Opinião

Lei do Clube-Empresa esconde grande trunfo para clubes endividados

Autores

  • Joana Bontempo

    é consultora do escritório CSMV Advogados e membro da International Association of Restructuring Insolvency & Bankruptcy Professionals (Insol International) do capítulo brasileiro da International Women's Insolvency & Restructuring Confederation (IWIRC Brazil) da Turnaround Management Association Brasil (TMA Brasil) e do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial (CMR).

  • André Carvalho Sica

    é sócio-fundador do escritório CSMV Advogados sendo responsável pela área de Direito Desportivo atua nos tribunais arbitrais da Fifa e do CAS é postgraduated certified em Direito Desportivo pela Kings College London (Inglaterra) e leciona Direito Desportivo nos cursos de especialização de CBF Academy ESA e Federação Paulista de Futebol.

30 de agosto de 2021, 14h04

A recém-sancionada Lei do Clube-Empresa (Lei nº 14.193/2021), bastante esperada pelos principais atores do futebol brasileiro, é potencialmente um marco para a profissionalização e modernização desse mercado, tornando-o atrativo para possíveis investidores e financeiramente sadio para os clubes.

Nesse contexto, a lógica do projeto original era a de que o clube de futebol constituiria uma sociedade anônima do futebol (SAF), mediante a transferência de parte de seus ativos para a SAF, que sucederia o clube em campeonatos e contratos relativos ao futebol, ficando a SAF sujeita a certas regras de governança, controle e transparência. Em contrapartida, a SAF se beneficiaria de regime tributário especial (Simples-Fut) e poderia obter recursos no mercado financeiro, inclusive por meio das debêntures-fut, que teriam tributação específica e incentivada.

O clube, por sua vez, receberia dividendos e recursos advindos de receitas correntes e de contratos com a SAF, os quais deveriam ser utilizados para o equacionamento do seu passivo, sob pena de responsabilização de seus administradores. Por fim, o passivo dos clubes deveria ser quitado diretamente junto aos credores, por intermédio do regime centralizado de execuções ou por meio de recuperação judicial ou recuperação extrajudicial.

A despeito da discussão acerca dos acertos e erros do projeto, o fato é que a Lei do Clube-Empresa pretendia criar condições e incentivos para que os clubes, além de regularizar o passado, pudessem dar continuidade e incrementar, de forma responsável e sustentável, suas atividades futebolísticas, muitas das quais já centenárias.

Nesse contexto, antes mesmo da sanção da Lei do Clube-Empresa, clubes como Cruzeiro, Botafogo e América-MG manifestaram interesse em prosseguir com a constituição de SAF, o que demonstra que a Lei do Clube-Empresa, como originalmente concebida, tinha o potencial de atender às necessidades do mercado do futebol. O Cruzeiro, inclusive, anunciou a aprovação da constituição de SAF por seus associados.

Ocorre que a parte mais relevante da Lei do Clube-Empresa, em especial as disposições acerca do Simples-Fut e das debêntures-fut, esbarrou em vetos presidenciais, o que acabou por matar a SAF antes mesmo do seu nascimento. Não parece crível que os clubes constituam SAFs, com todas as obrigações que lhes serão impostas e todas as responsabilidades que poderão ser atribuídas aos dirigentes dos clubes, se não puderem contar justamente com os principais incentivos e benefícios inicialmente propostos. A persistir esse cenário, a tendência é que os clubes simplesmente permaneçam organizados como associações civis, afundados em dívidas e sem perspectivas de superação da atual crise financeira e de gestão.

Os vetos presidenciais, fundamentados em alegada renúncia de receita, até poderão ser derrubados pelo Congresso Nacional, mas a expectativa é de que a deliberação sobre o tema ocorra em cerca de 60 dias, tempo que os clubes com finanças comprometidas não têm a perder.

Entretanto, independentemente da deliberação do Congresso, os clubes podem começar a beneficiar-se da lei desde já, como inclusive já o fez a Associação Portuguesa de Desportos. A despeito dos vetos, o texto vigente desde logo confere aos clubes a possibilidade de equacionar seus passivos por meio de regime centralizado de execuções, recuperação judicial ou recuperação extrajudicial.

Note-se que não há na Lei do Clube-Empresa a obrigatoriedade de adoção da SAF para que os clubes possam fazer uso de recuperação judicial ou recuperação extrajudicial. E nem poderia. Isso porque, de acordo com a própria lei, não é a SAF quem ajuíza e se beneficia de tais procedimentos, mas apenas o clube-associação.

Em outras palavras, a Lei do Clube-Empresa confere legitimidade ativa aos clubes de futebol para o ajuizamento de recuperação judicial e extrajudicial, independentemente da constituição da SAF.

A discussão é relevante na medida em que a Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei nº 11.101/2005 – LREF) legitima o empresário ou sociedade empresária a ajuizar recuperação judicial e extrajudicial, havendo controvérsia na doutrina e jurisprudência acerca da possibilidade de extensão de tais medidas para associações civis, como a maioria dos clubes de futebol. A Lei do Clube-Empresa, portanto, encerra essa discussão, confirmando a legitimidade dos clubes de futebol para a propositura de tais procedimentos.

A esse respeito, cumpre destacar que, desde a recente alteração da LREF, muito tem se discutido acerca da necessidade de regularização do passivo fiscal para fins de concessão da recuperação judicial, de forma que tem sido exigido dos devedores em diversos casos a apresentação de certidões negativas de débitos fiscais (CNDs) ou de evidências da submissão de proposta de transação tributária. Dessa forma, os clubes de futebol que não estejam em dia com o Fisco poderão ter maiores dificuldades de fazer uso da recuperação judicial, podendo nesses casos se valer da recuperação extrajudicial.

Vale destacar que o ajuizamento de recuperação judicial ou extrajudicial não impede a posterior constituição da SAF. Ao contrário, a SAF pode ser constituída no âmbito do processo de recuperação, como parte do plano de recuperação judicial ou extrajudicial. Aliás, a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial parecem ser ferramentas importantes para tornar mais segura a reestruturação societária dos clubes de futebol. A rigor, a constituição da SAF em sede de recuperação judicial ou extrajudicial poderá proteger o clube contra eventuais alegações de fraude por credores dissidentes, conferindo-se maior segurança jurídica para potenciais investidores. 

Ademais, o ajuizamento de pedido de recuperação judicial ou extrajudicial tem o condão de suspender as ações e execuções ajuizadas contra o clube de futebol por 180 dias, preservando seu caixa durante a fase de renegociação das dívidas e preparação e negociação do plano de recuperação, conforme aplicável.

Assim, o clube de futebol poderá desde logo iniciar sua reestruturação econômico-financeira por meio do pedido de recuperação judicial ou extrajudicial e, se e quando os vetos caírem, poderá também implementar a reestruturação societária, mediante a constituição da SAF, se assim entender pertinente.

Nesse paradoxal cenário legislativo, não surpreenderia, muito menos no Brasil, um futuro Campeonato Brasileiro repleto de clubes organizados como associações civis, em recuperação judicial ou extrajudicial, brigando por títulos às custas de seus atuais credores, enquanto a desejada profissionalização do mercado fica para as próximas gestões, assim como a conta de toda essa aventura. Afinal, de quem será a culpa quando o plano de recuperação for descumprido?! 

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    é consultora do escritório CSMV Advogados e membro da International Association of Restructuring, Insolvency & Bankruptcy Professionals (Insol International), do capítulo brasileiro da International Women's Insolvency & Restructuring Confederation (IWIRC Brazil), da Turnaround Management Association Brasil (TMA Brasil) e do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial (CMR).

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    sócios da área de direito desportivo do CSMV Advogados.

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