Opinião

Lei Mariana Ferrer, vitimização e o sentido de vítima para o Direito Penal

Autor

  • Emetério Silva de Oliveira Neto

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor de Direito Penal da Universidade Regional do Cariri (Urca).

4 de dezembro de 2021, 6h34

1) Introdução: as virtudes da Lei Mariana Ferrer
Conforme amplamente divulgado pelos meios de comunicação nacionais, no último dia 22 o presidente da República sancionou a Lei nº 14.245, também conhecida como Lei Mariana Ferrer. Em linhas gerais, partindo de uma emblemática e triste situação concreta [1], a lei nasceu com o fito de proteger as vítimas de crimes sexuais da chamada vitimização secundária.

Trazendo uma clara mensagem de respeito aos direitos e interesses da vítima, um dos sujeitos do processo penal, a lei modifica o Código Penal (CP), o Código de Processo Penal (CPP) e a Lei dos Juizados Especiais (nº 9.099/95). Em relação ao Código Penal, aumentou de um terço até a metade a pena do crime de coação no curso do processo se o processo no qual tal delito ocorreu envolver crime contra a dignidade sexual (CP, artigo 344, parágrafo único).

Por sua vez, a alteração empreendia no CPP aplica-se às audiências de instrução e julgamento  em especial às que apurem crimes contra a dignidade sexual  e à instrução em plenário nos crimes de competência do Tribunal do Júri, em que todas as partes e demais sujeitos processuais presentes ao ato se obrigam a zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento de tais disposições (CPP, artigos 400-A e 474-A), o mesmo se aplicando aos crimes de menor potencial ofensivo, a teor do §1º- A do artigo 81 da Lei nº 9.099/95, acrescido pela lei em tela.

Em todas as hipóteses anteriormente mencionadas, estão vedadas a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos e a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Vê-se, destarte, se considerado o prisma da vítima, um dos sujeitos processuais mais frágeis, que a novel lei é tributária de virtudes, embora a Constituição Federal de 1988 traga a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da nossa República (artigo 1º, inciso III), entre outros dispositivos protetivos nela encartados. Alinha-se, pois, a norma aqui brevemente comentada aos postulados da nova vitimologia, que se ocupa em criar mecanismos potentes de atendimento e satisfação dos direitos da vítima violados pelo ato criminoso [2].

2) Crimes sexuais e os processos de vitimização
Com efeito, afigura-se especialmente inegável o caráter abjeto dos crimes sexuais, destacadamente o crime de estupro, que via de regra tem como alvo predileto as mulheres. É elevado o grau de violência (física e/ou psicológica) empregado no cometimento desse delito, o que fragiliza sobremaneira a vítima.

Nesse contexto, pode-se falar em "processos de vitimização", expressão que significa, em resumo, o prolongamento do sofrimento da vítima, para além dos danos imediatos sofridos como resultado do cometimento do crime em si. Surge, aqui, o conceito de "vitimização secundária", infelizmente pouco estudado na academia e também pouco debatido na sociedade.

Ora, se a prática de crimes contra sujeitos individualizáveis, a assim chamada "vítima individual", gera danos diretos e palpáveis (vitimização primária) como a perda do bem material no caso de furto, no dano físico, em se tratando de lesão corporal ou a violência sexual no caso de estupro, é possível  e não raramente acontece  que a vítima venha a sofrer danos adicionais, decorrentes dessa primeira agressão.

Por vezes o Estado é o responsável pelo prolongamento indefinido do processo de vitimização, e isso pode ocorrer tanto por ação quanto por omissão. Os órgãos de persecução penal, por exemplo, podem agir no sentido de descredenciar as declarações da vítima ou até a "culpabilizar" pela lesão que sofreu (blaming the victim), isentando do crime o autor do fato. Mas, por outro lado, é possível que nada seja feito, vale dizer, mais concretamente, que a investigação sequer seja instaurada, hipótese em que a vítima é completamente ignorada. Isso é comum acontecer em situações de violência psicológica, que demandariam uma rigorosa aplicação da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha).

Quando representantes do Estado (verbi gratia juiz, promotor etc.) silenciam diante de agressões e humilhações praticadas em pleno ato audiencial contra a pessoa apontada pelo próprio Estado como vítima de um crime, não há dúvidas de que estão placitando a prolongação de um brutal processo de sofrimento, originado pela agressão do autor do fato. A premissa básica é que todos merecem consideração e respeito, o que reflete no âmbito do processo penal.

3) O sentido de vítima para o Direito Penal
Aqui chegamos a um ponto extremamente importante, que nos leva a afirmar que a lei sub examen possui algumas atecnias, as quais, em termos práticos, podem ser prejudiciais ao acusado. Do ponto de vista jurídico-penal, não há que se falar em vítima se o fato não constitui crime, realidade essa que não deve ser indiferente para o processo penal. E, sob o ângulo constitucional, tem-se que é vedado confundir a figura do imputado com a do culpado, dada a garantia fundamental da presunção de inocência (CF/88, artigo 5º, inc. LVII).

Assim, o mais correto é afirmar que o processo traz a princípio uma vítima hipotética, uma vez que as circunstâncias do fato estão sendo apuradas, podendo ao fim e ao cabo a acusação fracassar. A bem da verdade, até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória não há que se falar em culpa no sentido técnico-penal (nullum crimen, nulla poena sine culpa), mas, sim, em mera acusação.

Desse modo, quando a lei usa expressamente o termo "vítima" para tratar de uma situação que ainda está sendo objeto de apuração nos autos de um processo penal [3], é como se estivesse passando para a sociedade e os demais atores do processo a equivocada mensagem de que o sujeito apontado como autor de um fato dito criminoso é realmente culpado, o que pode ressoar, a título de exemplo, na forma como o magistrado conduzirá, doravante, os atos processuais, notadamente as audiências. Temo, como decorrência disso, que em alguns momentos outros direitos fundamentais sejam violados (verbi gratia ampla defesa, contraditório, paridade de armas etc.).

O legislador, se a bússola, consoante aqui se defende, for a premissa que estabelece que todos merecem igual consideração e respeito, perdeu a oportunidade de tratar as coisas como elas realmente são: não há vítima no processo penal, exceto após a demonstração de que o fato investigado é criminoso. Isso fica mais palpável, por exemplo, após a condenação transitada em julgado, a partir de quando se tem a culpa formada, consequência da conduta típica, ilícita e culpável, vale dizer, de um crime.

Com efeito, tratar logo ab initio uma vítima hipotética — ainda que tal sujeito tenha sofrido danos  como vítima real pode trazer prejuízos irremediáveis para o acusado, tornando o processo penal um instrumento de opressão, o que não condiz com a fórmula do Estado democrático de Direito.

4) Conclusão
A proteção de direitos sistematicamente violados não pode implicar na violação de outros direitos. Conforme destacado, a Lei Mariana Ferrer tem pontos positivos, sendo importante a proteção da dignidade dos sujeitos processuais, especialmente daqueles que se apresentam mais fragilizados. Inobstante, há que se atentar para o uso equivocado do termo "vítima", dando a entender que o acusado ou réu de um processo penal ainda não finalizado já é o culpado pelo fato supostamente delituoso sob escrutínio, o que pode gerar prejuízos à defesa. Teria andado bem o legislador se tivesse observado todas essas questões, preservando o uso do termo "vítima" para as situações em que se tem provado o crime, razão pela qual afirmamos que no processo penal todos merecem ser tratados com igual consideração e respeito.

 


[1] Trata-se da audiência de instrução e julgamento de uma acusação de crime de estupro, na qual a Sra. Mariana Ferrer, apontada pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina como vítima do referido crime, foi humilhada pelo advogado do acusado A propósito, chamou atenção a ausência de iniciativa do promotor de justiça e do juiz ali presentes no sentido de fazer cessar a situação constrangedora. Vídeo de parte da audiência disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wvF2HsxkcDM>. Acesso em: 1º dez. 2021.

[2] Há uma plêiade de documentos normativos  nacionais e internacionais  preocupados em satisfazer os interesses das vítimas de crimes e conflitos outros, e isso nada mais é do que tratar a vitimologia como uma ciência que também se ocupa efetivamente de satisfazer os direitos da vítima. Para um estudo completo, veja-se o que escrevemos em: OLIVEIRA NETO, Emetério Silva de. Vitimodogmática e limitação da responsabilidade penal nas ações arriscadas da vítima. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p. 39 e ss.

[3] Veja-se, a esse respeito, a redação do caput do artigo 400-A do CPP: "Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima…" (grifo do autor).

Autores

  • é advogado, pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor Efetivo do Curso de Direito da Universidade Regional do Cariri (URCA).

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