Opinião

A responsabilidade penal do contador nos crimes fiscais cometidos pela empresa

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3 de dezembro de 2021, 12h16

O empresário, no exercício da atividade econômica, é onerado com o dever de escrituração, como prevê o artigo 1.179 do Código Civil. Por este motivo, exige-se do empresário, em regra, a adoção de um sistema de contabilidade, com base na escrituração uniforme de seus livros empresariais, sendo lhe imposto, ainda, a obrigação de levantar, anualmente, o balanço patrimonial e o de resultado econômico.

Como as atividades empresárias são estruturadas a partir da repartição de funções, o dever de escrituração é normalmente delegado a um profissional da área contábil, o que pode ser realizado tanto por meio da estruturação de um departamento de contabilidade dentro da própria empresa, quanto por intermédio da terceirização da gestão financeira do empreendimento, formalizada por meio de um contrato de prestação de serviços contábeis.

Eventualmente, o empreendimento pode envolver-se em atividades fiscais ilícitas, sendo crível que a malversação das demonstrações contábeis tenha repercussões criminais. Para tanto, é necessário que haja a subsunção das práticas tributárias ilícitas a tipos legais de crime, a exemplo dos delitos previstos na Lei 8.137/90. Contudo, como a pessoa jurídica é penalmente irresponsável pelos delitos fiscais cometidos em seu interesse, faz-se necessário identificar o profissional imbuído da função contábil do empreendimento, a fim de viabilizar a imputação por eventuais práticas criminosas.

Nesse sentido, entende-se que os gestores da atividade empresarial, por possuírem controle sobre seus processos, devem cumprir com os deveres de vigilância e proteção, comportando-se de tal modo a permitir que o empreendimento não cause danos a bens jurídicos alheios enquanto explore alguma atividade econômica. Caso o empreendimento realize resultados típicos, a inércia dos gestores em impedir a ocorrência desses eventos pode motivar uma eventual imputação omissiva imprópria, uma vez que são considerados garantidores da evitação de resultados evitáveis [1].

Essa mesma lógica pode ser transposta para o caso dos contadores, dado que o dever de manter a escrituração contábil estabilizada, inicialmente atribuído aos gestores, é delegado aos profissionais de contabilidade. Assim sendo, no respectivo departamento ou no desempenho da específica atividade contábil, o contabilista é garantidor da não ocorrência de crimes tributários, podendo ser responsabilizado tanto quando aja para praticá-los, quanto quando não aja para evitá-los, ambas as hipóteses na forma do artigo 11 da Lei 8.137/90 [2].

Desse modo, para além dos casos em que haja atuação individual ou concertada entre dirigentes e contadores, com o emprego de comportamentos fraudulentos positivos destinados a lesar o Fisco, é possível a responsabilização penal dos contadores no caso de inações, isto é, nas hipóteses em que se omitirem em evitar crimes tributários quando podiam agir para impedir tais práticas, já que onerados com deveres de ação. Todavia, a punição dos contadores por tais delitos depende do enfrentamento de algumas questões.

Inicialmente, uma primeira premissa intransponível se relaciona com a impossibilidade de responsabilização objetiva em matéria penal. Por isso, ainda que constatado que o empreendimento tenha prestado declarações falsas às autoridades fazendárias para suprimir ou reduzir tributo, por exemplo, não é possível imputar o delito, automaticamente, ao contador, sendo sempre exigíveis a comprovação da efetiva participação do acusado no cometimento do delito e a demonstração de sua culpabilidade.

Nesse sentido, para a responsabilização subjetiva, é imprescindível a comprovação do dolo, única modalidade de imputação subjetiva na sonegação fiscal, com a demonstração, ao menos, da representação do perigo qualificado de cometimento do crime tributário pelo contador [3]. Além disso, no plano da culpabilidade, faz-se necessária a demonstração da imputabilidade, da inexigibilidade de conduta diversa e da consciência da ilicitude do fato.

Posto isso, no caso do contador empregado, é essencial analisar os contornos fáticos do contexto empresarial, pois, a depender da conformação das atribuições corporativas, o contabilista não poderá agir de outro modo, sendo impossível o comportamento juridicamente adequado. Nesse sentido, se o contador, ao perceber determinadas práticas ilícitas no departamento contábil, reportar o ocorrido aos órgãos de cúpula da companhia, restando estes, porém, omissos no emprego das condutas necessárias para neutralizar o comportamento delituoso, não poderá aquele ser punido pela prática, pois empregou a conduta esperada, não lhe sendo juridicamente possível a evitação do resultado, vez que carecedor do poder de decisão e controle sobre a empresa. Assim, a impossibilidade jurídica de agir é fator impeditivo para a punibilidade do contador.

Não obstante, mesmo sem domínio sobre os processos empresariais, o contador será punível caso concorra em práticas tributárias delituosas, na medida de sua culpabilidade, não podendo alegar, eventualmente, "obediência a ordem de superior hierárquico" (artigo 22 do CP) [4] ou "exercício regular de direito" (artigo 23, inciso III, do CP) [5], dada a sua ilegalidade manifesta. Desse modo, ainda que a empresa adote uma postura de desrespeito às normas jurídico-tributárias, o costume antijurídico não tem o condão de validar práticas fiscais ilícitas, razão pela qual o contador, caso pratique quaisquer das condutas típicas ou deixe de impedir a ocorrência de resultados delituosos, será por eles penalmente responsabilizado.

No entanto, a responsabilização penal do contabilista depende da comprovação de um comportamento livre e consciente, razão pela qual, caso se omita ou preste declarações falsas às autoridades fazendárias por ter sido induzido a tanto pelos dirigentes ou por ter compreendido equivocadamente alguma operação ou documento fiscal, não responderá pelo crime, ante o erro sobre a situação fática que constitui o crime, hipótese em que incidirá a figura do erro de tipo (artigo 20 do CP) [6].

Com efeito, o reproche doloso nos crimes fiscais se justifica pelo emprego de práticas fraudulentas para evitar ou minimizar a carga tributária, lesando, com isso, o Fisco, o que não ocorre quando o sujeito desconhece a realidade ou a interpreta erroneamente. Também por isso, o mero inadimplemento, desacompanhado do elemento fraude, em que pese o cumprimento das obrigações tributárias acessórias, não funda qualquer resposta punitiva estatal, sendo atípico o simples débito fiscal.

No mesmo sentido, a responsabilidade do contador pode ser afastada no caso de erro sobre a ilicitude do comportamento empregado. Com efeito, diante do emaranhado legislativo tributário, o contador, por erro na análise da legislação, pode acreditar estar amparado por circunstância caracterizadora de hipótese de não incidência, imunidade ou isenção fiscal, o que pode levá-lo a deixar de lançar o tributo sobre determinada operação. Nesse caso, o erro sobre a proibição do comportamento afasta a culpabilidade do agente (artigo 21 do CP) [7].

Finalmente, a punibilidade do contador pode ser afastar nos casos em que o empresário, diante de uma situação fática de grave crise financeira, deixa de recolher os tributos devidos, optando por utilizar os recursos disponíveis nos processos empresariais, numa tentativa de soerguer a atividade econômica desenvolvida. Nessa situação, por não ser exigível conduta diversa, fica excluída a culpabilidade do agente, mesmo porque inexistentes quaisquer finalidades repressiva e preventiva da pena.

Logo, após o breve exposto, sem pretensões de esgotamento, é possível concluir que a responsabilização criminal é um risco ao qual o profissional de contabilidade está exposto. Por isso, deve o contabilista se cercar de práticas diligentes e prudentes para, com o conhecimento da situação fática e normativa, melhor assessorar o cliente, conduzindo a vida de empresas sem assumir o risco de cometimento de delitos fiscais.

 


[1] Cf. Cf. ESTELLITA. Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedade anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. 1. ed.  São Paulo: Marcial Pons, 2017.

[2] "Artigo 11 – Quem, de qualquer modo, inclusive por meio de pessoa jurídica, concorre para os crimes definidos nesta lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabilidade. (BRASIL, 1990)".

[3] Por um panorama geral sobre as teorias cognitivas e volitivas do dolo, cf.: VIANA, Eduardo. Dolo como compromisso cognitivo. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017.

[4] "Artigo 22  Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem".

[5] "Artigo 23  Não há crime quando o agente pratica o fato:        [..]
III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito".

[6] "Artigo 20  O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei".

[7] "Artigo 21  O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço".  

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