precedentemente homologada), passam os atores a depender da atuação judicial "convencional", assim entendida a que, substitui a renitência da(s) parte(s), fazendo realizar o conteúdo do ato de vontade anteriormente produzido e chancelado [4].)

Observada essa linha, note-se, a jurisdição voluntária operada no bojo da transação pode até parecer, num primeiro olhar, um agente complicador, um excesso formal dispensável, à medida que supõe mais um passo burocrático a ser vencido na construção do acordo.

A despeito dessa impressão inicial, é preciso pensar que o sentido dessa extravagante forma de exercício de jurisdição não está na sofreguidão do presente jurídico, mas sim na garantia de que, no porvir, eventual inobservância do prévio ajuste de vontades seja suprível sem a necessidade de refazimento de percursos — aspecto que facilmente se percebe nas dobras das duas situações a que nos reportamos, ambas remissivas da outorga de força de título executivo judicial às sentenças homologatórias.


[1] Artigo 26 — A proposta de transação poderá ser condicionada ao compromisso do contribuinte ou do responsável de requerer a homologação judicial do acordo, para fins do disposto nos incisos II e III do caput do artigo 515 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

[2] Artigo 515 — São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título:
II – a decisão homologatória de autocomposição judicial;
III – a decisão homologatória de autocomposição extrajudicial de qualquer natureza;

[3] Artigo 18 — A transação somente será celebrada se constatada a existência, na data de publicação do edital, de inscrição em dívida ativa, de ação judicial, de embargos à execução fiscal ou de reclamação ou recurso administrativo pendente de julgamento definitivo, relativamente à tese objeto da transação.
Parágrafo único. A transação será rescindida quando contrariar decisão judicial definitiva prolatada antes da celebração da transação.

[4] Esse é um dos possíveis sentidos do artigo 19, § 1º, inciso I, da Lei nº 13.988/2020, dispositivo que prescreve:
Artigo 19 — Atendidas as condições estabelecidas no edital, o sujeito passivo da obrigação tributária poderá solicitar sua adesão à transação, observado o procedimento estabelecido em ato do ministro de Estado da Economia.
(…)
§ 1º. O sujeito passivo que aderir à transação deverá:
I – requerer a homologação judicial do acordo, para fins do disposto nos incisos II e III do caput do artigo 515 da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil); (…).

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    é juiz federal em São Paulo, professor do programa de mestrado profissional da FGV Direito-SP e professor e coordenador do curso e do grupo de estudos em "Processo tributário analítico" do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

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