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Andrade: Um alerta para o mau uso da Lei do Superendividamento

4 de dezembro de 2021, 9h11

Por João Paulo Babini de Andrade

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No início da pandemia da Covid-19, em 11 de março de 2020, segundo a OMS, instituições de ensino superior passaram a enfrentar muitas demandas judiciais movidas por discentes buscando a redução no valor das mensalidades, sob os mais diversos argumentos, mas principalmente em razão do agravamento da situação econômica da população em geral, o que poderia, caso a caso, ocasionar onerosidade excessiva ao consumidor.

Como resposta, uma grande insegurança jurídica se instaurou, com decisões judiciais apontando para os mais diversos sentidos, e houve uma verdadeira enxurrada de propostas legislativas, em todos os níveis, visando a impor reduções lineares e compulsórias às instituições de ensino, enquanto durasse o estado pandêmico. Já naquela época, alertava-se que, muito antes de se pensar em ferir a autonomia constitucional das universidades, sem se acautelar para as peculiaridades de cada caso concreto, o Poder Legislativo deveria voltar os olhos para dar seguimento aos trâmites da Lei do Superendividamento.

Essa lei finalmente entrou em vigor em julho deste ano (Lei nº 14.181/2021), fruto de louváveis esforços e sérios debates. Sucede que, tal qual ocorreu com o "boom" de demandas envolvendo a pandemia da Covid-19, é preciso alertar que o seu mau uso pode terminar lançando as instituições de ensino em uma indesejável e descurada nova onda demandista.

Deve-se ter em mente que nem todo consumidor que se alega superendividado realmente o é. O consumidor superendividado é aquele cujas dívidas de consumo se avolumaram a tal ponto que os seus pagamentos implicariam abrir mão de uma existência minimamente digna. Daí por que nem todas essas dívidas podem ser incluídas na conta, sobretudo as supérfluas, pois a lei não põe a salvo o consumidor compulsivo e irresponsável, que em um dia compra tudo aquilo que não pode e no outro já se diz superendividado.

Dito isso, fica fácil perceber que não é qualquer proposta de repactuação de dívidas que irá vincular imediatamente o fornecedor de serviços, como estão querendo crer alguns Procons. Somente as propostas acompanhadas de um plano de pagamento sério e exequível devem ser consideradas, significando dizer que o consumidor precisa abrir suas contas para calcular, de forma honesta, quanto deve e quanto pode pagar (capacidade de pagamento), afastando-se os free riders (aqueles que sucumbiram à tentação de obter vantagens econômicas desrespeitando as regras do jogo).  

É preciso entender que a lei não é necessariamente e incondicionalmente pró-consumidor, mas deveria ser pró-adimplência, que é a forma fisiológica de se liberar de uma obrigação. A lei não pode prestigiar o crédito irresponsável ou a repactuação de dívidas sem critérios, sob pena de criar um efeito bola de neve e terminar causando prejuízos maiores (e evitáveis) a fornecedores de serviços de boa-fé, que não podem ser vistos como antagonistas nessa relação.

Esse alerta é importante porque já se tem visto alguns Procons arrogando para si a função de sancionar instituições de ensino superior que recusaram "ofertas de renegociação" completamente desarrazoadas, longe indo de sua função de órgão conciliador, como manda a própria lei, que faculta aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional do Consumidor a atuação na fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas, restando evidente, portanto, que não cabe ao Procon impor compulsoriamente a vontade do consumidor, obrigando que as instituições aceitem toda sorte de propostas inexequíveis.

Até porque, ao pensar no Procon como uma mesa de negociação que leva em conta ambos os lados e busca a melhor forma de satisfação do crédito sem comprometer o núcleo duro da existência mínima do consumidor, não seria nem preciso dizer que o conciliador não pode constranger ou intimidar as partes para que conciliem, em consonância com a Lei nº 13.140/2015 e o artigo 165, §2º, do CPC/15.

No Direito, vale a máxima de que não existem soluções fáceis para problemas difíceis. A Lei do Superendividamento precisa ser encarada de forma séria por todos, consumidores, Procons e fornecedores de serviço, máxime em uma época tão difícil como esta que todos estamos atravessando, e que também tem gerado, vale lembrar, um enorme número de empresas em recuperação judicial ou falência. Nem se diga que as instituições de ensino superior estão, desde o início da pandemia, sofrendo com considerável perda de receitas (evasão de matrículas e aumento da inadimplência). Além disso, o Judiciário já está abarrotado de processos e, certamente, não precisa de mais uma nova avalanche de ações anulatórias de multas.