Opinião

Lei 14.245/2021: alguns traços do Direito Penal de emergência

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2 de dezembro de 2021, 19h14

No último dia 23 entrou em vigor a Lei 14.245/2021, conhecida pelo nome da pessoa que a motivou, Mariana Ferrer, mulher que figurou como vítima de um crime sexual em tumultuado processo no qual o acusado restou absolvido.

Neste escrito, não se está a adentrar aos meandros da causa judicial envolvendo Mariana, muito menos tecer qualquer comentário acerca de eventual acerto ou desacerto da decisão. O mister pretendido é compreender a reação do Direito Penal diante de eventos como os quais ocorreu com Mariana Ferrer, e apontar eventuais problemas e soluções à luz da efetividade do Direito.

A consideração da vítima nos processos legislativos atuais é fruto do avanço da aproximação da vítima ao fenômeno criminal, antes relegado à tríade autor-crime-pena, formando-se uma nova perspectiva [1]. Essa valorização da vítima vem ocorrendo também no campo científico, com a difusão dos estudos modernos voltados à vitimologia e à vitimidogmática.

Todavia, no campo da produção legislativa, alguns fatores agem como causas de expansão do Direito Penal; ou seja, como motivos que fazem existir mais leis.

Uma das causas de expansão do Direito Penal é a identificação da maioria com a vítima do delito. Nesse processo de expansão, resumidamente, à luz do magistério de Silvia Sánches [2], a sociedade reclama um Direito Penal que parta da perspectiva de proteção da vítima, funcionando como Carta Magna da vítima, e não como a Carta Magna do delinquente, sendo que esta remonta aos moldes do Direito Penal clássico. Nessa movimentação expansionista apontada, os crimes sexuais aparecem no primeiro plano da discussão social sobre o delito.

Dessa feita, pode-se depreender que a Lei Mariana Ferrer é fruto de um processo legislativo expansionista, no sentido de aproximar a sociedade do discurso vítima, a exigir produção de leis.

Todavia, em que pese o nobre mister acima aduzido, no tocante à inovação no âmbito do Direito Penal material  a instituição de causa especial de aumento de pena no crime de coação no curso do processo quando o processo envolver crime contra a dignidade sexual —, denota incremento penal seletivo, divorciado da objetividade jurídica do tipo, que cuida da administração da Justiça, modalidade de crime contra a Administração Pública que, salvo melhor juízo, não guarda relação de proteção específica à dignidade sexual, a seus processos e suas vítimas.

O que se pretendeu com a referida lei foi difundir um entendimento de que no "caso Mariana Ferrer" teria havido uma coação no curso do processo e, a partir de então,  foi criada empatia da maioria com a vítima desse processo específico para, consequentemente, se afirmar que os processos envolvendo crimes contra a dignidade sexual são mais suscetíveis a ter coação no curso do processo.

Tal leitura, no afã de proteger determinado episódio, quebra a isonomia, na medida em que se deixam situações notoriamente relevantes alheias ao âmbito de proteção normativa. É o exemplo dos processos envolvendo crimes contra a integridade física no âmbito de violência doméstica, de suma gravidade e que não são protegidos de forma específica no crime de coação no curso do processo.

Depreende-se, portanto, que embora exista a possibilidade de proteção específica no âmbito penal, considerando-se inclusive a vulnerabilidade da vítima, as reformas legislativas requerem um alinhamento à objetividade jurídica, sob pena de se produzirem determinados recortes desproporcionais e que ferem princípios caros, como no caso em tela, o da isonomia, decorrente da própria dignidade da pessoa humana.

 


[1]  Ao iniciar o histórico da vitimologia, Newton Fernandes e Valter Fernandes anotam que "desde a Escola Clássica impulsionada por Beccaria e Feuerbach à Escola Eclética de Impalomeni e Alimena, passando antes pela Escola Positiva de Lombroso, Ferri e Garofalo, o direito Penal praticamente teve como meta a tríade delito-delinquente-pena. O outro componente do contexto criminal, a vítima, jamais foi levado em consideração", o que pode de certa forma justificar a falta de abordagem direta da vítima como componente do direito penal (FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia integrada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 455).

[2] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María, A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.64-74 

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