Opinião

O STJ e a decisão que entendeu que investimentos são impenhoráveis

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31 de agosto de 2021, 21h02

Ao julgar o RESp 1.812.780/SC, o STJ manteve o entendimento do TJ-SC no sentido de que os limites da impenhorabilidade prevista no inciso X do artigo 833 do CPC devem ser estendidos também aos valores depositados em conta corrente ou em fundo de investimentos. O recurso foi julgado monocraticamente pelo ministro Benedito Gonçalves, que é presidente da primeira turma do Superior Tribunal de Justiça.

No caso concreto, ao que tudo indica [1], em sede de cumprimento de sentença de honorários advocatícios sucumbenciais, houve a penhora de ativos financeiros do executado via Bacenjud — sistema que foi recentemente substituído pelo Sisbajud.

Contudo, foi determinada a desconstituição da penhora com base na impenhorabilidade prevista no inciso X do artigo 833 do CPC, entendimento que foi mantido pelo TJ-SC. 

O fundamento do ministro Benedito Gonçalves consistiu basicamente na interpretação de que o STJ entende ser possível que o devedor poupe valores até a monta de 40 salários mínimos não apenas por caderneta de poupança, mas também em conta corrente ou em fundos de investimento, ou guardados em papel moeda (EREsp 1330567/RS, relator ministro Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, julgado em 10/12/2014, DJe 19/12/2014).

Na verdade, portanto, o STJ realizou uma interpretação extensiva a fim de favorecer o devedor. Isso porque o artigo 833, X, do CPC é muito claro e expresso no sentido de que somente são impenhoráveis os valores depositados em caderneta de poupança.

Permitiu-se, então, que, independentemente da natureza da verba, se poupança ou investimento, deve ser considerada impenhorável qualquer quantia depositada até o valor de 40 salários mínimos.

Ou seja, segundo o STJ, e à mercê do que dispõe o CPC, verbas que notoriamente possuem natureza de investimento, tais como CDB, RDB ou aplicação em fundos, são também protegidas pela regra de impenhorabilidade.

Como se já não bastasse estipular uma proteção não prevista em lei, verifica-se da leitura do julgado que o STJ impôs ao credor o ônus de provar que a quantia depositada é decorrente de "conduta improba", para que, assim, os valores depositados sejam penhorados.

Diante disso, extrai-se da decisão que: 1) a penhora de valores via Sisbajud somente é possível caso seja localizada quantia superior a quarenta salários mínimos; e 2) para que sejam penhorados valores inferiores ao referido limite, o credor deve provar a má-fé do devedor, ou, como disse o STJ, que a quantia depositada é decorrente de uma "conduta improba".

Conclui-se, assim, que o STJ beneficiou o devedor, impondo mais um ônus ao credor para o recebimento de seu crédito, ou melhor dizendo, para a satisfação de seu direito.

É necessário respeitar as decisões do STJ, contudo, o referido entendimento tem de ser veementemente repugnado e discutido juridicamente, pois: 1) fará com que o Sisbajud, uma das melhores e mais eficazes ferramentas executivas, se torne inútil à prestação jurisdicional; e 2) afronta a garantia fundamental de satisfação do direito, que tanto foi consagrada e almejada pelo CPC/2015, caracterizando um grande retrocesso em termos processuais.

Inefetividade do Sisbajud
Com o referido entendimento, a penhora Sisbajud perde muito da sua efetividade, na medida em que qualquer valor até 40 salários mínimos será questionado pelo devedor, sob a alegação de impenhorabilidade.

Além disso, se não pode haver a penhora de investimento independentemente do valor localizado, de nada adiantaram as novas funcionalidades no Sisbajud recentemente implantadas [2], tais como a possibilidade de penhora de títulos de renda fixa e de ações.

Tem-se, assim, que o importantíssimo Sisbajud, que somente em 2019 bloqueou R$ 55,9 bilhões [3], perderá a sua força, beneficiando aqueles que descumprem as suas obrigações, às vezes até mesmo dolosamente, pois ciente da inutilidade da prestação jurisdicional executiva.

Afronta à garantia fundamental de satisfação do direito e retrocesso processual
Se o direito não é satisfeito, a tutela jurisdicional também não é alcançada, em afronta ao direito fundamental de acesso à Justiça (princípio da inafastabilidade da jurisdição, esculpido no artigo 5º, XXXV, da CF), já que de nada adianta o livre acesso à jurisdição, se não há a satisfação do direito material posto em juízo.

A existência de um processo efetivo pressupõe um meio apto à satisfação do direito da parte, ou seja, a existência de um meio executivo eficaz, sendo inviável, neste sentido, que a jurisdição se limite a somente "dizer o direito".

O CPC/2015 já em sua exposição de motivos também demonstrava uma preocupação com a satisfação do direito, já que "as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo" [4].

A preocupação dos juristas e dos legisladores para com a satisfação do direito tem razões não puramente doutrinárias, mas, sim, baseada em números. Isso porque, conforme relatório "Justiça em Números em 2020" do CNJ, 50% do acervo de processos do Judiciário decorrem de demanda executivas frustradas.

Em razão disso, tendo como base a necessidade de uma efetiva prestação jurisdicional, é que a satisfação do direito se tornou uma norma fundamental de processo, conforme artigos 4º e 6º, do Capítulo I, "Das normas fundamentais do processo civil", do CPC/2015.

Não há dúvidas, portanto, de que o entendimento do STJ não se coaduna com os primórdios adotados pelo CPC/2015, ignorando, ainda, os números do CNJ que demonstram que a execução é o grande "gargalo" da atividade jurisdicional, desprestigiando a garantia de satisfação do direito do credor tanto pleiteada e cobiçada pelos juristas e pelo Poder Legislativo, sendo um verdadeiro retrocesso em termos processuais.

Necessidade de se retomar a discussão sobre a crise do processo de execução
O professor Leonardo Greco, titular de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sem sombra de dúvidas, é um dos maiores expoentes doutrinários quando o tema é processo de execução.

Neste sentido, verificando a falta de efetividade da tutela executiva, o professor ousou em afirmar, já em 1999, quando escrevera o seu primeiro volume do livro "O Processo de Execução", que a execução brasileira se encontrava em crise.

A necessidade de uma remodelação do processo de execução brasileiro em razão da falta de efetividade da tutela executiva, desencadeou o que Leonardo Greco denominou como "crise da execução".

O denso estudo e as críticas ao processo de execução, também foram bem sintetizados pelo artigo publicado pela Revista Eletrônica de Direito Processual (REDP), de autoria do próprio Leonardo Greco [5].

Destaca-se que o artigo decorreu de palestra proferida em 7/10/2013 no curso de aperfeiçoamento de juízes da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

No referido artigo, além das diversas críticas ao processo de execução brasileiro, especialmente a necessidade de uma dura reforma procedimental a fim de dar ao jurisdicionados meios mais eficazes para a satisfação de seu direito, foram novamente apontadas algumas causas para a crise do processo de execução. Causas essas que, mesmo tendo sido indicadas pelo autor há mais de 20 anos, se fazem, mais do que nunca, presentes no processo civil brasileiro.

No entendimento do professor, o primeiro fato para crise é o excesso de processos causados pela democratização do acesso ao crédito. Isso porque o sistema financeiro se expandiu de um modo desordenado, dando crédito a quem não pode pagar, mesmo tendo conhecimento de que os financiados não quitarão o pagamento.

O segundo fator é a inadequação dos procedimentos executórios. Conforme Leonardo Greco, o juiz é um prisioneiro dos ritos ordinários da execução, fazendo com que o procedimento seja impulsionado sem qualquer apetite.

Outro fator, é a ineficácia das coações processuais, veja-se: "O devedor não colabora com a execução e os meios de pressão que a lei estabelece não são suficientes para intimidá-lo".

Foi apontada, ainda, como um dos mais graves fatores para a crise do processo de execução a mudança do ambiente econômico e sociológico. O professor destaca que o ambiente negocial mudou, de modo que ser devedor não é mais algo reprovável, ao contrário, o vergonhoso é ser credor, o que faz com que as ações de cobrança e as execuções se multipliquem, haja vista que atualmentesão consideradas um fenômeno natural e corriqueiro.

 O último fator apontado pelo autor foi a progressiva volatilização dos bens, o que dificulta a localização de bens pelo credor, senão vejamos: "Mudou inteiramente o perfil patrimonial das pessoas, antes concentrado em bens de raiz, e agora tendencialmente dirigido a investimentos em títulos e valores facilmente negociáveis, o que dificulta a sua localização pelo credor".

Conclui-se, assim, que a crise da execução se faz mais que presente e, pior, que a decisão do STJ em análise corrobora para o aprofundamento da crise, sendo necessário, assim, uma reflexão interpretativa acerca da tutela executiva brasileira.

Primeiro porque se a penhora de dinheiro somente incidir em valores maiores que 40 salários mínimos, o juiz não terá qualquer anseio em impulsionar o feito executivo, pois, na maioria das vezes, partindo da premissa adotada pelo STJ, as quantias penhoradas terão de ser desbloqueadas.

A decisão do STJ também torna os meios executivos ainda menos coercitivos. A penhora em dinheiro, mesmo se tratando de uma medida executiva direta, acaba por coagir o devedor a cumprir com a sua obrigação, servindo como uma espécie de técnica de execução indireta, especialmente porque, quando da constrição, ainda que no importe de 40 salários mínimos, o devedor acaba procurando o credor para um acordo.

Além disso, o entendimento da corte incentiva sobremaneira o inadimplemento das obrigações por parte do devedor. Isso porque, sem sombra de dúvidas, o STJ deu ao devedor mais uma garantia.

Como se já não bastasse ser vedado, em razão do mínimo existencial, a penhora dos bens descritos no artigo 833, do CPC, agora também não se pode penhorar as quantias que decorrem de investimentos.

Seguindo a linhada adotada pelo STJ, os investimentos também são impenhoráveis e necessários para o mínimo existencial. Ou seja, em uma interpretação do entendimento do STJ, para a "dignidade do devedor", devem ser considerados impenhoráveis os valores depositados até quarenta salários mínimos a título de investimentos.

Assim, para o devedor malicioso, mais fácil será não realizar o pagamento e deixar o credor se virar com o preguiçoso, lento e infrutífero processo de execução, até que haja a prescrição intercorrente (artigo 921, §4º, do CPC), do que honrar com o pacto celebrado.

Não há dúvidas, portanto, que o entendimento do STJ, caso prevaleça, incentivará o endividamento, o não cumprimento de obrigações, trazendo, de modo ainda mais veemente, o sentimento de que não pagar e não honrar com os seus compromissos é uma situação fática normal e aceitável.

Conclui-se, portanto, que raciocínios tão protetivos aos interesses dos devedores, tal como o que fora adotado pelo STJ, não podem ser mantidos, sob pena de a crise do processo de execução chegar a um nível praticamente imutável.

Sabe-se, todavia, que da análise do problema, no caso, a crise do processo de execução, que se extraem soluções satisfatórias para a comunidade jurídica. Assim, estando a execução brasileira perto de um verdadeiro colapso, é necessário, para que haja a efetiva tutela executiva tanto guerreada pelo CPC/2015, que voltemos a discutir a crise do processo executivo, a fim de que, assim, sejam extraídas interpretações condizentes com o bem da vida pleiteado pelos jurisdicionados, qual seja satisfação do direito postulado em juízo.

Conclusão
Como se demonstrou, o entendimento do STJ não pode prosperar porquanto: 1) fará com que o Sisbajud, uma das melhores e mais eficazes ferramentas executivas, se torne inútil à prestação jurisdicional; e 2) afronta sobremaneira a garantia fundamental de satisfação do direito, que tanto foi consagrada e almejada pelo CPC/2015, sendo um grande retrocesso em termos processuais.

Ainda, com o devido respeito a entendimentos divergentes, conclui-se que o Judiciário, de um modo exacerbado, protege os interesses dos devedores, se esquecendo, todavia, que do outro lado há um credor, que, tal como o devedor, possui dignidade e direitos que devem ser igualmente tutelados.

A decisão do STJ, aliás, mostra exatamente o exacerbado protecionismo do Judiciário para com os devedores, haja vista que a corte realizou uma interpretação fora da lei para unicamente beneficiar o executado, isso porque o artigo 833, X, do CPC, é muito claro e expresso no sentido de que somente são impenhoráveis os valores depositados em caderneta de poupança.

Portanto, a decisão do STJ deve ser juridicamente repugnada e discutida pelos operadores do direito, sobretudo porque corrobora com a crise do processo de execução.

Não podem ser aceitáveis interpretações jurídicas somente condizentes com os interesses dos devedores, sendo necessária uma reforma interpretativa da tutela executiva, sob pena de o processo de execução se tornar uma "letra morta" no ordenamento jurídico pátrio.

Nesse sentido, a execução necessita, inegavelmente, de uma reforma interpretativa que leve em consideração a satisfação do direito do credor e menos o interesse dos devedores, sendo imprescindível, para tanto, que volte a ser discutida, para o bem de todos os jurisdicionados, a crise que vigora no processo de execução.

 


[1] Destaca-se que a demanda originária é sigilosa, motivo pelo qual não foi possível verificar com certeza qual o ativo que foi efetivamente bloqueado, sendo constatado somente que trata-se de um investimento.

[4] BRASIL, Senado Federal. Anteprojeto do novo Código de processo civil. 2010. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496296>. Acesso em: 05 jun. 2021.

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