Opinião

Dois marcos temporais, duas visões do passado e um só futuro (Parte 1)

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30 de agosto de 2021, 18h29

O conceito político-jurídico de "marco temporal" não encontra respaldo no corpo de quase todos os textos constitucionais que foram até aqui formulados, desde o tempo colonial, passando pelos regimes ditatoriais, nos quais se reconheciam de forma cristalina o indigenato, o direito originário dos povos indígenas. Na nossa compreensão, o dito marco temporal quer apagar o passado dos indígenas (inclusive aquele que lhes foi instituído e demarcado pela colonização), impondo-lhes uma espécie de "solução final": no lugar da reparação (a demarcação da terra indígena) por uma perda violenta (a terra espoliada), a imposição de uma adesão ao estilo de vida e ao mercado (de terras) capitalista e o abandono compulsório de uma relação ancestral e indissociável com o território e com um modo de vida particular.

Arrasta-se nos dias presentes um julgamento histórico no Supremo Tribunal Federal. A mais alta corte do país irá apreciar o recurso com repercussão geral (RE 1017365) no qual se discute o direito de posse em área de tradicional ocupação do povo indígena Xokleng, de Santa Catarina. No centro do debate está precisamente a tese do "marco temporal", encampada por parte do STF e segundo a qual o direito dos indígenas às terras tradicionalmente por eles ocupadas depende do fato desses efetivamente as estarem habitando em de 5/10/1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal de 88. O julgamento é histórico não apenas pela relevância da matéria e pelo alcance da decisão, mas também porque necessariamente implica numa tomada de posição em relação ao passado e ao futuro dos povos indígenas no Brasil. 

No que se refere ao passado, deveria ser incontroverso que, quando há mais de 500 anos os europeus invadiram o território hoje chamado de Brasil, este já era ocupado por milhões de indígenas. Assim como é inconteste que na consolidação da nação e do Estado brasileiro foi constante e contínuo (até o tempo atual) o esbulho das terras indígenas. Exatamente por isso, também desde os tempos do Brasil colônia consolidou-se uma legislação que garante aos indígenas o direito à terra, inicialmente com o Alvará Régio de 1º de abriu (não é piada) de 1680, que afirmou o direito dos povos indígenas a permanecerem em suas terras, "sem serem molestados e nem mudados de lugar contra a sua vontade", passando pela  Carta Régia de 9/3/1718, pela Lei de 6/6/1755, pelo Diretório dos Índios de 1757, pelo Decreto 426 de 24/7/1845, que instituiu o Regulamento das Missões, pela Lei de Terras de 1850 (que reafirmou o indigenato) e pelas constituições de 34, 37, 46 e 67/69, até a Constituição Federal de 1988. Destaca-se aqui que na série histórica de Constituições, desde 1934 são reconhecidos esses direitos, não obstante o tema não tenha sido sequer mencionado pela Constituição de 1824 (ainda que largamente debatido nos trabalhos constituintes) ou pela Constituição de 1891.

O histórico reconhecimento do direito dos povos indígenas no Brasil, por meio dessas normas que repetidamente declaravam os índios como proprietários ou possuidores de suas terras, reafirmando umas às outras, não impediu, por certo, as inúmeras violências de que foram vítimas: invasões e esbulhos de terras habitadas por índios permanecem ocorrendo até os dias atuais. Os índios resistiram, até pelo simples fato de ainda existirem mesmo em face de tantas violências sofridas ao longo de 500 anos. É digno de nota o episódio relatado por Manuela Carneiro da Cunha em que o chefe dos índios Gamela de Viana do Maranhão obteve da Justiça daquela província em 1822 a demarcação das terras da aldeia (Carneiro da Cunha, 2012). Desde tempos remotos as terras indígenas e sua demarcação foram, portanto, não apenas objeto de leis, constituições e decisões judiciais, quanto também constituíram o centro da "questão indígena".

Sob a ditadura militar foi elaborado o Estatuto do Índio (Lei 6001/73), ainda hoje em vigor. O estatuto foi influenciado pelos avanços normativos alcançados no campo do Direito Comparado e do Direito Internacional, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 ou a Convenção 169 da OIT de 1936 (em vigor no Brasil apenas em 2003). Nesse passo, garante aos índios a posse permanente das terras em que habitam (artigo 2, IX) e afirma que essa antecede a demarcação das terras, que nada mais faz que reconhecê-la (artigo 25).

O fim da ditadura foi marcado pela elaboração e promulgação da Constituição de 1988. Na Assembleia Nacional Constituinte, houve inédita e intensa participação dos povos indígenas, mobilizados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e também pela União das Nações Indígenas (UNI). Pela primeira vez os indígenas foram ouvidos no processo de elaboração de normas que lhes diziam respeito. Uma das cenas mais emblemáticas do processo constituinte foi a intervenção performática de Ailton Krenak, que discursou perante o plenário vestido em impecável terno branco (roupa de branco) enquanto pintava com tinta preta a face.

Na Subcomissão de Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, foram ouvidos indígenas, indigenistas e antropólogos. Numa dessas audiências, compareceu a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, para dizer que a tradicional "política de não demarcação" deixava a descoberto terras para as quais os índios então já tinham direitos constitucionais resguardados, manifestando sua expectativa de que "a nova Constituição" mantivesse tais direitos: "Seria uma quebra de toda a tradição jurídica se esta Constituição democrática não desse as mesmas garantias que Constituições autoritárias asseguraram. O que implica essa não demarcação? Por que não se demarcou? É bom que se diga. A demarcação estava prevista no Estatuto do Índio, que é de 1973, que previa 5 anos para que se completassem todas as demarcações. No entanto, estamos em 87, e dei as cifras atuais, 32% das terras identificadas apenas estão demarcadas. Não se demarca exatamente porque os interesses são muito grandes. Há interesses contra a demarcação, ou então há interesses em demarcar incorretamente, ou seja, reduzindo fortemente as terras que a Constituição garante aos índios" (Brasil, "Diário da Assembleia Nacional Constituinte", 5/5/1987).

A questão político-jurídica das terras indígenas e sua demarcação foi enfrentada na constituinte com a mobilização dos indígenas e a formação de uma Frente Parlamentar Pró-Índio, tendo sido vencida a posição do Centrão e da bancada "anti-índio", que procurou retirar do texto a expressão "terras originárias". Prevaleceu a tradição das constituições que lhe foram anteriores, mesmo as ditatoriais, e no Capítulo VIII, intitulado "Dos Índios", foram reconhecidos "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" (artigo 231, caput): posse da terra e de recursos do solo, e não propriedade, que continua sendo da União (e, portanto, de todos os brasileiros). Definiu-se de forma explícita, no texto constitucional, as terras tradicionais como aquelas "tradicionalmente ocupadas pelos índios ou por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições" (artigo 231, §1o). A CF/88 ainda garantiu que esses direitos indígenas sobre as terras tradicionais fossem imprescritíveis, inalienáveis e indisponíveis. Outro avanço importante estabelecido no texto constitucional foi a possibilidade dos índios, assim como de suas comunidades e organizações, poderem ingressar em juízo para reivindicar seus direitos (artigo 232).

Portanto, embora o direito dos povos indígenas às terras em que habitam tenha sido reconhecido no Direito brasileiro desde tempos coloniais, a CF/88 cuidou de reforçar a anterioridade de tais direitos ao introduzir a expressão "direito originário". Ao fazer isso, os constituintes manifestaram compreender, no marco do pluralismo étnico e cultural que está na base do texto constitucional, a particularidade da relação entre os povos indígenas e a terra, uma relação que não é "proprietária", mas de unidade entre um povo e sua terra, de imanência, um nexo vital e indissociável. Isso porque, ao reconhecer o direito do índio à identidade cultural, se reconhece também que a identidade do indígena, enquanto tal, se constrói precisamente pelo nexo de vida que se estabelece entre ele e a terra. Nas palavras de Eduardo Viveiros de Castro, "pertencer à terra, em lugar de ser proprietário dela, é o que define o indígena. A terra é o corpo dos índios, os índios são parte do corpo da Terra. A relação entre terra e corpo é crucial. A separação entre a comunidade e a terra tem como sua face paralela, sua sombra, a separação entre as pessoas e seus corpos, é uma operação indispensável executada pelo Estado para criar populações administradas" (Eduardo Viveiros de Castro, "Aula pública durante o ato Abril Indígena", Cinelândia, Rio de Janeiro — 20/4/2016 e reproduzido por Escola dos Saberes, abril — 2016).

Essa compreensão marca o abandono de uma tradição assimilacionista e estabelece o respeito à identidade cultural dos povos indígenas, de seu direito a continuarem a existir como povos que são. Cumpre, portanto, sempre frisar que a CF/88 não criou o direito dos povos indígenas às suas terras, mas reafirmou esse direito que vinha sendo reiteradamente acolhido pelo direito brasileiro como originário, dando-lhe uma moldura constitucionalmente adequada, no quadro de um Estado Democrático de Direito que reconhece o pluralismo, o direito à identidade cultural e à autodeterminação dos povos indígenas.

Continua na Parte 2

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