Improbidade em Debate

Bloqueio, execução e menor onerosidade

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3 de dezembro de 2021, 9h52

Conhecido o princípio de que a execução é promovida em benefício do credor, o que quer dizer que essa modalidade de tutela, jurissatisfativa, é orientada ao atendimento de um direito já reconhecido.

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Disso não decorre, sem embargo, uma inexistência de direitos assegurados ao devedor. Ao contrário, o dogma de uma efetividade jurisdicional passa, bem antes da entrega do direito material, pela necessária proteção a direitos dimanantes da relação processual mesma, entre os quais avultam o contraditório e a ampla defesa.

Ladeando aqueles princípios, emergiu como contraponto ao princípio do resultado a ideia de menor onerosidade, tendo pertinência com a ideia de que, se a execução visa à satisfação do direito do credor, isso não significa que possa ela se prestar a instrumento de vingança pessoal, revigorando o período da manus injectio. O racional é simples: se certas facetas da esfera pessoal de liberdades do devedor são indisponíveis, por certo não poderiam elas ser sindicadas sob o pretexto da necessidade de se adimplir uma obrigação disponível.

Assim, portanto, que o Código de Processo Civil, em seu artigo 805, positiva que, quando a execução puder ser realizada por mais de uma forma, o juiz deve determinar aquela que seja feita pelo modo menos gravoso para o devedor. No mesmo sentido, ainda a opção pelo legislador processual ordinário de deixar fora do alcance da execução certas parcelas patrimoniais do devedor (absoluta e relativamente impenhoráveis) que lhe garantam mínima dignidade.

Indo além, são igualmente reflexos da menor onerosidade o estabelecimento de ordem preferencial para a penhora (artigo 835, embora atenuado pelo § 1º, que tornou sem efeito a Súmula 417/STJ); a possibilidade de substituição, pelo devedor, de bens penhorados (artigos 847 e 848); a invalidação da arrematação quando essa houver sido feita por preço vil (artigo 903, § 1º, I); e a vedação a bloqueio sobre quantias irrisórias (artigo 836). Não destoa, desses exemplos, ademais, decisão ilustrativa do Superior Tribunal de Justiça (REsp. 1.057.369/RS), afastando exigibilidade de astreintes em obrigação materialmente impossível de ser cumprida.

Estabelecidas essas bases da menor onerosidade, resgatamos o escopo desta coluna, que é a improbidade administrativa, para com ela relacionar o aludido princípio, fazendo-o a partir da reforma empreendida pela Lei n. 14.230/2021, já antecipando que não foram poucos os pontos de contato.[1]

Pois bem. Por força da mencionada reforma, houve a positivação da possibilidade de substituição da indisponibilidade patrimonial por caução, fiança bancária ou seguro-garantia judicial, além da vedação à sobreposição de bloqueios de modo a garantir em excesso o juízo beberam na fonte da menor onerosidade. Nesse último ponto, não era incomum, até recentemente, que constrições incidissem indiscriminadamente, atingindo com o total a ser garantido cada réu isoladamente, o que, feliz e normativamente, não mais se tolera.

Igualmente dignos de nota como produto da reforma os §§ 11, 12 e 13 do artigo 16, (i) a estabelecer uma ordem prioritária de bens sobre os quais fazer incidir a constrição, (ii) a instar o juízo a congregar em seu exame um olhar consequencialista a inibir embaraços cujo prejuízo supere a conveniência de sua garantia e (iii) a vedar indisponibilidade de até quarenta salários mínimos depositados em poupança, em aplicações financeiras ou em conta-corrente.

No que toca à ordem de preferência, reverberando o Código de Processo Civil, o racional da norma está em, ao privilegiar bens de menor liquidez, assegurar a manutenção da subsistência do réu, somente autorizando constrição de valores em espécie subsidiariamente.

No que concerne ao olhar consequencialista, não pode o bloqueio abstrair, por exemplo, a função social da empresa, pretendendo, a pretexto de forrar-se quanto ao risco de futuro inadimplemento, embaraçar o próprio funcionamento da atividade, prejudicando a capacidade de pagamento de quem ainda nem sequer é definitivamente devedor e produzindo efeitos colaterais perniciosos para terceiros.

Finalmente, acerca da “impenhorabilidade”, nova influência do Código de Processo Civil se faz sentir aliado ao entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, ambos a estabelecer um parâmetro presuntivo aquém do qual os valores em posse do réu teriam mais importância a sua própria mantença que capacidade de fazer seriamente frente a valores nem sequer ainda definitivamente devidos.

Ainda recorrendo à reforma levada a efeito pela Lei n. 14.230/2021, merece também menção o § 8º do artigo 18, que diz que “O juiz poderá autorizar o parcelamento, em até 48 (quarenta e oito) parcelas mensais corrigidas monetariamente, do débito resultante de condenação pela prática de improbidade administrativa se o réu demonstrar incapacidade financeira de saldá-lo de imediato.” Talvez seja esse o dispositivo resultante da reforma que de modo mais evidente exprimiu a menor onerosidade, assegurando o pagamento do débito, mas de modo a assegurar ao devedor via alternativa que atenue o cumprimento de seu compromisso.

Todo esse arrazoado tecido até aqui possui uma razão de ser: não apenas demonstrar o diálogo empreendido pela reforma da Lei de Improbidade com institutos já consagrados no direito processual civil, mas fixar a premissa de que o réu em improbidade, notadamente quando ainda não condenado e alvo de constrição precária[2] — mas também, e sobretudo, quando já condenado —, observa em seu favor proteções mínimas, que merecem e devem ser honradas, o que nos leva ao nosso próximo tópico.

É que o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.929.230, admitiu o emprego das chamadas medidas executivas atípicas em sede de improbidade administrativa respeitado um balizamento que tomasse em conta (i) indícios de patrimônio expropriável, (ii) subsidiariedade na adoção de tais medidas, (iii) observância do contraditório substancial e (iv) proporcionalidade.

Em primeiro lugar, ainda que no caso em questão o exame haja sido de fato abstrato, não deixa de causar alguma curiosidade o fato de o Superior Tribunal de Justiça, em casos que tais, tem contornado o enunciado n. 7 de sua Súmula para aferir aspectos como proporcionalidade e potencial expropriatórios, dimensões que, segundo entendemos, dificilmente não revolveriam reexame fático-probatório.

Seja como for, nossa opinião, em certo sentido já conhecida, é de que as principais medidas atípicas comumente adotadas sob o signo do artigo 139, IV — apreensão de CNH e de passaporte — são clamorosamente inconstitucionais, tanto é assim que postulamos na ADI 5.941, ainda pendente de exame, sua declaração e nulidade parcial sem redução de texto.

Acontece que, em nível de improbidade, entendimentos como aquele versado no acórdão do STJ já referido nos preocupam ainda mais, eis que teriam o sedutor condão — para os entusiastas de um processo tecnocrático — de funcionar como sanção adicional a se somar às já consideráveis punições catalogadas pela Lei de Improbidade.

Ilustramos o que estamos a dizer a partir de um exemplo hipotético grave: imagine-se um réu condenado em improbidade ao pagamento de multa, quiçá até pelo baixo potencial lesivo de sua conduta. Haveria campo teórico para que, na perseguição do pagamento dessa multa, o sobredito réu fosse atingido em sua esfera pessoal, em qualquer medida, vendo embaraçado seu direito de locomoção?

Mudamos o exemplo: não logrando o Ministério Público identificar patrimônio sobre o qual fazer recair bloqueio em desfavor do réu, faria sentido valer-se de medidas coercitivas que estimulassem uma garantia “espontânea” do juízo?

Àquelas duas perguntas respondemos negativamente e fundamentamos objetivamente: o processo civil é menos plataforma para um exercício de poder sob o signo de um ideal eficientista e mais um conjunto de vetores de realização de direitos fundamentais que limitam o próprio exercício daquele poder, simplesmente inexistindo, em nossa visão, parâmetro capaz de tornar constitucionais algumas leituras que se tem conferido ao artigo 139, IV.

No que tange à improbidade, especificamente, sendo maiores e potencialmente mais gravosos os poderes exercíveis pelo Estado e os direitos atingíveis do réu, menos espaço ainda deveria socorrer investidas voltadas à satisfação de obrigações, notadamente quando a principal delas — ressarcimento ao erário — é imprescritível na modalidade dolosa, única atualmente apta a acomodar a prática de improbidade.

Sinteticamente, não entendemos haver campo para a adoção de medidas executivas atípicas em improbidade; se superado esse entendimento, decerto os parâmetros que têm sido erigidos jurisprudencialmente como condição a tanto deveriam ser sensivelmente recrudescidos em se tratando de improbidade.

 


[1] Não se desconhece que o bloqueio ou a indisponibilidade não possuem natureza exclusivamente executiva, senão revestindo-se de caráter cautelar. Sem embargo, haja vista que a constrição inequivocamente representa ato preparatório para futura execução, e haja vista a aproximação feita pela reforma com disposições processuais que norteiam o processo de execução, permitimo-nos também aproximar o tema do bloqueio em improbidade com o princípio da menor onerosidade.

[2] Se a menor onerosidade há de socorrer o réu já condenado, quando em fase de execução, sentido não haveria em que o bloqueio como mecanismo preparatório da execução, e diante da impossibilidade de cumprimento provisório, não assegurasse ao réu, em homenagem ao princípio da não culpabilidade, proteção alguma.

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