Opinião

30 anos da Lei Rouanet: impenhorabilidade dos valores à promoção da cultura

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1 de dezembro de 2021, 6h33

Em tempos em que a cultura é deixada à margem das políticas públicas, ganha relevância o papel da jurisprudência na interpretação e aplicação dos instrumentos jurídicos criados para fomentar a produção cultural.

Lamenta-se a frequência com que são noticiados sucessivos cortes de incentivos financeiros às instituições culturais, [1] propagadoras de conteúdo e valores tão relevantes ao desenvolvimento social, às relações humanas, ao pensamento crítico e à autorrealização individual. Daí se justifica a obrigação estatal de "proporcionar os meios de acesso à cultura", insculpida no artigo 23, V, da Constituição da República.

Entre os instrumentos jurídicos mais efetivos no propósito de incentivar a cultura, tem-se a Lei Rouanet, de 23/12/1991, que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura ("Pronac"). Sua função, em linhas gerais, é propiciar a captação de recursos para o setor cultural por meio de doações e patrocínios de pessoas físicas ou jurídicas.

Nessa linha, a Secretaria Especial da Cultura, do Ministério do Turismo, aponta a Lei Rouanet como a "[p]rincipal ferramenta de fomento à Cultura do Brasil"[2] tendo como fim específico o estímulo da produção, da distribuição e do acesso aos produtos culturais, além da proteção e da conservação do patrimônio histórico-cultural brasileiro.

As doações e patrocínios regulados pela Lei Rouanet são viabilizados mediante renúncia fiscal da União Federal, ao dispor de valores que seriam recolhidos pelo contribuinte a título de Imposto de Renda para destiná-los a projetos culturais ou ao Fundo Nacional de Cultura  FNC.

O TJ/RJ pronunciou-se sobre o tema neste ano, em acórdão até então não tratado com destaque pela doutrina e, tampouco, recebeu os merecidos holofotes pelo segmento cultural. No entanto, como se passa a expor, trata-se de importante passo no reconhecimento da Lei Rouanet como relevantíssimo veículo de incentivo à cultura.

Fundamentos do acórdão da 4ª Câmara Cível do TJ/RJ e a impenhorabilidade de recursos regulados pela Lei Rouanet
Pelo voto da desembargadora Maria Helena Pinto Machado, a 4ª Câmara Cível do TJ/RJ julgou neste ano recurso interposto por instituição cultural prejudicada por decisão de primeira instância que determinou a penhora de 10% da sua receita operacional bruta diária, a incluir recursos financeiros provenientes de renúncia fiscal da União Federal regulada pela Lei Rouanet e depositados em conta bancária específica para esse fim. [3]

Com amparo no fundamento de que "todo processo executivo deve observar o princípio insculpido na norma do artigo 805 do Código de Processo Civil/2015, segundo o qual a execução deve ser promovida da forma menos onerosa ao devedor", aquele órgão chegou a uma conclusão da máxima importância na proteção das verbas destinadas à produção cultural.

Segundo o acórdão, "[r]ecursos oriundos da Lei Rouanet são impenhoráveis, eis que possuem natureza de verba pública e não integram o patrimônio particular da entidade responsável por administrar tais valores, destinados à realização de projetos culturais", sendo certo que "a penhora de percentual de […] renda bruta abrangerá receitas indisponíveis provenientes de renúncia fiscal regulada pela Lei".

O reconhecimento da impenhorabilidade dos recursos provenientes de doações e patrocínios regulados pela Lei Rouanet no âmbito de uma execução entre particulares, em certa medida, relembra como o direito público pode impactar relações essencialmente regidas pelo direito privado. Naquele caso concreto julgado pela 4ª Câmara Cível do TJ/RJ, a despeito de se estar diante de uma relação de crédito e débito entre duas partes privadas, o acórdão sopesou os interesses em disputa e o interesse público na promoção da cultura, identificando a necessidade de aplicar ao caso princípios e normas de direito público.

Em linhas gerais, pode-se dizer que a 4ª Câmara Cível do TJ/RJ, ao interferir numa relação obrigacional privada de modo a proteger o erário e o interesse em se promover a cultura, ambos de caráter público e constitucionalmente defendidos, sob a ótica da metodologia civil-constitucional, "opõe-se à clássica summa divisio do ordenamento, cindido em direito público e direito privado"[4]

Parece correto afirmar que os recursos concedidos sob a sistemática da Lei Rouanet, em decorrência de sua origem de renúncia fiscal  que, portanto, atrai a natureza de bem público  são inalienáveis e impenhoráveis, a partir de uma leitura conjugada dos artigos 100, do CC, [5] e 833, inciso I, do CPC. [6]

O TCU também já se pronunciou sobre o tema e reconheceu que os patrocínios e doações concedidos por meio da Lei Rouanet têm natureza de "verba pública", ressaltando que "[n]ão fosse pública a natureza de tais verbas, não haveria amparo legal para obrigar os beneficiários a recolher os saldos dos projetos a um fundo gerido pelo poder público"[7]

O TCU ainda deixa claro que "[n]o âmbito [daquela] corte, é pacífico o entendimento quanto à natureza pública dos recursos oriundos da renúncia fiscal prevista nas leis de incentivo à cultura, em especial a Lei Rouanet".

A IN 02/2019 do Ministério da Cidadania [8] também dispõe que "[a]s doações e os patrocínios captados pelos proponentes em razão do mecanismo de incentivo, decorrentes de renúncia fiscal tornam-se recursos públicos, e os projetos culturais estão sujeitos ao acompanhamento e à avaliação de resultados".

Além disso, por lei, a destinação de tais verbas é estritamente vinculada aos planos de trabalho aprovados pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo (função antes atribuída ao Ministério da Cultura), nos termos do artigo 19 da Lei Rouanet. [9] Ou seja, permitir a penhora de verbas oriundas da Lei Rouanet  dando-lhes fim naturalmente desalinhado com o plano de trabalho e, portanto, com a lei  significaria, em última análise, permitir que um indivíduo (o exequente) sobreponha seu interesse não só ao interesse público, mas também à vontade do legislador.

Observa-se, ainda, que qualquer desvio na destinação dos recursos em desacordo com os respectivos planos de trabalho pode ensejar a reprovação das contas dos projetos, com drásticas consequências às instituições que recebem tais recursos, como sanções pecuniárias e até mesmo a inabilitação para o recebimento de novas doações e patrocínios por intermédio da Lei Rouanet, nos termos do artigo 58 da IN 02/2019 do Ministério da Cidadania [10]. Relembre-se que parte relevante das instituições culturais no Brasil dependem quase que exclusivamente de recursos da Lei Rouanet, de modo que sua inabilitação pode inviabilizar por completo suas atividades.

De acordo com o artigo 20 da Lei Rouanet, e seus parágrafos primeiro e terceiro, [11] os projetos aprovados são fiscalizados pelo Secretário da Cultura da Presidência da República e pelo TCU, tendo os beneficiários dos recursos o dever de prestar contas de sua aplicação, nos termos do artigo 29 da Lei Rouanet. [12]

Assim, a penhora da verba para o pagamento de dívidas estranhas ao projeto aprovado pelo Poder Público traria ao executado ônus extremamente gravoso, o que parece incompatível com o supracitado artigo 805 do CPC.  

Há, portanto, inúmeras razões que reforçam o entendimento da 4ª Câmara Cível do TJ/RJ de que, naquele caso concreto, foi ilegal a penhora que recai sobre verbas recebidas oriundas de renúncia fiscal sob os ditames da Lei Rouanet.

Conclusão

Como dito, não há dúvidas de que as instituições culturais promovem valores essenciais ao desenvolvimento social, às relações humanas, ao pensamento crítico e à autorrealização do indivíduo. De tão relevante, o pleno acesso à cultura é defendido na Declaração Universal dos Direitos Humanos [13] e na Constituição Federal. [14]

Nesse contexto, o acórdão da 4ª Câmara Cível do TJ/RJ, ao confirmar a impenhorabilidade dos recursos públicos provenientes da Lei Rouanet, apresenta-se como importante avanço na efetiva proteção de direitos assegurados constitucionalmente, que deve nortear a atividade exercida pelo Poder Judiciário.

Dada a sua relevância e pertinência temática, o acórdão também inspira otimismo quanto à sua possível aplicação a recursos destinados ao fomento à cultura oriundos de renúncia fiscal regulados por leis estaduais e municipais, como é o caso da Lei nº 7.035/2015, do Estado do Rio de Janeiro, e da Lei nº 5.553/2013, do Município do Rio de Janeiro.


[1] Por exemplo: 1) "Em ofensiva contra Ancine, Bolsonaro corta 43% de fundo do audiovisual". Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/09/em-ofensiva-contra-ancine-bolsonaro-corta-43-de-fundo-do-audiovisual.shtml. Acesso em 10.11.2021; 2) “Corte em verbas estaduais para cultura afeta grupos artísticos de Campinas e Valinhos” Disponível em: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2019/04/05/corte-em-verbas-estaduais-para-cultura-afeta-grupos-artisticos-de-campinas-e-valinhos.ghtml. Acesso em 10.11.2021; 3) "Com corte na Ancine, audiovisual terá a menor verba em sete anos" Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/com-corte-na-ancine-audiovisual-tera-a-menor-verba-em-sete-anos/. Acesso em 10.11.2021; 4) "Para OSs, corte de verbas na cultura põe em risco principais projetos paulistas" Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/blogs/joao-luiz-sampaio/para-oss-corte-de-verbas-na-cultura-poe-em-risco-principais-projetos-paulistas/. Acesso em 10.11.2021; e 5) "Artistas se mobilizam contra cortes na cultura". Disponível em: https://istoe.com.br/artistas-se-mobilizam-contra-cortes-na-cultura/. Acesso em 10.11.2021.

[2] Disponível em: http://leideincentivoacultura.cultura.gov.br/. Acesso em 9.11.2021.

[3] Agravo de instrumento nº 0087282-76.2020.8.19.0000.

[4] SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson Konder. Uma agenda para o direito civil-constitucional. Editorial à Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/42. Acesso em 10.11.2021.

[5] "Artigo 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar".

[6] "Artigo 833. São impenhoráveis: I  os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução".

[7] TC-003.894/2006-3, acórdão nº 1285, TCU Plenário, disponível em https://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A8182A14D7BBDF2014D8B6A13F2592F, p. 309-312. Acesso em 23.11.2021.

[8] Cujo objetivo é estabelecer "procedimentos para apresentação, recebimento, análise, homologação, execução, acompanhamento, prestação de contas e avaliação de resultados de projetos culturais financiados por meio do mecanismo de Incentivo Fiscal do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac)".

[9] "Artigo 19. Os projetos culturais previstos nesta Lei serão apresentados ao Ministério da Cultura, ou a quem este delegar atribuição, acompanhados do orçamento analítico, para aprovação de seu enquadramento nos objetivos do PRONAC".

[10] "Artigo 58. Durante qualquer fase do projeto, o Ministério da Cidadania poderá:
I – declarar a inadimplência do proponente, caracterizada pela sua omissão no atendimento às diligências, o que ensejará:
a) o bloqueio da conta do projeto;
b) a impossibilidade de prorrogação dos prazos de captação e execução do projeto; e
c) a impossibilidade de apresentação de novas propostas e suspensão de publicação da Portaria de Homologação para Captação de Recursos para novos projetos.
II – declarar a inabilitação cautelar do proponente, por meio de decisão da autoridade máxima da Secretaria competente, caso sejam detectados indícios de irregularidades no projeto, com as seguintes consequências:
a) suspensão dos projetos ativos do proponente com o bloqueio de suas contas, impedindo a captação de novos patrocínios ou doações, bem como movimentação de recursos;
b) impossibilidade de prorrogação dos prazos de captação e execução dos projetos;
c) impossibilidade de apresentação de novas propostas;
d) cancelamento de propostas e arquivamento de projetos sem captação; e
e) impossibilidade de recebimento de recursos decorrentes de outros mecanismos do Pronac previstos no artigo 2º da Lei nº 8.313, de 1991.
III – aplicar a multa de que trata o artigo 38 da Lei nº 8.313, de 1991, sempre que identificada conduta dolosa do incentivador ou do proponente.
§1º Aplicada a inabilitação cautelar, o proponente será imediatamente notificado a apresentar esclarecimentos ou sanar a irregularidade no prazo de 20 dias.
§2º Decorrido o prazo do §1º sem o devido atendimento da notificação, o Ministério da Cidadania adotará as demais providências necessárias para a apuração de responsabilidades e o ressarcimento dos recursos ao erário.
§3º As sanções deste artigo perdurarão enquanto não for regularizada a situação que lhes deram origem, e o projeto que permanecer suspenso por inadimplência ou inabilitação cautelar do proponente até o final do prazo de execução será encaminhado para a avaliação de resultados e Laudo Final de Avaliação, estando sujeito a arquivamento, aprovação com ressalvas ou reprovação, conforme a situação."

[11] "Artigo 20. Os projetos aprovados na forma do artigo anterior serão, durante sua execução, acompanhados e avaliados pela SEC/PR ou por quem receber a delegação destas atribuições.
§1° A SEC/PR, após o término da execução dos projetos previstos neste artigo, deverá, no prazo de seis meses, fazer uma avaliação final da aplicação correta dos recursos recebidos, podendo inabilitar seus responsáveis pelo prazo de até três anos
[…] §3° O Tribunal de Contas da União incluirá em seu parecer prévio sobre as contas do Presidente da República análise relativa a avaliação de que trata este artigo".

[12] "Artigo 29. Os recursos provenientes de doações ou patrocínios deverão ser depositados e movimentados, em conta bancária específica, em nome do beneficiário, e a respectiva prestação de contas deverá ser feita nos termos do regulamento da presente Lei".

[13] Nesse sentido, o artigo 27 da Declaração: "[t]oda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam. Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria".

[14] Veja-se o artigo 215 da CRFB: "[o] Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais".

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