Retrospectiva 2021

Um panorama da jurisprudência sobre gravações ambientais clandestinas

Autor

  • Felipe Lins Maranhão

    é advogado criminalista graduado pela UERJ pós-graduado em processo penal pela Universidade de Coimbra e sócio do escritório Bidino & Tórtima Advogados.

3 de dezembro de 2021, 10h00

A chamada "gravação ambiental clandestina" — aquela feita durante um diálogo por um dos interlocutores sem o conhecimento do(s) outro(s) e sem autorização judicial — é prova admissível em processos criminais? Se sim, pode ser utilizada tanto pela defesa quanto pela acusação? E em outras searas do Direito, como no âmbito cível-eleitoral, a prova é admissível?

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Em abril deste ano, o Congresso Nacional rejeitou determinados vetos do presidente da República sobre a Lei 13.964/19 (cognominada Lei Anticrime), entre os quais o veto sobre dispositivo que introduz na Lei 9.296/96 (Lei de Interceptações Telefônicas) o artigo 8º-A, parágrafo quarto. Dessa forma, foi assegurada a vigência do dispositivo que trata de gravações ambientais realizadas sem o conhecimento do interlocutor:

"Lei 9.296, artigo 8º-A, §4º: A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação".

Antes da vigência desse dispositivo, no âmbito criminal, a consolidada jurisprudência do STF admitia o uso da gravação ambiental feita por interlocutor sem o conhecimento do outro em processos criminais, tanto pela defesa quanto pela acusação. Esse entendimento era aplicável tanto à gravação ambiental, feita presencialmente, como também à gravação de ligação telefônica, quando captada por um dos interlocutores.

É importante distinguir as hipóteses acima daquelas em que pessoa alheia à conversa promove captação ambiental, ou em que terceiro alheio à ligação intercepta o seu conteúdo. Nesses casos, inexistindo autorização judicial, naturalmente, trata-se de prova ilícita segundo a pacífica jurisprudência das cortes superiores, podendo o responsável incorrer nos crimes tipificados nos artigos 10 e 10-A da Lei 9.296/96 (este último instituído pela própria Lei 13.964/19).

A introdução do artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96 vem suscitando debates e gerando expectativas sobre a fixação de parâmetros na jurisprudência acerca da admissibilidade da gravação ambiental clandestina como prova de acusação.

Da leitura do dispositivo, parece evidente que pretendeu o legislador restringir o uso da gravação ambiental clandestina ao exercício do direito de defesa, vedando, assim, a sua utilização como prova de acusação.

Até o presente momento (novembro de 2021), no entanto, os tribunais superiores ainda não definiram claramente se as gravações ambientais clandestinas efetivamente passam a constituir prova ilícita para fins de acusação no processo penal, e, em caso positivo, se a nova disciplina é aplicável apenas a provas produzidas durante a vigência do artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96, ou se pode ser aplicada a provas produzidas antes de sua vigência.

O Superior Tribunal de Justiça não tem aplicado o artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96 — ao menos não em relação a gravações ambientais clandestinas utilizadas como prova de acusação antes da vigência do novo dispositivo. Nesse sentido, a 5ª Turma do STJ julgou, em junho, recurso especial em que se alegava a ilicitude de gravação ambiental clandestina utilizada como prova de acusação no plenário do júri antes da vigência do artigo 8º-A, §4º. Entendeu-se pela licitude da prova e o novo dispositivo sequer foi mencionado no acórdão (AgRg nos EDcl no REsp nº 1843519).

O Supremo Tribunal Federal também parece não ter ainda aplicado o novo dispositivo na seara criminal. Todavia, no âmbito cível-eleitoral, foi reconhecida repercussão geral do Tema 979 no RE 1040515, que versa sobre a admissibilidade de gravação ambiental clandestina em ação de impugnação de mandato eletivo. Em junho — portanto, durante a vigência do artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96 —, o relator ministro Dias Toffoli, sem fazer qualquer menção ao novo dispositivo, votou pela ilicitude da gravação ambiental clandestina a partir das eleições de 2022, salvo nos casos em que for captada em local público desprovido de controle de acesso. O julgamento foi suspenso após pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

Curiosamente, foi no Tribunal Superior Eleitoral em que ocorreu o mais relevante debate sobre o artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96, protagonizado pelos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, e que fornece algumas perspectivas sobre o posicionamento a ser fixado pelo Supremo Tribunal Federal.

O entendimento do TSE sobre gravações ambientais clandestinas em processos cíveis-eleitorais tem oscilado ao longo da última década. A partir de 2012, a corte passou a restringir a utilização desse meio de prova. Em 2015, o TSE fixou entendimento no sentido de admitir esse tipo de gravação apenas "quando registrar fatos ocorridos em espaços públicos ou não sujeitos à expectativa de privacidade" (REspe n° 637-61). Já em 2019, sob a relatoria do ministro Edson Fachin, ampliou-se novamente a sua utilização, fixando-se a regra da licitude das gravações ambientais clandestinas (REspe nº 408-98/SC).

No entanto, em acirrado julgamento concluído em 7 de outubro, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, entendeu o TSE pela ilicitude de gravação ambiental clandestina produzida antes da vigência do artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96 (AgRG no AI 293-64.2016.6.16.0095).

De um lado, o ministro Alexandre de Moraes apontou tratar-se de gravação ambiental realizada em ambiente privado (residência de eleitor) e fundamentou seu voto nos incisos II, X e XII do artigo 5º da Constituição Federal, bem como no artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96. Ao mencionar esse último dispositivo, apontou o ministro que "a consideração de que válidas as gravações aqui utilizadas seria questionável ainda que de instrução ou investigação criminal se cuidasse. No âmbito estrito de representação eleitoral sem vinculação penal, então, e ilegalidade é patente".

O ministro mencionou que havia "lacuna legal na regulamentação de gravações ambientais", suprida pelo advento do artigo 8º-A da Lei 9.296/96. Em seu entendimento, o novo dispositivo deveria ser aplicado a todos os processos em curso, por se tratar de norma protetiva de direitos fundamentais.

De outro lado, o ministro Luís Roberto Barroso divergiu e entendeu pela licitude da gravação ambiental em questão, com fundamento no princípio da isonomia — para que fosse aplicado o mesmo entendimento a todos os casos envolvendo as eleições de 2016 —, e também por entender que a chamada Lei Anticrime, "por ser direcionada às ações penais, não tem impacto imediato no âmbito de ações cíveis eleitorais".

Barroso pontuou, ainda, tratar-se de norma processual que regulamenta um meio de prova, de modo que, em seu entendimento, não poderiam ser afetadas as provas produzidas antes de sua vigência. De todo modo, reservou-se o ministro a analisar os efeitos do novo dispositivo legal no julgamento do mencionado recurso paradigma a ser retomado no Supremo Tribunal Federal.

Prevaleceu, por quatro votos a três, o entendimento do ministro Alexandre de Moraes, vencidos os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Sérgio Banhos. Se consolidado esse entendimento, as gravações ambientais clandestinas captadas em ambiente privado poderiam vir a ser consideradas ilícitas em todos os processos cíveis-eleitorais atualmente em curso.

Há, portanto, mais perguntas do que respostas sobre a aplicação do dispositivo do artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96, que está vigente desde abril, mas ainda não recebeu a devida atenção do STF e do STJ ao longo desse ano.

Na seara criminal, ainda nem sequer foi assentado pelo STF ou pelo STJ que a gravação ambiental clandestina passou a ser inadmissível para fins de acusação. Tampouco se sabe se o dispositivo será aplicado indistintamente a todos os processos em curso — conforme entendimento do ministro Alexandre de Moraes na seara cível-eleitoral — ou apenas àqueles em que a prova foi produzida durante a vigência do novo dispositivo.

Na seara cível-eleitoral, a expectativa é de que o STF, ao julgar o RE 1040515, analise os efeitos do artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96. O relator do caso, ministro Dias Toffoli, embora não tenha mencionado o dispositivo, votou pela ilicitude das gravações ambientais clandestinas a partir das eleições de 2022. Sabe-se, pelos debates no TSE, que o ministro Alexandre de Moraes entende pela ilicitude das gravações clandestinas em todos os processos atualmente em curso, por força do artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96, e que os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin são contrários à aplicação do dispositivo às provas produzidas antes de sua vigência.

Caso prevaleça no STF o entendimento do ministro Alexandre de Moraes, o artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96 poderia ser aplicado a todos os processos criminais e processos cíveis-eleitorais atualmente em curso para que seja reconhecida a ilicitude de gravações ambientais clandestinas utilizadas como prova de acusação. Espera-se ver todas essas questões respondidas na retrospectiva de 2022.

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