Opinião

O 'caso Márcia Barbosa' no enfrentamento à violência contra a mulher

Autores

  • Gustavo Ferreira Santos

    é professor doutor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco do programa de Pós-Graduação em Direito da própria universidade ex-coordenador da area de Direito na Capes (2016-2018) ex-coordenador adjunto para Mestrados Profissionais da Área de Direito na Capes (2014-2016) ex-coordenador adjunto da Área de Direito na Capes (2008-2011) membro do REC (Grupo Recife de Estudos Constitucionais) e pesquisador PQ 2-CNPq.

  • Luís Emanuel da Cunha

    é doutor em Direito pelo PPGD-UFPE e professor universitário.

  • Manoel Severino Moraes de Almeida

    é doutorando em Direito pelo PPGD-UNICAP e titular da Cátedra UNESCO-UNICAP de Direitos Humanos Dom Helder Camara.

2 de dezembro de 2021, 17h18

No último dia 24, a Corte Interamericana de Direitos Humanos prolatou sentença sobre o "caso Márcia Barbosa", uma decisão importante que marca as comemorações dos 40 anos de existência da ONG Gajop (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares), juntamente com Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Cejil e Fundação Margarida Maria Alves, as peticionárias do caso junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Pois bem, este artigo não tratará de um dos resultados positivos, se é possível olhar pelo prisma de que um crime não punido e impune pode gerar algo de positivo para a sociedade. Ainda assim uma mudança significativa resultado de toda luta pela justiça devida a Márcia Barbosa e sua família foi a Emenda Constitucional 35/2001, que alterou a sistemática de proteção da imunidade parlamentar no Brasil. A explanação técnica sobre isso, vocês podem encontrar no excelente artigo da professora Melina Fachin, disponível aqui na ConJur.

Com efeito, vamos tratar aqui sobre acontecimentos no decorrer dos 21 anos de trâmite desse caso junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos a partir da perspectiva de dois profissionais da área, do caso e da ONG peticionária. Sim, 21 longos anos, muitas pessoas envolvidas, um projeto de vida de uma jovem aniquilado, uma família devastada, a Justiça e o Legislativo desacreditados e fortemente marcados por determinismos sociais locais.

Márcia Barbosa de Sousa, natural de Cajazeiras, próxima à divisa com o Ceará, mas a 470 quilômetros de João Pessoa, com 20 anos de idade, resolve buscar mais oportunidades na capital, fugindo da pobreza e da falta de expectativas da longínqua cidade do sertão. Esperava seguir com os estudos e trabalhar para ajudar a família.

Só que os caminhos para uma jovem negra não são fáceis. A tal meritocracia tão propalada pelos privilegiados como meio para as conquistas pessoais e sociais é, de fato, um privilégio de poucos. Nesse universo restrito, Márcia Barbosa e tantas outras mulheres como ela não acessam e só lhes resta a parte difícil de ser mulher, pobre, nordestina, negra e jovem.

Sobre essas dores, não nos cabe dizer sua capacidade de ferir o corpo, o espírito e marcar as memórias porque não é nosso lugar de fala. Porém, essa jovem mulher, diante desses fatores identitários, passou a ter encontros com então deputado estadual Aércio Pereira de Lima, um homem de 55 anos em 1998, natural de Pombal, cidade onde sua família detinha fazendas de cana-de-açúcar, álcool e algodão. A família do deputado tem histórico político também ligado à UDN, em seguida, à Arena, em seguida ao PFL. O próprio deputado Aércio teve seis mandatos como deputado estadual. No quinto, aconteceu o crime de assassinato contra Márcia Barbosa. No sexto, a Assembleia Legislativa da Paraíba negou, pela segunda vez, a autorização para processar criminalmente o deputado.

A partir da mudança trazida pela EC 35/2001 e do fim do sexto mandato do deputado, o processo criminal foi enviado para a primeira instância da Justiça estadual paraibana. cinco anos de paralisia processual devido à negativa da Assembleia que, sem justo motivo e nem justificação, decidiu proteger o deputado, valendo-se de uma suposta decisão soberana do plenário. Ops!! Existe soberania política absoluta frente a uma violação de direitos humanos? Instrumentalizar a imunidade parlamentar para evadir uma pessoa da persecução penal é compatível com o Estado democrático de Direito?

É esse o ponto principal do "caso Márcia Barbosa". Um deputado estadual usa de sua influência política para obstruir o processo criminal. Curiosamente, a investigação criminal funcionou a ponto de identificar as ligações e contatos entre Márcia Barbosa e o deputado Aércio no dia e hora próxima da morte, o deslocamento do carro dele até a pousada onde ela estava hospedada, identificou e ouviu uma testemunha que viu o deputado Aércio, em seu carro, com a mala aberta no terreno baldio, desovando o corpo, posteriormente identificado como o de Márcia Barbosa.

Apesar das provas, a denegação de Justiça para a vítima e sua família fez império. No dia 26 de setembro de 2007, o júri finalmente aconteceu. O acusado, ex-deputado Aércio, teve como defensor o advogado Bóris Trindade. De outro lado, um acanhado e emudecido promotor de Justiça e um voraz advogado assistente de acusação, Israel Guedes, auxiliado pelo advogado Hugo Moreira.

A condenação do ex-deputado Aércio a 16 anos pelo assassinato e ocultação de cadáver de Márcia Barbosa pareceu sinalizar uma superação da impunidade, mas o falecimento do ex-deputado, em fevereiro de 2008, seguido do acidente automobilístico também fatal de Israel, em março daquele ano, dois episódios impactantes para a família de Marcia Barbosa, cujos pais se separaram, o pai em grave situação física por conta de alcoolismo e a mãe profundamente triste pelo destino enfrentado pela filha e totalmente descrente na Justiça.

O sentimento de justiça foi ceifado da família de Marcia Barbosa, ainda que o Poder Judiciário tenha encerrado a prestação jurisdicional com a declaração de extinção de punibilidade pelo evento morte do acusado. Realmente, devemos discutir a qualidade do acesso à Justiça no Brasil. A Justiça formal não tem dado conta das expectativas da Justiça material.

Mais uma vez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condena o Brasil por denegação de Justiça. Mais uma vez, chama a atenção que uma ferramenta do Estado democrático de Direito não deve ter sua funcionalidade fraudada. Com efeito, a imunidade parlamentar foi instrumentalizada em prol da impunidade nesse caso. Mais uma vez, a Convenção de Belém do Pará, ou Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, é apontada como meio para coibir a violência contra a mulher.

A Lei Maria da Penha é um resultado jurídico, legislativo e político significativo no enfretamento à violência contra a mulher, mas todo o sistema de proteção e de promoção funcional em torno dessa lei precisa ser otimizado e realmente integrado: vara judicial especializada, polícia especializada, casas abrigo da atendimento interdisciplinar e campanhas preventivas de conscientização permanentes.

A sensação presente pela leitura dos indicadores sobre violência contra a mulher é que essas peças do sistema de promoção e proteção existem, mas ainda demandam integração funcional em maior escala para realmente auferir melhores resultados nesse enfrentamento.

Mensurar a efetivação da Lei Maria da Penha e pensar na otimização legal e do sistema de promoção de proteção da mulher é uma proposta já levada ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, ainda em sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por meio do "caso Maristela Just", um feminicídio também com denegação de Justiça, que brevemente deve seguir para análise da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Ser uma defensora póstuma de direitos humanos talvez não fosse o projeto de vida pensado por Márcia Barbosa para ela mesma, mas assim seu nome se eternizou: pela defesa dos direitos humanos e pelo fim à violência contra a mulher.

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