Opinião

Apontamentos sobre regras e princípios no Direito

Autores

  • Rafael Lazzarotto Simioni

    é pós-doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade de Coimbra doutor em Direito Público pela Unisinos mestre em Direito pela UCS graduado em Direito pela UCS professor da FDSM e da Univás e pesquisador na área de hermenêutica e iconografia jurídica.

  • Fafina Vilela de Souza

    é mestre em Direito pela UFPR graduada em Direito pela FDSM e professora de Introdução ao Estudo do Direito na FDSM.

1 de dezembro de 2021, 12h08

Nos tempos do positivismo jurídico não havia regras ou princípios, porque todo o Direito era apenas a lei. Uma importante transformação aconteceu com Hans Kelsen, que também não vai falar em regras e princípios, mas vai substituir o objeto do Direito, a lei, pela noção de norma jurídica. Entre outras coisas, Kelsen separou o texto legal da norma jurídica e transformou a questão das lacunas do Direito. Desde então, o problema da aplicação do Direito não é mais de lacuna no texto legal, mas de indeterminação da linguagem do Direito. Essa problemática dominará a prática jurídica desde os anos 60.

Mas, ao mesmo tempo em que essa problemática se desenvolvia no mundo continental europeu, no mundo de língua inglesa um jurista até então pouco conhecido estava propondo, no final dos anos 60, uma inovadora distinção entre regras e princípios. O objetivo dessa distinção era tanto entender como os juízes americanos decidiam os casos difíceis recorrendo, ora a argumentos de política, ora a princípios de moralidade política, quanto criticar a identificação do direito à linguagem positivista das leis e precedentes em Hart. Esse jurista foi Ronald Dworkin, que nos anos 80 se tornaria um dos mais influentes juristas com sua teoria do Direito como integridade.

No Brasil, pela influência do STF, a diferença entre regras e princípios começou, aos poucos, a ser incorporada na linguagem do Direito brasileiro. No início dos anos 2000 já começa a circular essa diferença em precedentes no Brasil, escondida atrás da novidade da ponderação de princípios e suas promessas de racionalidade e proporcionalidade. Mas a diferença entre regras e princípios, aqui, não foi aquela proposta por Dworkin, e, sim, a de Robert Alexy.

Em Alexy, princípios não são entendidos como fundamentos, mas, sim, como objetivos, como valores, como mandados de otimização, como objetivos a serem alcançados na melhor medida possível. O impacto desse novo conceito de princípio é enorme.

Entender os princípios como valores significa, entre outras coisas, entendê-los não mais como fundamentos, mas como objetivos. Isso muda muita coisa. Princípio como fundamento é uma referência linguística ao passado, às tradições, à cultura política inscrita em nossa história. Princípio como valor é uma referência linguística voltada ao futuro, aos objetivos, àquilo que queremos como ideais de vida boa. Entender os princípios como fundamentos produz um sentido mais conservador do Direito, enquanto entendê-los como objetivos, uma visão mais progressista.

O problema é que ser conservador quando se trata de garantir princípios fundamentais não parece ser algo ruim. A própria noção de cláusula pétrea é uma noção conservadora desse tipo, porque a ideia é justamente preservar, como garantias incondicionais, o conteúdo normativo dos princípios. Por outro lado, entender os princípios como objetivos apresenta, entre outros, dois problemas importantes: 1) diferentemente dos fundamentos, os objetivos podem ser negociados; e 2) diferentemente dos fundamentos, que pré-existem à decisão jurídica, objetivos podem ser constituídos e justificados na argumentação, criando norma jurídica de modo retroativo, gerando não só insegurança jurídica, mas sobretudo produzindo um grau de indeterminação e de imprevisibilidade do Direito sem precedentes na história.

Orientada a princípios como fundamentos, a decisão jurídica afirma uma tradição, uma cultura jurídica, uma identidade que se encontra inscrita em nossa história e, por isso, está acima de qualquer negociação. Orientada a princípios como objetivos, tudo passa a poder ser negociado. Um princípio pode ceder em relação a outro, relativizando-se direitos fundamentais. As clausulas pétreas "amolecem", aliás, "derretem" sob esse novo conceito de princípio como objetivos.

Interessante observar que isso não deveria ser novidade. Os precedentes que utilizam essa concepção de princípio afirmam, sem nenhum constrangimento, que os princípios não são mais absolutos. Um modo eufemístico de dizer que princípios fundamentais podem ser relativizados. E é preciso perceber que isso é um problema. Afinal, estamos falando de relativização de princípios fundamentais.

O motivo que justifica, no campo teórico, essa nova concepção de princípio como objetivo é a colisão de direitos. No tempo das lacunas, o problema era o silêncio da lei; depois de Kelsen, o problema se tornou o excesso de possibilidades de intepretação do Direito. O problema agora é a colisão de princípios, o choque entre direitos fundamentais.

Só que a colisão e a respectiva necessidade de ponderação é apenas uma visão possível do Direito. Não é a única. Se pensarmos bem, nós não ponderamos porque existem colisões, mas só existem colisões porque ponderamos. A ponderação cria a colisão, para se apresentar como solução racional para um problema por ela mesma definido.

Existem outros modos de se entender o problema da interpretação correta do Direito. E o preço que estamos pagando pelo uso do conceito de princípio como objetivo (futuro) e não como fundamento (passado) é a relativização completa dos direitos fundamentais. Em países periféricos como o Brasil, e a América Latina em geral, pode não ser o melhor caminho para o futuro do Direito.

Reserva do possível e núcleo essencial  como se existisse uma "periferia não essencial" em direitos fundamentais  são construções conceituais produzidas por um paradigma que se acostumou a entender as colisões de direitos como questões de ponderação. E quem mais sofre com isso é o povo pobre do Brasil, que é quem mais precisa dos direitos fundamentais para ter alguma dignidade.

Em um país como o nosso, com índices brutais de desigualdades inscritos em nossa história, precisamos cuidar para não transformar o Direito em "ponderação" para os pobres e "levando os direitos a sério" para os ricos, pois, na diferença entre regras e princípios de Dworkin, princípios não são objetivos negociáveis, a serem atingidos apenas na melhor medida possível, mas fundamentos inegociáveis de moralidade política da comunidade em que vivemos.

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