Opinião

A inaplicabilidade da legislação de recuperação fiscal a despesas de educação

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30 de agosto de 2021, 10h26

Em junho deste ano foi publicada no Diário Oficial da União a decisão de habilitação do estado do Rio de Janeiro ao novo regime de recuperação fiscal, regramento implementado pela Lei Complementar 178/21, cujo conteúdo altera as normas previstas inicialmente na Lei Complementar 159/17. Entre as modificações levadas a efeito, convém aqui destacar e comentar a vedação contida no artigo 8º, inciso IV, que pela sua literalidade textual impossibilita a contratação ou admissão de qualquer servidor público durante a vigência do novo regime, ressalvadas em lei apenas as hipóteses de reposição de cargos de chefia e de direção e assessoramento que não acarretem aumento de despesa, bem como as contratações temporárias [1]. Ou seja, para os demais cargos não será possível sequer a contratação em casos de vacância, segundo o texto legal [2].

É sabido que o ajuste fiscal inicialmente proposto pelo programa já condicionava os entes políticos aderentes ao cumprimento de diversas obrigações financeiras comprometidas com a maior liberação de fluxo de caixa e com a redução de despesas, principalmente em relação àquelas que onerassem a folha de pessoal.  Busca-se, por meio das aludidas medidas, equacionar a previsão e a realização de receita com o ordenamento de despesas, em reverência ao equilíbrio financeiro do orçamento idealizado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000).

Não obstante seja possível questionar, em termos macroeconômicos, a efetividade da formulação de políticas fiscais contracionistas no enfrentamento de períodos de recessão econômica [3], parece evidente, sob a ótica jurídica, haver a subversão da lógica constitucional, na medida em que dita restrição financeira exigida pela norma colide frontalmente com direitos fundamentais e com deveres de gestão estatal financeira previstos na Carta Magna. A baixa disponibilidade de servidores públicos ao estado pode não só comprometer a continuidade do serviço estadual, como também acaba por desrespeitar vinculações financeiras constitucionais.

É o caso, por exemplo, da fixação constitucional do percentual de recursos financeiros às despesas obrigatórias com educação previstas nos artigos 212 e 212-A [4].  Conforme disposto no caput do primeiro dispositivo, os estados, o Distrito Federal e os municípios deverão aplicar minimamente, a cada ano, a porcentagem de 25% da receita resultante de impostos na manutenção e no desenvolvimento do ensino. O 212-A, ao seu turno, explicita que parte dessa vinculação de recursos se destina à manutenção e ao desenvolvimento de ensino na educação básica e à remuneração condigna de seus profissionais.    

Ora, se estamos diante de restrições financeiras aplicáveis a contratação de quaisquer servidores, manifesta é a repercussão dessa medida no quadro de sucateamento da educação pública, considerando a importância do capital humano no desenvolvimento desse setor. Professores, técnicos administrativos, bibliotecários, entre tantas outras carreiras que compõem o quadro de servidores na área da educação, são necessárias ao objetivo final de garantia das condições básicas de manutenção e de desenvolvimento de ensino previstos na Constituição. Da limpeza da sala de aula à orientação educacional, o trabalho humano é imprescindível à obrigação estatal de promoção e de incentivo da educação.

Nesse sentido, restringir indistintamente a admissão ou a contratação de novos servidores pode significar o prejuízo ou a paralisação de serviços públicos considerados essenciais ao cumprimento de direitos sociais fundamentais em virtude de mera submissão contábil. É certo que a regularização financeira intencionada pelo programa pressupõe a adoção de medidas de austeridade como forma de redução do déficit público, mas daí a conceber essa finalidade desprendida dos ideais constitucionais denuncia notória inconstitucionalidade dessa interpretação.

O regime de recuperação fiscal instituído pela LC 159/17 e alterado pela LC 178/21, como norma financeira, deve ser interpretado pela sua razão instrumental de ser e não como a representação de um fim em si mesmo. A lei financeira serve aos gestores. Compreensão contrária nos levaria à concepção absurda de desconsiderar obrigações e objetivos constitucionais, em especial da redução das desigualdades sociais, da erradicação da pobreza, da garantia de desenvolvimento social e da construção de uma sociedade justa e solidária, em prol do cumprimento de metas contábeis [5].

Ademais, a preferência pelo ajuste fiscal sobre limites constitucionais é noção que sequer coaduna com a lógica aplicada no conjunto normativo veiculado pela lei, considerando que o inciso XI do mesmo artigo 8º menciona expressamente como exceção legal à vedação contida no caput o cumprimento de limites constitucionais relativos à educação e à saúde [6]. Assim, em que pese tenha resultado da mencionada alteração legislativa verdadeira lacuna quanto à aplicação da vedação legal aos casos reservados à vacância de servidores, a conclusão que inevitavelmente se chega é a de superioridade das normas da Constituição Federal frente às inovações trazidas pela Lei Complementar 178/21. Independentemente de haver ou não orientação expressa em lei pela adequação das regras financeiras aos limites constitucionais mínimos em saúde e educação, certo é que dita conformidade transcende a análise de subsunção legal, posto que sua aplicação decorre da necessidade de conformação dos atos normativos infralegais à Constituição.

A hipótese de uma lei complementar que versa sobre finanças públicas se sobrepor ao comando constitucional financeiro de aplicação mínima de recursos no setor da educação não representaria somente uma violação à supremacia das normas constitucionais face ao ordenamento jurídico e uma incoerência legal com os demais dispositivos da lei complementar em referência, como também se mostraria em dissonância com os compromissos administrativos firmados pelo estado do Rio de Janeiro.

Ao longo da última década foi possível acompanhar a progressiva deterioração dos serviços públicos em um contexto nacional. Crises econômicas e crises políticas foram determinantes nas quedas das arrecadações de impostos e das receitas originárias, sobretudo para a economia do estado do Rio de Janeiro, dependente do repasse de royalties de petróleo.

Cortes em recursos destinados ao financiamento da educação pública já não são nenhuma novidade para a realidade fluminense, debilitada financeiramente há tempos. Em 2018, o estado do Rio de Janeiro chegou a ser alvo de uma ação civil pública [7] proposta pelo Ministério Público Estadual diante da constatação de irregularidade do tratamento financeiro destinado ao mínimo constitucional garantido à educação pública. Recentemente, o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) conheceu, em decisão plenária, a minuta de termo de ajustamento de gestão (TAG) encaminhada pelo estado do Rio de Janeiro com objetivo de regularizar o cumprimento dos índices de aplicação em manutenção e desenvolvimento de ensino a partir de 2020 [8].

Valendo-se do instrumento de solução consensual de conflitos, o próprio ente estadual reconheceu a violação às normas constitucionais, buscando orientações externas para a regularização financeira desses investimentos por meio de processo administrativo, hoje em trâmite no referido órgão fiscalizador. Nesse sentido, para além da obrigatoriedade de cumprimento às normas constitucionais, o novo ajuste fiscal aplicável às contas do estado do Rio de Janeiro também está subordinado aos compromissos administrativos reflexos assumidos com o Tribunal de Contas estadual, posto que referente à prática reiterada de violação ao limite mínimo de investimento em educação pública pelo ente.

Em outros termos, a vedação de gastos com pessoal proposta pela literalidade do artigo 8º, IV, da Lei complementar 159/17 viola a superioridade da norma constitucional e impele um comportamento contraditório do estado do Rio de Janeiro, que recentemente reconheceu em sede administrativa seu débito com investimentos em educação pública. A regularização de déficits anteriores e posteriores, por sua vez, recairá forçosamente em novas contratações, subordinadas a índices maiores de aplicação, considerando a defasagem dos gastos anteriores e a conformidade com as necessidades desse setor, carente de investimentos.

É preciso cautela na busca de soluções financeiras e sentidos legais que prestigiem a austeridade fiscal a qualquer custo. O plano de recuperação fiscal destinado aos estados e municípios deve ser encarado como ferramenta útil à gestão e transparência públicas, desde que não comprometam a continuidade e a qualidade dos serviços públicos, em especial a educação, movida e aperfeiçoada por pessoas.  

Desse modo, é forçoso reconhecer que o cumprimento do índice de educação não pode ser afastado pela adesão do estado ao regime de recuperação fiscal, conforme já reconheceu a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional no Parecer SEI nº 4945/2021/ME, proferido em 7/4/2021, no processo SEI nº 12105.100331/2021-92, pois constitui maior violação ao ordenamento jurídico pátrio a violação do índice da educação, dada à sua posição constitucional, do que à legislação de responsabilidade fiscal, destituída da mesma dignidade.

Em consequência, a legislação de recuperação fiscal é inaplicável aos estados que estão inadimplentes no cumprimento do índice da educação, em relação às despesas a ela relativas, inclusive as de pessoal.  À medida que professores e técnicos administrativos vão saindo do serviço público, é essencial a contratação de novos servidores para o preenchimento da vacância, por exemplo.

Afinal, cumprir o índice sem a contratação de pessoal frustraria o objetivo constitucional de manutenção e desenvolvimento do ensino, uma vez que o ser humano está no cerne do processo educacional, sendo o gasto de outra natureza periférico nesse cenário.

 


[1] "Artigo 8º – São vedados ao Estado durante a vigência do Regime de Recuperação Fiscal:
IV – a admissão ou a contratação de pessoal, a qualquer título, ressalvadas as reposições de:
a) cargos de chefia e de direção e assessoramento que não acarretem aumento de despesa;
b) contratação temporária; e
c) (VETADO)"

[2] O artigo 8º da LC 159/117 teria recebido pelas alterações da LC 178/21 expressa menção à possibilidade de preenchimento de cargos para casos de vacância, mas a redação foi vetada pelo Presidente da República. Embora a mensagem de veto ressalte que o impedimento das contratações não é de todo absoluto, fato é que a literalidade do texto legal deixou de prever essa hipótese de flexibilização da norma. Mensagem do veto disponível para consulta em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-9.htm. Acesso em 30.07.2021.

[3] Para maior aprofundamento sobre o tema, recomendo a leitura de outro artigo de minha autoria veiculado pelo CONJUR: https://www.conjur.com.br/2020-jul-07/ricardo-lodi-pandemia-desfaz-mito-orcamento-equilibrado. Acesso em 30.07.2021.

[4] "Artigo 212 – A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. (…)
Artigo 212-A – Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios destinarão parte dos recursos a que se refere o caput do art. 212 desta Constituição à manutenção e ao desenvolvimento do ensino na educação básica e à remuneração condigna de seus profissionais, respeitadas as seguintes disposições: (…)".

[5] Nesse ponto, é pertinente destacar a relevância do gasto público em educação em termos de redistribuição de renda. Estudo desenvolvido pelo Centro de Pesquisa em macroeconomia das desigualdades – FEA/USP estimou que, para os anos de 2017-2018, a educação pública reduziu o índice de gini entre 5,22% e 9,62%. Trata-se de impacto significativo, que coloca a educação pública como um dos principais eixos na redução da desigualdade do país. Disponível em: https://madeusp.com.br/wp-content/uploads/2021/04/NPE011_site.pdf, pág. 7. Acesso em 30.07.2021.

[6] "Artigo 8º – São vedados ao Estado durante a vigência do Regime de Recuperação Fiscal:
XI – a celebração de convênio, acordo, ajuste ou outros tipos de instrumentos que envolvam a transferência de recursos para outros entes federativos ou para organizações da sociedade civil, ressalvados: d) aqueles destinados a serviços essenciais, a situações emergenciais, a atividades de assistência social relativas a ações voltadas para pessoas com deficiência, idosos e mulheres jovens em situação de risco e, suplementarmente, ao cumprimento de limites constitucionais".

[7] Ação civil pública 0054872-30.2018.8.19.0001, em trâmite no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

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