Opinião

Reflexões do 'caso Boi Gordo' que devem ser observadas pelo equity crowdfunding

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31 de agosto de 2021, 17h06

Os investidores mais antigos, principalmente aqueles que já conheciam a bolsa de valores e outras modalidades privadas de investimento durante os anos 90, devem recordar do famoso escândalo financeiro decorrente do "caso Boi Gordo". Nessa modalidade de investimento, as empresas ofertavam contratos de investimento coletivo (CICs) direcionados aos parceiros investidores que tinham como objetivo engordar o boi. Ao final do período do engorda, a empresa entregava aos investidores o rendimento, retendo algumas taxas de administração pela compra e gestão do projeto [1].

Esses investimentos, à época, não estavam vinculados ao radar da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), visto que a emissão pública de CIC por companhias fechadas ou sociedades limitadas não era considerado um valor mobiliário. Infelizmente, o tempo revelou que essa operação econômica era uma pirâmide financeira e que não existiam investimentos. O resultado foi que muitos investidores saíram prejudicados.

Contudo, para o ambiente jurídico, esse escândalo ajudou no aprimoramento regulatório, visto que fomentou uma importante evolução, MedProv 1.637/1998  convertida na Lei 10.198/ 2001, que culminou no aumento do número de operações financeiras que ingressam dentro do conceito de operações econômicas de emissão de valores mobiliários. A partir desse momento, a legislação cria um conceito de valores mobiliário, fica mais atualizada e flexível, sendo que o foco das emissões passa a estar na operação econômica e não no título emitido [2].

O ponto principal dessa evolução é que mais operações econômicas ingressam sob o guarda-chuva das CVM e das regras regulatórios e autorregulatoria do mercado de capitais, as quais são onerosas, mas visam a proteger investidores.

Com o passar do tempo, compreendeu-se que essas regras expurgaram empresas de pequeno e médio porte desse mecanismo de capitalização e, em 2017, a CVM regula uma modalidade alternativa de capitalização de empresas, a qual é destinada a empresas não maduras e que sem condições de ingressar no mercado tradicional de capitais.

Mas qual a relação que essa nova modalidade tem com as operações do Boi Gordo, visto que as plataformas de ewquity crowdfunding são reguladas pela autarquia?

O primeiro ponto é a inexistência de base econômica e financeira para muitos dos valuation que as empresas que estão emitindo valores mobiliários estão apresentando ao mercado. Isto é, em casos já analisados, constata-se que empresas com faturamento mensal de R$ 18 mil estão projetando um valor de empresa de R$ 16 milhões e novas projeções de faturamento de dez vezes o valor atual em menos de quatro meses [3].

Uma segunda reflexão é referente a taxa de retorno, muitas empresas estão ofertando valores não condizentes com a realidade, informando que os retornos serão superiores a 30%. Ainda, deixam em linhas não claras as informações sobre as taxas de mortalidade. Além disso, como essas empresas não são auditadas, a projeção financeira pode estar um pouco alargada.

Um terceiro, a maioria das empresas não tem contratos/estatutos sociais devidamente organizados para casos de conflitos societários e isso pode ser um risco latente aos envolvidos [4].

Longe de dizer que a nova regulamentação não deve ter continuidade, mas o objetivo é trazer alguns alertas e constatações que precisam ser pensadas pela autarquia e agentes intermediadores, pois não há dúvidas que a modalidade ajuda e é mais ágil que o mercado tradicional. Contudo, as atuais regras regulatórias ainda não observaram os problemas do caso do Boi Gordo e pode estar ingressando nos mesmos erros ao não observar o movimento dos investidores e a inexistência de lastro de muitas operações econômicas envolvidas nessa nova modalidade.

Sabe-se que a ideia da regulação é de descentralizar as obrigações da CVM, ato que ajuda a reduzir os custos operacionais da capitalização. No entanto, o atual mecanismo não requer confirmação de lastro econômico e permite uma apresentação exagerada de diversas informações.

Assim, mesmo que a regulação 588/2017 tenha trazido confiança ao mercado, o que se revela com a simples análise do valor financeiro das captações, as quais foram de R$ 48 milhões em 2017 para R$ 78 milhões em 2019 [5], ainda é necessário observar alguns erros do passado para organizar a rota do futuro. Ato contrário, a modalidade pode se tornar apenas uma página virada na história do mercado de capitais brasileiro e não alcançar o verdadeiro objetivo, que é ser uma nova fonte de capitalização de empresas.

 


[1] Em relação a essa modalidade de investimento, Harldo Dularc Verçosa discorre que os contratos de boi gordo eram uma nítida operação de sociedade, pois não se podia reconhecer de quem era cada animal. Existia, assim, o funcionamento de uma empresa, que recebia dinheiro dos investidores e dividia os lucros. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. A CVM e os contratos de investimento coletivo (‘boi gordo’ e outros). Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. vol. 108. p. 91-100. São Paulo: Malheiros, out.-dez. 1997.

[2] LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. O conceito de "security" no direito norte-americano e o conceito análogo no direito brasileiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro (RDM). ano XIII. n. 14.

[3] Uma observação relevante nesse caso é que a empresa não era uma startup que pode ter um ganho exponencial de um mês para o outro e, mesmo que sendo, a projeção financeira estaria muito otimista.

[4] Sobre essa questão ver FINKELSTEIN, Maria Eugênia Reis. Crowdfunding de participação e financeiro. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 79. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2018. p. 37-52.

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