Crime e castigo

TRT-1 pune juíza com censura por quebra ilegal de sigilo de empresário

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3 de dezembro de 2021, 17h24

"Parece que nós estamos em um seriado em que o protagonista é a juíza Adriana. Agora, os atores coadjuvantes são diferentes. E o enredo de cada um desses capítulos também é diferente. O que temos em comum é o protagonista, que é a juíza, pessoas diferentes a acusando de alguns delitos e os possíveis delitos também são diferentes."

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A cidade de Barra Mansa, no Vale do Paraíba fluminense, ao sul da capital
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Pode parecer descabida, em um primeiro momento, a analogia acima feita pela desembargadora Raquel de Oliveira Maciel, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT-1), ao defender sua prevenção para relatar processos administrativos disciplinares contra a juíza Adriana Maria dos Remédios Branco de Moraes. Mas quando se analisam os trâmites dos muitos procedimentos aos quais a magistrada respondeu, sob a acusação de uma série de diferentes ilegalidades, percebe-se que o caso se assemelha mesmo a uma novela.

O mais recente capítulo é rodado no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para onde recorreram o advogado João Victor Arantes Silva e o empresário Paulo Afonso de Paiva Arantes. Os dois apontam irregularidades na distribuição das ações disciplinares contra a juíza Adriana no TRT-1 e alegam que o tribunal é omisso e perdeu a isenção para julgar a magistrada (leia aqui íntegra da petição). Por isso, querem que o CNJ avoque para si os casos e os decida. O relator do pedido, feito em 20 de outubro passado, é o conselheiro Sidney Madruga e o processo corre sob segredo de Justiça.

De um lado, advogados e empresários acusam a juíza de persegui-los, quebrar ilegalmente seus sigilos e de ter sido parcial no julgamento de ações que os envolviam na Justiça do Trabalho de Barra Mansa, cidade do Vale do Paraíba do estado Rio de Janeiro, a cerca de 130 quilômetros ao sul da capital fluminense. De outro, a juíza afirma que é vítima de represálias. Para instruir o processo no CNJ, em despacho do dia 12 de novembro, o conselheiro Madruga pediu informações à relatora dos processos contra a juíza no TRT e também à desembargadora Edith Maria Corrêa Tourinho, presidente do tribunal.

Oito dias antes do despacho, em sessão plenária no TRT-1, os desembargadores trabalhistas decidiram punir a juíza. Reconheceram que Adriana Maria dos Remédios quebrou o sigilo do empresário Paulo Arantes de forma ilegal, sem a fundamentação necessária para o ato, e também que ela feriu o Código de Ética e a Lei Orgânica da Magistratura ao ter usado clandestinamente os serviços de sua enteada em funções exclusivas de servidores públicos, inclusive na redação de minutas de suas sentenças.

A juíza já havia sido punida antes. Afastada da Vara de Barra Mansa em dezembro de 2019 por outra investigação, em setembro do ano passado o TRT-1 determinou sua remoção para a 25ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, onde hoje a juíza exerce suas funções. Mesmo já afastada de Barra Mansa, a juíza decidiu ações judiciais daquela vara, nas quais teria interesse pessoal.

Na sessão plenária de novembro, a maior parte dos desembargadores votou pelo afastamento da juíza de suas funções. Foram 20 os votos que seguiram o da relatora Raquel Maciel e defenderam a aplicação da pena mais grave de disponibilidade com vencimentos proporcionais. Outros 11 desembargadores votaram pela aplicação da pena de censura e quatro pela aposentadoria compulsória da magistrada. Apesar de a maioria preferir afastar a juíza de seu ofício, prevaleceu a pena mais leve, de censura.

O motivo é a Resolução 135/2011, do CNJ, que fixa as regras para aplicação de pena em processos disciplinares. Em seu artigo 21, a resolução estabelece que "a punição ao magistrado somente será imposta pelo voto da maioria absoluta dos membros do Tribunal ou do Órgão Especial". Em seu parágrafo único, esmiúça as balizas: "Na hipótese em que haja divergência quanto à pena, sem que se tenha formado maioria absoluta por uma delas, será aplicada a mais leve, ou, no caso de mais de duas penas alternativas, aplicar-se-á a mais leve que tiver obtido o maior número de votos".

O Pleno do TRT-1 tem, hoje, 53 desembargadores. Assim, pela Resolução 135, são necessários pelo menos 27 votos para que um magistrado seja punido. Quando o número de votos é maior do que 27, mas as penas são diferentes e nenhuma delas atinge a maioria absoluta, aplica-se a mais branda. No caso, a censura — ainda que o afastamento tenha somado dez votos a mais.

A ConJur procurou a juíza Adriana Maria dos Remédios para que pudesse comentar a decisão e questionar se ela pretende recorrer da pena de censura, mas não obteve resposta até a publicação desta da reportagem. Em março passado, a juíza afirmou ao site que a utilização dos serviços de sua enteada em trabalho exclusivo de servidores públicos já havia sido analisada "por mais de uma dezena autoridades, encontrando-se absolutamente superada pelo instituto da coisa julgada". Também se defendeu da acusação de escolher processos a dedo para julgá-los quando já não tinha mais competência para isso —  leia aqui o texto.

Acusações reunidas
A pena adequada a ser aplicada à juíza Adriana não foi a única questão que dividiu o Tribunal. Em julho passado, os desembargadores discutiram por quase duas horas sobre se os processos contra a magistrada deveriam ser reunidos sob a relatoria da desembargadora Raquel ou se deveriam ser analisados por relatores diferentes. Foi nesta sessão que a desembargadora se referiu ao protagonismo da juíza em relação a diversas acusações.

Estavam em debate dois processos. Em um, a juíza era acusada de usurpação de função pública por causa da utilização da enteada em seu gabinete para exercer, ilegalmente, função própria de servidor público. No mesmo processo, respondia por, nas palavras do desembargador Mafra Lino, "escolher a dedo" ações judiciais para sentenciar mesmo depois de removida da Vara de Barra Mansa e, logo, impedida de proferir atos judiciais naquele local.

No outro processo, segundo explicou na sessão a desembargadora Raquel Maciel, a acusação era de perseguição contra advogados. Relatora deste segundo procedimento, a desembargadora defendeu a reunião das ações para julgamento conjunto sob a sua relatoria. O tribunal, então, se dividiu em duas correntes. A que acompanhou a desembargadora Raquel entendeu que havia conexão entre as acusações a justificar o julgamento conjunto. Nos dois processos, sustentou a relatora, o pano de fundo era a perseguição da juíza a um grupo de advogados. Ainda que com atos diversos, isso justificaria a reunião dos casos.

A segunda corrente acompanhou a posição do desembargador Mafra Lino. Para ele, não havia qualquer hipótese de conexão porque o simples fato de ter uma protagonista não determinaria a reunião de processos. "Vamos imaginar que existe uma ação do Manoel contra o Itaú pedindo horas extras. E outra ação do João contra o Itaú pedindo equiparação. As partes são diversas e o objeto do pedido é diverso. Só porque há o banco Itaú as ações devem ser reunidas?", questionou. "O que temos aqui é a protagonista de diversas propostas de abertura de processos disciplinares. E isso, por si só, a mera identidade da pessoa a ser investigada, não justifica a união de processos. É necessário que as matérias em debate tenham uma conexão, uma correlação uma com a outra. E não há", defendeu Mafra Lino.

O desembargador ainda frisou que, por esse princípio, se todos os processos contra a juíza Adriana Maria dos Remédios tivessem sido colocados em debate na mesma sessão, a relatora reuniria cinco ou seis processos com matérias totalmente distintas. E arrematou: "Eu até entendo que cada um deva ser julgado separado porque isso justifica, inclusive, uma gradação da pena. A própria resolução 135 do CNJ fala em casos de reiteração. Se juntar tudo, não tem reiteração".

Apesar dos argumentos de Lino, a maioria decidiu, por 23 votos a 13, que o fato de haver o argumento de perseguição nas duas ações disciplinares justificava o julgamento conjunto. Em seguida, levantou-se o questionamento sobre a forma de distribuição. Porque o processo não havia sequer sido distribuído quando se deu o debate sobre prevenção. Pelo procedimento corriqueiro, seria sorteado um relator e, então, este relator avaliaria se há ou não conexão com a ação de relatoria da desembargadora Raquel para, então, abrir mão de relatar o caso. Essa inversão causou ruídos.

Após a proclamação do resultado sobre a prevenção, o secretário da presidência explicou que seria necessário preparar o PJe para a distribuição direta para a relatora designada na sessão: "O processo será distribuído a posteriori, não neste momento, para a desembargadora Raquel, porque será preparado o sistema para que a distribuição possa ser dirigida a Vossa Excelência. E isso não é um procedimento tão simples que possa ser feito neste momento".

O termo "distribuição dirigida" fez alguns desembargadores demonstrarem temor de que nulidades fossem alegadas futuramente pelas partes — tanto pela juíza processada quanto pelos empresários e advogados autores das reclamações — por quebra do princípio do juiz natural, já que não houve sorteio e livre distribuição. A primeira a se manifestar foi a desembargadora Carina Rodrigues Bicalho: "Eu ficaria mais tranquila se a distribuição fosse feita aleatoriamente, com a certidão da decisão do pleno e, então, o desembargador que recebesse remetesse para a colega preventa. Eu tenho muitas cautelas quanto à possibilidade de alteração do sistema para essa finalidade e gostaria de manifestar essa minha preocupação".

A preocupação da desembargadora Carina ganhou eco em outros votos. Alguns desembargadores e desembargadoras contestaram a ideia de fazer a distribuição dirigida e disseram que sequer sabiam que essa possibilidade existia. "Eu entendo que isso é uma manipulação do sistema. Isso não deve ser feito”, afirmou a desembargadora Rosana Salim Travesedo. Nos debates, houve quem defendesse que essa possibilidade técnica, de dirigir a distribuição, não deveria existir. Mas, como existe, deveria ser eliminada para evitar quaisquer questionamentos de partes e advogados.

Foi então que a desembargadora Raquel defendeu a decisão tomada pelo Pleno. "Estamos esquecendo de um pequeno detalhe. Se o CPC é claro nas hipóteses de prevenção, nós não podemos nos submeter ao que o PJe quer ou não quer. Se o Pleno decidiu que eu sou preventa, a juíza relatora, não estamos forjando nada. Cada vez mais, desde 2013, nós esquecemos do CPC e nos submetemos ao que o PJe permite ou não permite. Eu não sou juíza de PJe. Sou subordinada à Constituição, aos Códigos, ao CPC. Então, se há essa possibilidade, não há manipulação de distribuição, não há nulidade", sustentou a relatora.

Após mais debates sobre a possibilidade de manejo do PJe, decidiu-se que seria melhor evitar a distribuição direcionada. Parte dos desembargadores reforçou a preocupação com a possibilidade de se retirar juízes do sistema de distribuição para direcioná-la. Prevaleceu o entendimento de que a prevenção só se estabelece depois da distribuição. Ainda que o Pleno tenha invertido essa ordem e apreciado a conexão antes da distribuição do processo, optou-se por fazer a distribuição livre, por sorteio, e foi sorteada relatora a desembargadora Maria Helena Motta. Ela, então, abriu mão da relatoria, conforme decisão do Plenário do TRT-1, e os dois processos foram relatados pela desembargadora Raquel Maciel.

Violação do juízo natural
O receio demonstrado pelos desembargadores de que a inversão do procedimento de distribuição fosse contestada tinha razão de ser. É este justamente um dos pontos levantados na reclamação que o advogado João Victor Arantes Silva e o empresário Paulo Afonso de Paiva Arantes levaram ao CNJ, em que pedem que o Conselho avoque para si o julgamento e decisão dos processos contra a juíza.

"A inversão da ordem procedimental provocada pela relatora requerida instaurou uma acalorada discussão entre os desembargadores presentes na sessão, até que culminou em uma açodada decisão do Tribunal Pleno sobre matéria defensiva da indiciada Adriana e violou o Juiz Natural, futuro relator por livre distribuição, em sua independência funcional sobre a matéria, posto que, independentemente de quem fosse escolhido, já estaria condicionado a uma decisão colegiada de conexão dos feitos" sustentam.

Advogado e empresário defendem que o debate sobre a distribuição dirigida e a decisão sobre a conexão colocaram em dúvida a isenção do TRT-1 para julgar administrativamente os atos da juíza Adriana: "A gravidade dos fatos, que maculam a confiança na cognição do Tribunal Pleno para julgar o caso, reside nos votos daqueles desembargadores que entenderam pela distribuição dirigida, através do Sistema PJe, para a relatora requerida, ao fundamento de que se fosse para atender a decisão colegiada seria justificável a manipulação do sistema, o que não se pode admitir, sobretudo quando estamos diante de um processo com tramitação sigilosa".

"Quando se analisa as declarações proferidas na famigerada sessão de julgamento, que diga-se, uma sessão aberta ao público, não se pode crer em um julgamento equânime e imparcial, sobretudo quando se ventilou a possibilidade de indício de tentativa de fraudar o sistema eletrônico do Tribunal (PJe) com a finalidade da distribuição direcionada", alegam.

Na petição direcionada ao CNJ também afirmam que os processos se arrastram por mais de dois anos sem "qualquer indício de ser solucionados da maneira mais imparcial, equânime e justa para os envolvidos". Os reclamantes apontam parcialidade na condução dos casos e dizem que os seguidos adiamentos para julgar a juíza — de acordo com a petição foram dez prorrogações de prazo e oito sessões adiadas — violaram "preceitos constitucionais da eficiência, moralidade e publicidade".

Sob a relatoria do conselheiro Sidney Madruga, o pedido do advogado e do empresário deve ser analisado com a chegada das respostas e informações prestadas pelo TRT-1. Além de pedir informações, Madruga determinou a inclusão da juíza Adriana Maria dos Remédios no polo passivo da apuração de infração disciplinar.

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