Opinião

As Forças Armadas não detêm competência para intervir nos poderes

Autor

  • Carlos Eduardo Ferreira dos Santos

    é mestrando em Direito Constitucional pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) mestre em Política Criminal pela Universidad de Salamanca (Espanha) integra o grupo “Estado Instituciones y Desarrollo” da Asociación Latinoamericana de Ciencia Política e o comitê de pesquisa “Systèmes judiciaires compares” da Association Internationale de Science Politique.

31 de agosto de 2021, 6h33

Conforme previsto no artigo 142 da Constituição Federal de 1988, as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, "destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

Desse modo, nos termos da Carta Magna, as Forças Armadas exercem precipuamente três finalidades no Estado democrático de Direito: 1) defesa da pátria; 2) garantia dos poderes constitucionais; 3) garantia da lei e da ordem.

A defesa da pátria (primeira hipótese) consiste na proteção do país contra agressão sofrida por Estado ou organização estrangeira, ou seja, é a prática de atos defensivos que tem por escopo conservar a intangibilidade da nação brasileira. Consoante artigo de lavra do coronel do Exército Fernando Carlos Santos da Silva, "essa missão constitucional está orientada para a proteção do território, da segurança nacional e da soberania do Estado, empregando como estratégias básicas os princípios da dissuasão e da presença" [1].

Por sua vez, a garantia dos poderes constitucionais (segunda hipótese) traduz-se no dever de as Forças Armadas salvaguardar os três poderes da República contra ameaças externas, bem como assegurar a existência dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no âmbito interno, pois todos representam a soberania estatal (artigo 2º, CF/1988). Sem embargo, não cabe às Forças Armadas intervir em quaisquer dos poderes, visto que a Constituição Federal não conferiu tal prerrogativa. Ao contrário, a harmonia e a independência dos poderes é traçada ao longo do texto constitucional por meio das técnicas de freios e contrapesos (cheks and balances), de modo que competem ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário controlarem a si mesmos, isto é, cabe-lhes solucionar eventuais dissonâncias, sendo vedada intromissão de qualquer outro ente estatal ou particular.

Dessa forma, não é cabível suposta intervenção das Forças Armadas nos poderes da República, porquanto tal medida não é prevista constitucionalmente. Primeiro porque a intervenção federal ocorre por meio da interferência da União na esfera de competência nos estados-membros/DF ou da intromissão dos estados-membros nos seus municípios (artigos 34 e 35, CF de 1988). Segundo, nem a Marinha, o Exército ou a Aeronáutica foram autorizados  pela Constituição de 1988 , a interferir na autonomia dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, de modo que falece competência para tanto. Nem mesmo no "estado de defesa" ou no "estado de sítio" é contemplada tal modalidade interventiva (artigos 136 a 139, CF/1988). Assim, as Forças Armadas promovem a "garantia dos poderes constitucionais" quando respeitam as respectivas instituições, mantendo-as incólumes, e não quando atua em detrimento delas próprias, afligindo-as.

A última hipótese finalística das Forças Armadas é promover a garantia da lei e da ordem, que é regulada, entre outros, pela Lei Complementar nº 97 de 9 de junho de 1999, pelo Decreto nº 3.897 de 24 de agosto de 2001 e pela Portaria Normativa nº 3.461 do Ministério da Defesa, de 19 de dezembro de 2013. Conceitualmente, a "garantia da lei e da ordem" pode ser definida como "uma operação militar conduzida pelas Forças Armadas, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos para isso previstos no artigo 144 da Constituição ou em outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem. (…) Consideram-se esgotados estes instrumentos quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular da missão constitucional" [2].

Como se vê, a atuação das Forças Armadas na "garantia da lei e da ordem" destina-se a: 1) preservar a ordem pública (resolver fato crítico que ponha em risco a normalidade de estruturação coletiva, restaurando a coexistência pacífica da organização social); 2) preservar a incolumidade das pessoas (garantir a segurança dos indivíduos, notadamente a intangibilidade do direito à vida e à integridade física); 3) preservar a incolumidade do patrimônio (salvaguardar a propriedade privada dos indivíduos contra graves ataques alheios, a exemplo de saques, pilhagens etc.).

Essa modalidade também assume função protetiva, haja vista que a providência pode ser solicitada por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados (artigo 15, §1º, LC nº 97/1999). Por conseguinte, essa medida é feita em benefícios dos próprios poderes da República, nunca em vulneração ou contra os mesmos.

Diante disso, as Forças Armadas não constituem um "superpoder" ou um "poder moderador", tampouco cabe-lhes fiscalizar ou interferir nos demais poderes. Com efeito, não existe tal previsão na Constituição Federal de 1988, nem mesmo mediante esforço hercúleo pode-se chegar validamente à tal conclusão, sendo antes uma ação contundente praticada por meio de nefasta violência constitucional.

Consectariamente, reputar-se-á juridicamente inexistente eventual publicação de "ato institucional" de membro das Forças Armadas ou decreto do presidente da República que pretenda conceder poderes de intervenção às Forças Armadas, pois tal ato pretenderia revogar, total ou parcialmente, a Constituição Federal de 1988. Conforme o constitucionalista português Jorge Miranda, ocorrendo a inexistência jurídica, "o ato inconstitucional não produz nenhuns efeitos desde a origem, sem necessidade de declaração por parte de qualquer órgão com competência específica, as autoridades públicas não o podem executar e os cidadãos não estão adstritos a acatá-los" [3].

Nesse caso, verifica-se a completa ausência de elementos constitutivos materializadores dos pressupostos do ordenamento jurídico. Em outras palavras, o aludido "ato institucional" ou "decreto" não integra nenhum pressuposto material ou formal do sistema normativo  que é hierarquizado pela Constituição —, de modo que não detém nenhum fundamento de validade constitucional, sendo destituído de qualquer juridicidade. Assim, eventual atribuição de poderes interventivos às Forças Armadas é ato inexistente, inválido e ineficaz, porquanto se trata de ato cuja inconstitucionalidade é manifesta e cristalina.

Ademais, se a intervenção das Forças Armadas contra os demais poderes provier de ato emanado pelo chefe do Poder Executivo Federal, o presidente da República incorrerá em crime de responsabilidade por atentar contra "o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação", sujeitando-se à pena de perda do cargo, com inabilitação por oito anos para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis (artigo 85, II c/c 52, parágrafo único, CF de 1988).

Por fim, o ministro aposentado do STF Celso de Mello arremata: aquele que "admite a mera possibilidade de intervenção militar nos poderes do Estado, como o Judiciário e o Legislativo, é um profanador dos signos legitimadores do Estado democrático de Direito e conspurcador dos valores que informam o espírito da República!" [4].


[1] SILVA, Fernando Carlos Santos da. Aspectos legais do emprego do exército na defesa da pátria. 30 jun, 2006. Revista Âmbito Jurídico. Acesso em 27-08-2021. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/aspectos-legais-do-emprego-do-exercito-na-defesa-da-patria/.

[2] MD. Ministério da Defesa. Garantia da Lei e da Ordem. Portaria Normativa nº 3.461 de 19 de dezembro de 2013. P. 14 e 18. Acesso em 28-08-2021. Disponível em: https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/File/doutrinamilitar/listadepublicacoesEMD/md33a_ma_10a_gloa_1a_ed2013.pdf.

[3] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 367.

[4] CONJUR. Consultor Jurídico. Artigo 142 não legitima intervenção militar em qualquer dos Poderes, diz Celso. Publicado: 17 de agosto de 2021. Acesso em 28-08-2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-17/artigo-142-nao-legitima-intervencao-militar-qualquer-poderes.

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    é mestrando em Política Criminal pela Universidad de Salamanca (Espanha), integra o grupo "Estado, Instituciones y Desarrollo", da Asociación Latinoamericana de Ciencia Política, e o comitê de pesquisa "Systèmes judiciaires compares", da Association Internationale de Science Politique.

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