Paradoxo da Corte

Dois recentes precedentes do STJ sobre processo arbitral

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

31 de agosto de 2021, 8h01

A cada dia que passa os nossos tribunais, em particular, o Superior Tribunal de Justiça, são instados a se pronunciarem sobre questões emergentes do processo arbitral. E isso bem demonstra a crescente relevância da arbitragem, no âmbito do sistema de tutela jurisdicional brasileiro, como importante mecanismo de solução dos conflitos.

O Superior Tribunal de Justiça, recentemente, em duas diferentes situações teve oportunidade de proferir interessantes decisões, que bem evidenciam a correta aplicação das regras de direito processual no cenário da arbitragem.

No primeiro caso, concernente a julgamento de recurso especial, que tramitou sob o regime da publicidade restrita, a 3ª Turma, com voto condutor do ministro Marco Aurélio Bellizze, partindo da premissa de que, tratando-se de direitos disponíveis, o monopólio da produção da prova é das partes, reconheceu que igualmente no processo arbitral prevalece o princípio do ônus subjetivo da prova, vale dizer, o litigante que afirma tem o onus probandi.

Uma sociedade de exploração e produção de petróleo ajuizou demanda em face de empresa de perfurações com o objetivo de ver declarada a nulidade da sentença arbitral. Em primeiro grau, o pleito de nulidade foi julgado improcedente. Todavia, em grau recursal, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reconheceu o cerceamento de defesa e anulou a sentença arbitral, determinando que fosse produzida a prova requerida pela empresa demandante.

Consoante a argumentação expendida pela parte recorrente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao determinar a prova que deveria ser produzida para o convencimento do tribunal arbitral, acabou examinando o objeto do processo arbitral, bem como interferindo no livre convencimento dos árbitros, o que é vedado pela lei de arbitragem (artigo 32, a contrario sensu).

Abstração feita do fundamento do acórdão, no sentido de que o processo arbitral admite certa flexibilidade quanto à produção da prova técnica, o certo é que se uma parte afirmar que se encontra satisfeita com a prova produzida, não lhe é possível, mais tarde, arguir cerceamento de defesa.

Observa-se que, na situação concreta, a demandante desistiu expressamente de produzir prova pericial. Assim, a aludida turma julgadora proveu o recurso especial para julgar improcedente o pedido de nulidade da sentença arbitral, lastreando-se em coerente fundamento:

"A hipótese retratada no procedimento arbitral em exame não comporta a aplicação do entendimento jurisprudencial desta corte de Justiça segundo o qual caracteriza cerceamento de defesa o julgamento que aplica ao sucumbente regra de ônus probatório, no caso de haver anterior indeferimento de pedido de produção de prova destinada a comprovar o fato alegado, no caso do autor, ou o fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, no caso do réu."

Em consonância com os termos do voto vencedor, não se exclui a possibilidade de as partes ou os árbitros, mesmo após a realização da prova por testemunha técnica (expert witness), entenderem conveniente e necessária a produção de prova pericial. Não obstante, no processo arbitral em que proferida a sentença, a prova pericial inicialmente requerida, cuja necessidade haveria de ser avaliada após a oitiva das testemunhas técnicas, tornou-se inútil, segundo os interesses da própria requerente — a empresa de exploração e produção de petróleo —, que declarou, em audiência, ser suficiente a prova produzida.

Diante dessa realidade, a 3ª Turma, ao prover o recurso especial, alinhada com a sentença de primeiro grau, reafirmou a improcedência do pedido deduzido na aludida ação declaratória de nulidade.

A outra situação enfrentada, já agora, pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial n. 1.481.644/SP, da relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, enseja, à primeira vista, certa perplexidade.

No entanto, o exame mais detido do caso concreto revela que efetivamente o acórdão, proferido em inusitada situação, não merece qualquer censura.

Com efeito, tratava-se de relação ex locato, em cujo contrato fora inserida cláusula compromissória de arbitragem.

Na controvérsia analisada pelo Superior Tribunal de Justiça, um shopping center ajuizou ação de despejo por falta de pagamento cumulada com pedido condenatório contra a empresa locatária, que já abandonara o imóvel.

O Tribunal de Justiça de São Paulo prestigiou a sentença que declarou o contrato de locação rescindido. A corte estadual afastou a jurisdição arbitral sob o fundamento de que, por estar resolvido o contrato de pleno direito, em razão do abandono voluntário do imóvel, teria sido superada a cognição arbitral e a subsequente decisão de mérito.

A despeito de reconhecer a eficácia da cláusula arbitral, o ministro relator, ao julgar o referido recurso especial, asseverou que seria realmente desnecessária a submissão da questão ao tribunal arbitral, uma vez que os árbitros não detêm o poder coercitivo para a prática de atos executivos. E, desse modo, complementou:

"Especificamente em relação ao contrato de locação e sua execução, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que, no âmbito do processo executivo, a convenção arbitral não exclui a apreciação do magistrado togado, já que os árbitros, como dito, não são investidos do poder de império estatal para a prática de atos executivos, não tendo poder coercitivo direto…

A ação de despejo tem o objetivo de rescindir a locação, com a consequente devolução do imóvel ao locador ou proprietário, sendo enquadrada como ação executiva lato sensu, à semelhança das possessórias…

Em verdade, diante da sua peculiaridade procedimental e sua natureza executiva ínsita, com provimento em que se defere a restituição do imóvel, o desalojamento do ocupante e a imissão na posse do locador, não parece adequada a jurisdição arbitral para decidir a ação de despejo."

Assim, o relator negou provimento ao recurso especial – por fundamento parcialmente diverso do adotado pelo acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo – e reconheceu a competência exclusiva do juízo togado para apreciar a ação de despejo, dada a natureza executória da pretensão. O acórdão ainda invoca precedente que sufragou esse mesmo entendimento, da mesma 4ª Turma, no julgamento do Recurso Especial n. 1.678.667/RJ, sob a relatoria do ministro Raul Araújo, que igualmente reputa inócua a cláusula arbitral em situação assemelhada, nos seguintes termos:

"É plausível o ajuizamento de ação possessória diretamente perante o Poder Judiciário, com o objetivo de obter prontamente a determinação de reintegração de posse de imóveis esbulhados, pois o árbitro não possui poder coercitivo, sendo-lhe vedada a prática de atos executivos."

Ressalto apenas, para concluir, que tais situações devem ser examinadas com redobrada atenção, uma vez que, havendo necessidade de atividade cognitiva plena, é certo que não se pode suprimir a vontade das partes que livremente convencionaram submeter eventual litígio à jurisdição arbitral. Somente em casos excepcionais, nos quais já não há espaço para atividade de conhecimento do tribunal arbitral é que se pode passar direto para a atuação estatal de cunho executivo.

Autores

  • é sócio do escritório Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

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