Justiça Tributária

Como resolver a encrenca dos escritórios virtuais

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

30 de agosto de 2021, 8h00

"Atos administrativos, praticados ao arrepio da Constituição e em desacordo com a lei, dificultam a harmonia que deveria existir entre fisco e contribuinte, contribuindo para mútua desconfiança."
(
Justiça Tributária, Ed. Outras Palavras, São Paulo, 2014, p. 59)

Spacca
A Secretaria de Finanças do município de São Paulo continua insistindo na  criação de "encrencas" para tentar arrecadar ISS dos escritórios virtuais, atividade absolutamente legal, como já defendemos na Justiça e noticiamos através desta coluna.

Em 17 de fevereiro de 2003 escrevemos neste espaço: "Guerra Fiscal — Contadores discutem limite de ISS em São Paulo":

"A Prefeitura de São Paulo está endurecendo o jogo no que chama de "guerra fiscal" e a nova lei do ISS paulistano aumentou a multa de 50 para 200% do valor do imposto, no caso de empresas que estejam simulando sede em outros Municípios. Algumas empresas sediadas em Barueri, Juquitiba, Santana de Parnaíba e Pirapora do Bom Jesus já foram multadas pela Secretaria de Finanças de São Paulo e estão se defendendo."

Em 26 deste mês, o prefeito Ricardo Nunes apresentou projeto para o que pretende seja uma "modernização fiscal" com alterações na planta genérica de valores do IPTU, ao que consta desejando compensar parte dos incentivos contidos na esperada reforma tributária. Nesta poderiam ser reduzidos impostos sobre turismo, call centers , aplicativos e educação à distância. Consta que vereadores da oposição estariam pressionando um esforço maior na cobrança da dívida ativa e revisão de benefícios fiscais concedidos a grandes empresas e instituições bancárias.

Em 11 de setembro de 2017 publicamos neste espaço o artigo "Prefeitos podem atrapalhar reforma tributária no país", que iniciamos com um excelente pensamento do filósofo  romano Marco Túlio Cícero, (106–43 a.C) sobre questão tributária:

"O orçamento deve ser equilibrado, o Tesouro Público deve ser reposto, a dívida pública deve ser reduzida, a arrogância dos funcionários públicos deve ser moderada e controlada, e a ajuda a outros países deve ser eliminada, para que Roma não vá à falência. As pessoas devem novamente aprender a trabalhar, em vez de viver às custas do Estado ".

Como se vê pelo texto acima, a questão de orçamento, dívida pública e tributação é discutida há mais de 2 mil anos e ainda não foi resolvida. Pois bem. Em 2.017 a denominada Frente Nacional dos Municípios, então presidida pelo prefeito de Campinas Jonas Donizette (PSB), pretendia que fosse criado um imposto municipal sobre combustíveis, apelidado de “imposto verde”. Tal entidade reunia prefeitos das cidades com mais de 80 mil habitantes e consta que teria apoio de 73 deputados federais.

O fato de que muitos municípios do país estão com dificuldades financeiras resulta, em boa parte, da péssima administração de seus prefeitos. Muitos usam os recursos públicos com festas, carnaval, obras inúteis, cabides de emprego e outras coisas que infringem o artigo 37 da Constituição que ordena:

"A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência…"

Já apontamos a necessidade de que os impostos municipais sejam lançados e cobrados com eficiência. Na semana passada foi anunciado que a prefeitura de São Paulo pretende rever o IPTU, criando novas alíquotas e revisando o valor venal dos imóveis aqui localizados.

Com relação às alíquotas os vereadores paulistanos podem e devem rejeitar aumentos que venham a onerar os contribuintes de forma injusta. Nunca é demais lembrar que a alíquota, aplicada ao valor venal fixado de forma adequada, pode representar verdadeiro confisco ao longo do tempo. Exemplo: uma alíquota de 2,5% (dois e meio por cento) transfere todo o valor do imóvel para o Município num espaço de 40 anos! As alíquotas atuais já estão próximas disso. Assim, resta o reajuste do valor venal, mero ato administrativo, que não se submete ao crivo dos vereadores.

O artigo 148 do Código Tributário Nacional é claro no sentido de que o valor venal do IPTU pode ser objeto de contestação:

"Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial."

Convém lembrar que impostos não estão vinculados a prestação de serviços específicos, mas destinam-se ao orçamento público, isto é, destinam-se a financiar todas as atividades do poder tributante: folha de pagamento de servidores, manutenção dos bens públicos etc. O contribuinte, no caso de aumento do valor venal além do que repute adequado, pode impugnar o lançamento mediante avaliação contraditória. Nela, há de comprovar que o valor real é inferior ao utilizado como base de cálculo.

Quanto aos escritórios virtuais, tal assunto foi objeto de texto aqui divulgado em 16 de fevereiro de 2015 com o título de "A história dos escritórios virtuais e tantas minúcias", do qual destacamos:

"No município de São Paulo criou-se uma lei obrigando as empresas que tenham sede em outros municípios a se cadastrarem na Secretaria de Finanças paulistana, sob pena de serem seus clientes obrigados a recolher o ISS. Quando qualquer interessado informa, ao tentar cadastrar-se, que sua sede é localizada em local destinado a locação como 'escritório virtual', a inscrição é negada, sob a alegação de que essa opção não é válida."

Muitos contribuintes sediados em outros municípios buscaram solução no Judiciário. Alguns obtiveram êxito, outros não e a questão está longe de ser resolvida. Com isso, há casos de bi-tributação, onerando o custo dos serviços prestados, com óbvios prejuízos para a economia como um todo.

Em 10 de setembro de 2012, sugerimos que o fisco em geral e o do município em particular deveria evitar encrencas desnecessárias, pois o prestador de serviço localizado neste estado recolhe impostos (renda, ICMS, IPI etc.) de cujas receitas todos os municípios participam e o da capital em valores muito expressivos.

Essa briga toda é uma grande besteira e não deveria existir. Mas o que poucas pessoas sabem ou escondem é o fato de que os escritórios virtuais não foram inventados no Brasil e que por volta de 1963 já havia um grande exemplar desse negócio, no centro da cidade de São Paulo.

Esse, que foi provavelmente o primeiro escritório virtual do Brasil, localizava-se na Rua Líbero Badaró, 336 (1º andar Centro), bem próximo onde hoje está o gabinete do prefeito paulistano. Pois foi exatamente aí que em 1967 instalei a sede do meu Curso de Legislação Fiscal. Lembro-me muito bem do telefone: 35-9752.

Em um amplo salão, andar inteiro, pequenas salas com mesa, cadeira, armário e ramal de telefone, tendo anexo imenso salão com mesas de aço, cada uma com cadeira e ramal do PBX. Todo o espaço e as instalações eram locáveis, sem qualquer burocracia.

Trabalhavam ali representantes comerciais, corretores de imóveis e de valores, despachantes aduaneiros, contadores e outras pessoas que tinham sede em casa ou outros municípios.

Quem cuidava de todo esse escritório virtual era uma moça portuguesa de menos de 20 anos de idade, muito bonita, com voz agradável, muito atenciosa. O curso teve muito sucesso enquanto eu lá o mantive, por cerca de uns dez anos. Parte dessa história está na entrevista publicada neste site em 17 de outubro de 2014.

Desde muito tempo os endereços virtuais são admitidos. Há países em que empresas têm sede legal numa caixa postal. O controle das questões tributárias não passa hoje necessariamente por um local físico. Pagamos nossos tributos pela internet. Licenciamos nosso carro da mesma forma. Enfim, o século XXI já chegou!

Sócio de uma empresa que se utiliza de escritório virtual em Barueri chegou a ser denunciado por crime de sonegação fiscal em São Paulo. Em sentença deste mês de agosto foi absolvido a pedido do Ministério Público. Dela merece destaque o seguinte trecho:  

"Assim, em que pese os acusados tenham descumprido obrigação tributária, daí não decorre automaticamente a prova do dolo do crime (responsabilidade penal). Quanto à necessidade de demonstração de dolo nos crimes tributários, elucidativa a seguinte transcrição: Com razão adverte Paulo José da Costa Jr. que 'se nas infrações tributárias a responsabilidade é objetiva, pois independe de intenção do agente, nos estritos termos do art. 136 do Código Tributário Nacional, o que torna irrelevante a prospecção do elemento subjetivo, o delito fiscal não se configura sem a demonstração da conduta dolosa. Ou seja, sem dolo não há infração penal tributária'. A constatação do dolo é, muitas vezes, indevidamente presumida porque se equipara a realização da infração tributária com a realização dolosa de um crime contra a ordem tributária, como se a mera infração do dever extrapenal fosse constitutiva de crime. Contudo, como veremos no estudo específico dos tipos penais, o dolo que caracteriza os crimes contra a ordem tributária implica o propósito de fraudar a Fazenda Pública, exteriorizado através da prática de atos idôneos a este fim. (Cezar Roberto Bitencourt e Luciana de Oliveira Monteiro in Crimes contra a ordem tributária, Ed. Saraiva, p. 48/49). Ante todo o exposto, e com fundamento no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal, JULGO IMPROCEDENTE a pretensão constante na denúncia e ABSOLVO …..da imputação de ser incurso no artigo 1º, incisos I e II, c/c artigo 11 e 12, inciso I, todos da Lei nº 8.137/90, c/c artigo 61, inciso II, alínea "g", e 71, do Código Penal. Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos com as devidas baixas. Sem custas. São Paulo, 16 de agosto de 2021."

Já é hora das autoridades fazendárias reconhecerem que, ao complicar a vida do contribuinte, acabam por estimular a corrupção, inibir o espírito empreendedor do brasileiro ou, na melhor das hipóteses, dando razão para muitos que já pensam em se mudar deste maravilhoso país!

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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