Opinião

Concessão pode ser transferida sem licitação?

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30 de agosto de 2021, 17h29

Uma leitura conjunta do artigo 26 com o artigo 27 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, parece indicar que a transferência da concessão prevista no artigo 27 teria o mesmo significado que a subconcessão prevista no artigo 26, razão pela qual, para ambas, por força do §1º do artigo 26, seria necessária licitação.

Essa leitura, contudo, não explica a razão pela qual não se exigiria licitação para a transferência de controle societário da concessionária que, em muitos casos, pode ter o mesmo efeito prático que a transferência da concessão. E a redação do artigo 27 também não afasta a interpretação que permite a transferência de concessão sem licitação. Tanto é verdade que, partindo exatamente dessa premissa, a Procuradoria-Geral da República entendeu que esse dispositivo legal violaria o artigo 175 da Constituição, que exige licitação prévia à outorga de concessão, e ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2946 para pleitear o reconhecimento da invalidade do artigo 27.

O fundamento da ADI 2946, contudo, baseia-se em um salto interpretativo, uma vez que a Constituição exige licitação para a outorga de concessão, mas não para a transferência de uma concessão já licitada e outorgada. Essa discussão é preocupante pelo fato de a norma já viger por mais de 25 anos, durante os quais muitas transferências podem ter sido feitas e muitos investimentos também com base na norma vigente.

A controvérsia, então, envolve dois aspectos. O primeiro seria a respeito da constitucionalidade ou não do artigo 27 da Lei 8.987, de 1995. O segundo seria a respeito de como solucionar os problemas decorrentes de eventual declaração de inconstitucionalidade do dispositivo.

Outorgar concessão é algo diverso de transferir concessão. Isso é inquestionável. Pode-se questionar se devem ou não ter o mesmo tratamento, mas não se pode estender o tratamento jurídico de um instituto para outro sem uma razão adequada para tanto quando a Constituição não fez essa equiparação e a lei, na interpretação dada na ADI, também não.

Havendo necessidade de substituir a concessionária, seja porque não tem mais interesse no serviço, seja porque não tem mais condições de prestar o serviço, a solução ideal é a que menos prejuízo traga a continuidade, preço e qualidade dos serviços. Pode ser que a concessionária já tenha em vista outra empresa interessada em assumir o serviço. Pode ser que não tenha e, então, a licitação até ajuda nessa localização. A possibilidade de uma concessionária não conseguir levar o contrato até seu termo sempre existe e a probabilidade de isso ocorrer aumenta proporcionalmente ao tempo do contrato que, em se tratando de concessões, muitas vezes dura décadas.

Criar amarras interpretativas inexistentes em nada contribui para um Brasil melhor. Contraria, aliás, entre outros, os princípios eficiência, do interesse público, do planejamento, da segurança jurídica, da razoabilidade, da proporcionalidade, da celeridade e da economicidade, previstos na Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, e aplicáveis subsidiariamente, por força de seu artigo 186, à Lei nº 8.987, de 1995.

A licitação se destina a obter a melhor proposta para a Administração. Feita a licitação, a Administração tem o direito e o dever de exigir o cumprimento da proposta independentemente de quem esteja no polo passivo da obrigação. Afinal, a proposta formulada em licitação é que a vencedora do certamente, não a empresa X ou Y. Assim, não havendo vedação no edital, nada impede o contratado de ceder sua posição no contrato se o cessionário também cumprir as exigências do edital, vinculando-se à proposta vencedora. Embora tenha dever de executar o contrato, a empresa tem também direito a executá-lo, afinal, ninguém participa de um licitação apenas para ganhar deveres. Sendo direito, integra o patrimônio, a propriedade da contratada. Sendo propriedade, há direito de dispor dela [1].

Aliás, se a cada transferência fosse exigida licitação, também se poderia alegar que meras transferências parciais também exigiriam. Daí se poderia partir para a alegação de que qualquer serviço que a concessionária contratasse como tomadora também exigiria licitação. A terceirização de seus serviços exigiria licitação. As compras que fizesse exigiriam licitação. Afinal, tudo se destina a cumprir sua finalidade de prestar o serviço público outorgado, não é?

A licitação decorre do princípio republicano segundo o qual, no caso, não sendo possível a todos os interessados prestarem o serviço público, haja um rodízio entre os candidatos mediante um procedimento concorrencial periódico [2]. A temporalidade do rodízio deve ser compatível com o retorno dos investimentos feitos. Respeitado esse rodízio periódico e o procedimento licitatório para a escolha dos candidatos, alterações que ocorrem durante a execução contratual que não descumpram as exigências do edital são irrelevantes, principalmente se a mudança não prejudicar a execução contratual (rectius: continuidade do serviço público) e, portanto, o cidadão destinatário dos serviços públicos [3].

Por isso, não se vê inconstitucionalidade no fato de o artigo 27 dispensar a licitação para transferências de concessões.

Mesmo que fosse inconstitucional, seria necessário, com base no artigo 27 da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, preservar certos efeitos ao declarar a inconstitucionalidade da norma.

Essa preservação se baseia no princípio da segurança jurídica, expresso na parte mais importante do artigo mais importante da Constituição, ou seja, no caput de seu artigo 5º, que repercute inclusive em relação ao exercício do direito à propriedade, sendo que nem mesmo a lei pode desrespeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Até para meros atos administrativos há essa preocupação, como se vê em pelo menos três exemplos. O primeiro está na Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que veda aplicação retroativa de nova interpretação em seu artigo 2º, parágrafo único, inciso XIII, e que prevê prazo de cinco anos para a Administração anular atos inválidos em seu artigo 54. O segundo está na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, com a redação dada pela Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018, que exige nas decisões o sopesamento de suas consequências e as dificuldades práticas para concretizar o que foi decidido, além de exigir a fixação com regime de transição. Além disso o §4º do artigo 1º indica que mesmo lei com erros precisa ser cumprida, até que seja ajustada (ou declarada inconstitucional). O terceiro está na Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, notadamente em seu artigo 147, que expressamente autoriza o gestor até mesmo a deixar de anular o ato se, não sendo possível saná-lo, a anulação não for a melhor solução para o interesse público.

Se há preocupação com a segurança jurídica de meros atos administrativos, é evidente que a preocupação com a lei é significativamente maior, uma vez que ela fundamenta todos os atos jurídicos. Somente com o tempo se forma o hábito que garante a força das normas, até porque não existem sentidos intrínsecos ao texto. É o uso que lhes confere sentido [4]. Daí o perigo das mudanças abruptas e constantes e mesmo das declarações de inconstitucionalidade inoportunas e sem regime adequado de transição, uma vez que, quando a sociedade cria a percepção de que as normas mudam o tempo todo, podem passar a acreditar que elas são irrelevantes. Isso porque o que é proibido em determinado momento pode passar a ser permitido no futuro e que aquilo que é obrigatório pode deixar de ser em breve [5].

Dessa forma, se se considerar inconstitucional a transferência de concessão sem licitação, o mínimo que se espera é que sejam respeitadas as transferências já efetuadas até pelo menos o fim do prazo dos contratos vigentes. O cidadão de bem, com boa-fé, não pode ser prejudicado por respeitar a lei vigente.

* O texto reflete opinião acadêmica pessoal de seus autores, não tendo relação com a posição das instituições com as quais mantêm vínculos.

 


[1] Cabe lembrar que o raciocínio é semelhante ao aplicável à questão da possibilidade de subcontratação total do objeto do contrato administrativo, também permitido pela nova Lei. Cf. SARAI, L. Comentários ao artigo 102. In: SARAI, L. Tratado da nova lei de licitações e contratos administrativos: Lei 14133/21 comentada por advogados públicos. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1112-1120.

[2] Tendo os diversos interessados igualdade entre si, somente a alternância entre eles permite melhor atender a seus interesses. É a mesma ideia apontada por Aristóteles quando, tratando da organização do Estado, afirmou ser preferível o governo se manter com um mesmo grupo, mas, em razão da igualdade em relação a certos homens, seria necessária a alternância no exercício do poder. Cf. ARISTÓTELES. Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, Livro II, Capítulo I, §6, 1621a.

[3] O critério que tem em conta o que é melhor para a sociedade, inclusive para decidir entre privatizar ou estatizar um serviço, é lembrado em: DETTER, Dag. FÖLSTER, Stefan. The public wealth of nations: how management of public assets can boost or bust economic growth. Palgrave Macmillan, 2015, e-book.

[4] Cf. ROMAN, Flavio José. Os regulamentos e as exigências da legalidade. Dissertação de Mestrado aprovada pelo programa da PUC-SP. Orientador: Sílvio Luís Ferreira da Rocha, 2007, f. 11 e bibliografia lá referida.

[5] Esse perigo já era percebido desde os antigos, como nota no alerta de Aristóteles: "[…] É pois evidente que há certas leis a mudar, em épocas determinadas. §13. Todavia, se considerarmos esta questão sob outro aspecto, ela parece exigir bastante prudência. Porque quando a melhoria é de pouco vulto, e sendo perigoso habituar os cidadãos a mudar facilmente de leis, é claro que vale mais deixar subsistirem alguns erros dos legisladores e dos magistrados. Haverá menor vantagem em trocar de leis que perigo em fornecer ensejo a que os magistrados sejam desobedecidos. §14. Além disso, a comparação da Política com as outras artes é falsa. Não é a mesma coisa trocar as artes ou as leis. A lei só tem força para se fazer obedecer no hábito, e o hábito só se forma com o tempo, com os anos. Assim, mudar com facilidade as leis existentes por outras novas é enfraquecer a sua própria força". (ARISTÓTELES. Op. cit., p.160-161, Livro II, Capítulo 5).

Autores

  • é doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, membro da Câmara Nacional de Modelos de Licitações e Contratos da AGU, instrutor Credenciado da Escola da AGU e procurador do Banco Central.

  • é professor de Direito do IDP/DF, doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP e procurador-geral Adjunto do Banco Central.

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