Embargos Culturais

'A Missa do Galo', de Machado de Assis

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

5 de dezembro de 2021, 8h00

A proximidade do Natal sugere um conto de Machado de Assis, "Missa do Galo". São vários temas num texto curto. Explora-se a relação entre memórias e narrativa, linguagem corporal e sedução, sexualidade, inocência e inconsciente traição de uma mulher traída e humilhada. Quanto à memória, também de algum modo expressa em fotografias, tem-se um amarelo que, no dizer do crítico Álvaro Lins, ou desaparece, ou escurece, ou se torna vermelho. O tema do conto é freudiano também: a memória é seletiva, criativa, defensiva. Já não sabemos o que é real, e que é imaginário. Algum dia não acreditamos no que lembramos, também porque nos esquecemos do que queremos nos lembrar.

Spacca
"Missa do Galo" é um extrato da memória de um rapaz que vivia (era estudante) na casa de um escrivão. Na casa também moravam a mulher traída, passiva e sedutora, e sua mãe, que de algum modo acobertava o modo como o casal vivia. O marido tinha uma amante, com quem passava uma noite todas as semanas. Não era segredo. O narrador nos conta que a esposa se insurgiu levemente quando soube do caso extraconjugal, mas que, com o tempo, acostumou-se com a situação. Na casa havia também duas escravas.

Nas noites que passava fora de casa o marido justificava-se alegando que ia a teatro. Era a palavra-chave e o eufemismo indicativo da traição. Há uma cena no conto na qual o marido se despede, invocando que iria ao teatro, no momento no qual o visitante pede para acompanhá-lo. A sogra rapidamente intervém, dissuadindo o rapaz da proposta. Tudo estava subentendido, a situação estava resolvida para todos, e a poligamia do marido era tida como natural. É nesse passo que o leitor pode esboçar uma diferença entre poligamias consentidas explicita e implicitamente.

Nas poligamias explícitas as mulheres todas vivem na mesma casa com o marido. Seria o caso dos haréns, a exemplo da referência bíblica ao rei Salomão, que se supõe contava com 300 esposas e 600 concubinas. Há um livro de Moacyr Scliar ("A mulher que escreveu a Bíblia"), que explora com muito humor a relação do rei Salomão com uma de suas companheiras. Já nas poligamias implícitas, cuja forma arcaica estava na figura da "hetaira" da antiguidade grega, as mulheres vivem em casas distintas. É o caso da poligamia do personagem do conto.

Conceição (a esposa traída) é personagem que está no centro da narrativa. Tinha 30 anos, casara-se aos 27. Era uma mulher de gestos demorados e de atitudes tranquilas. Segundo o narrador, não era feia, nem simpática, mas de algum modo ficou subitamente bonita. Tinha os braços claros, com veias tão azuis. Não sabia odiar, e talvez não sabia amar.

A tensão da narrativa passa-se na noite da Missa do Galo, celebrada na véspera de Natal, exatamente à meia-noite de 24 de dezembro. A expressão decorre da tradição cristã, que aponta que no nascimento de Jesus um galo cantara estrondosamente, anunciando a chegada do Salvador. Há uma tradição espanhola, também explicativa da expressão, segundo a qual, um pouco antes da meia-noite de 24 de dezembro, os camponeses matavam um galo como lembrança do apóstolo Pedro, que negara Cristo por três vezes, "antes do cantar do galo". As aves eram levadas para a igreja e distribuídas aos pobres.

O jovem visitante (Nogueira) combina de ir à missa com um amigo. Se encontrariam um pouco antes. Na sala, passava o tempo, lendo "Os três mosqueteiros", o romance de capa e espada de Alexandre Dumas que descreve as aventuras de D'Artagnan, personagem central, e dos outros três: Porthos, Aramis e Athos. Conceição vai até a sala. É evidente que tente seduzir o rapaz. A linguagem corporal, descrita pelo narrador, nos indica uma mulher que explodia em desejos.

O marido estava com a amante, era a noite do teatro. Conceição passava a língua nos beiços, para umedecê-los. Arrastava uma chinelinha de alcova. Quer se entregar ao rapaz. Pede, a todo instante, que fale baixo; a mãe pode acordar. Aproxima-se do jovem. Falavam sobre romances, cita Joaquim Manoel de Macedo. Conceição afirma que pensava muito, e que pensava em coisas esquisitas.

O amigo bate na porta. Devem ir para a missa. Nogueira se diz em um sonho magnético, que lhe tirava a língua e os sentidos. Ele queria, mas também não queria acabar a conversa com Conceição. Despediu-se. Fugiu a oportunidade. Soube depois que que Conceição enviuvara e que se casou com o escrevente juramentado que trabalhava no cartório do esposo. Poderia o conto acabar de outra forma?

Perplexos, os leitores não sabemos se os fatos efetivamente ocorreram como anunciados pelo narrador, isto é, se não era um desejo de Nogueira em forma de devaneio. De igual modo, nos comovemos com a tentativa de sedução de Conceição, isto é, se verossímil a narrativa do rapaz.

Principalmente, nos impressionamos com a densidade discursiva de Machado de Assis, que nesse conto, publicado em "Páginas Recolhidas", mostra-se (mais uma vez) profundo conhecedor dos segredos da alma humana, que indica, mas não explica, que comenta, mas não elucida, como se os mistérios do inconsciente fossem peças de quebra-cabeça de um romance policial. E nesse caso não há mordomo a ser culpado. Não há culpas. Só há desejos.

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