Opinião

A seguridade social como resposta às crises sociais: passado, presente e futuro

Autor

  • Zeno Simm

    é advogado mestre e doutor em Direito juiz aposentado do TRT-9 membro da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT) e da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social (ABDSS).

2 de dezembro de 2021, 16h12

A chamada questão social, ou, mais amplamente, as crises sociais, sempre estiveram presentes na história da humanidade e não se sabe se um dia deixarão de existir.   

No passado remoto, as vicissitudes naturais da vida eram abrandadas por algumas providências individuais, familiares ou grupais, geralmente sob a forma de mutualismo, e também por ações de caráter caritativo inspiradas principalmente pelo cristianismo. Após a Revolução Industrial, e caracterizada a grande desigualdade social trazida pelas ideias do liberalismo, surgiram algumas iniciativas como o chamado paternalismo industrial, caracterizado por práticas sociais dos empregadores em favor dos seus trabalhadores. A Igreja Católica também começou a se preocupar com as questões sociais através das encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno, e o Estado sofreu críticas por estar ausente dessa ação protetora, o que foi suprido pelas primeiras leis de amparo aos pobres, de proteção contra acidentes do trabalho e de alguns seguros na Inglaterra, na Alemanha, na Áustria, nos Estados Unidos e na França. Os sistemas públicos de proteção social começaram a desenvolver pincipalmente após a Primeira Guerra Mundial, e com a criação da OIT passou-se a uma internacionalização da seguridade social. A partir da Segunda Guerra surgiu o welfare state, ou Estado-providência, objetivando promover o bem-estar social através de serviços públicos, mas que veio a entrar em crise na década de 1980. Nesse cenário de colapso, a Constituição brasileira de 1988 introduziu um sistema protetivo de maior magnitude que, todavia, já começava a ser abandonado em outros países por ser insuportável para o Estado. Em alguns deles (e até por pressão de organismos financeiros internacionais) houve a privatização dos riscos sociais, com a substituição do seguro social público pelo privado, de forma total, parcial ou paralela, como aconteceu em alguns países da América Latina. Segundo a OIT, de 1981 a 2014, 30 países privatizaram total ou parcialmente seus sistemas previdenciários e, até 2018, 18 voltaram atrás, revertendo total ou parcialmente o sistema privado.

A crise financeira mundial de 2008 e outras sequelas resultantes do neoliberalismo atingiram também os sistemas de seguridade social, que tiveram de ser revistos e adequados aos novos tempos. O desemprego, a crise fiscal do Estado, a informalidade, as mudanças demográficas e a elevação da expectativa de vida, aliadas a episódios de fraudes e evasão fiscal, colocaram os sistemas de seguro social em situação caótica. Mais recentemente, os efeitos da pandemia da Covid-19 também foram severos na área da proteção social. Em registro histórico, pode-se dizer que o sistema de seguridade social brasileiro, ao contrário de outros países até mais desenvolvidos, resistiu muito bem aos efeitos da pandemia. As ações de saúde continuaram sendo prestadas de forma bastante razoável e diversos auxílios assistenciais emergenciais foram ofertados a grande parte dos necessitados, inclusive pequenas empresas. As prestações do seguro social continuaram sendo pagas normalmente, mas registrando-se dificuldades no processamento de novos benefícios em razão das rígidas regras de isolamento social e de suspensão das atividades presenciais. Ao revés, grandes perdas foram sentidas nos países em que o seguro social foi privatizado e onde vigora o regime de capitalização individual.

E o futuro? O que esperar da proteção social no século 21 na América Latina? Não se pode antever um futuro promissor e satisfatório se não houver algumas mudanças.

Uma delas é substituir o atual e lastimável individualismo egocêntrico por um espírito de solidariedade social. Esse individualismo coletivo, se assim se pode dizer, caracterizado pela falta de empatia e de alteridade, com o sentimento de o indivíduo colocar-se à frente de tudo e de todos, causa uma fragmentação do tecido social e aniquila as formas de solidariedade. Há um culto exacerbado ao próprio "eu", às vezes até narcisista e exibicionista em relação à própria imagem. Formam-se grupos das chamadas minorias de variados matizes que buscam sua proeminência e empoderamento social. A vida em sociedade pressupõe a interação, a empatia e a interligação entre as pessoas, pois o indivíduo é parte do todo e se aquele não está bem este também não estará.

A fugacidade da vida moderna e o atual caráter efêmero das relações sociais retira do indivíduo a preocupação com o futuro, importando-se apenas com o imediatismo do aqui e agora, modus vivendi que igualmente deve sofrer uma transformação. Há de se incentivar a poupança e a prevenção quanto aos riscos sociais, muitas vezes imprevisíveis e inevitáveis, para não se depender da caridade estatal em futuro estado de carência. Para isso têm sido instituídos alguns sistemas alternativos e complementares ao sistema oficial de seguridade, de adesão facultativa, como também em alguns grupos profissionais têm sido recriados sistemas de mutualismo, igualmente de adesão voluntária e com o objetivo de se proporcionar uma ajuda financeira aos beneficiários do membro falecido.

O seguro social deve ser executado pelo poder público, e não por empresas privadas com fins lucrativos, nem sujeito às flutuações do mercado de capitais. Imperioso, pois, que os países, em especial os da América Latina, revertam o processo da fracassada privatização. O regime deve ser da repartição e não da capitalização, com a mais ampla solidariedade social, e mantido pelos aportes dos segurados, de toda a sociedade e do Estado, para não sobrecarregar apenas empregados e empregadores. Embora o seguro social tenha se originado no campo do trabalho subordinado e os primeiros regimes previdenciários tivessem como fonte de custeio a contribuição dos empregados e empregadores (que continua existindo), é importante distinguir o seguro social do emprego, seja para não onerar demasiadamente a folha de salários (o que causa redução salarial e desemprego), seja porque a relação de emprego formal (CLT) é uma espécie de trabalho que vem perdendo forças para o desemprego e para novas modalidades de trabalho, muitas delas informais, afetando a arrecadação para o custeio do sistema. Os jovens preferem o trabalho flexível, sem a rigidez de horário e sem as amarras da subordinação tradicional da CLT e boa parte não se inscreve nem contribui para o seguro social, mas estes um dia irão envelhecer e ter necessidades que não poderão satisfazer sozinhos.

O regime de seguro social deve ser igual e uniforme para todas as categorias profissionais. A filiação obrigatória deve ser estendida ao maior número possível de cidadãos, compreendendo pelo menos toda a população economicamente ativa de qualquer condição, inclusive os trabalhadores informais. Pela lei brasileira (nº 8.212/91, artigo 12), todas as formas de trabalho (inclusive os informais e eventuais) determinam a filiação obrigatória ao INSS [1], mas na prática isso geralmente não ocorre (até por incapacidade financeira do trabalhador) e, no entanto, um dia estas pessoas necessitarão de amparo em suas necessidades e a conta será paga por todos.

É preciso aparar as desigualdades, saciar a fome dos famintos e satisfazer a necessidade dos necessitados, e isso só se conseguirá por meio de um sistema adequado de seguridade social, revisto e atualizado periodicamente conforme a variação das circunstâncias, com o objetivo de garantir ao indivíduo uma vida com dignidade e segurança.  É preciso formular um novo modelo, inclusivo e baseado na solidariedade social e na universalidade da cobertura, destacando-se, como quer Ramón Martín Mateo, "a qualidade de vida como valor jurídico".

A solução não é única, nem simples, é plural e complexa e deve ser buscada através de um amplo diálogo social entre o governo e as classes sociais organizadas, de forma aberta, transparente e imparcial, sem sectarismos e sem pressões de organismos financeiros internacionais e do corporativismo de classes sociais privilegiadas, o que já não foi observado nas grandes alterações estruturais do seguro social ocorridas no passado. É isso ou o caos.

Não se pode olvidar a lição de Wagner Balera: "A seguridade social é o melhor instrumento que o engenho humano soube produzir para a conquista do bem-estar coletivo".

 


[1] Cabe registrar que em alguns municípios, como Curitiba, ao se credenciar como motorista de aplicativo o interessado deve comprovar sua filiação ao INSS como contribuinte individual.

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    é advogado, membro da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social-ABDSS e da Associação Brasileira dos Magistrados do Trabalho-ABMT e juiz aposentado do TRT-9 (Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região).

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