Direito Eleitoral

A quarentena do novo Código Eleitoral para membros da magistratura e do MP

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30 de agosto de 2021, 8h00

A finalidade do presente texto não é a de dissecar o novo Código Eleitoral, capitaneado pela competente e culta deputada Margareth Coelho, que apresenta regulamentações benfazejas, a despeito da pouca valia de um código para o Direito Eleitoral brasileiro, que apresenta modificações periódicas e assistemáticas, e de seu procedimento hipersônico, sem propiciar nenhum elastério temporal para sua maturação e discussão com a sociedade.

Focar-se-á nessas linhas, no seu art. 81, que traz em seu inciso XIV a inelegibilidade para magistrados e membros do Ministério Público que não tenham se afastado definitivamente de seus cargos e funções nos cinco anos anteriores ao pleito. Busca-se impedir que esses cidadãos, em razão de suas prerrogativas, possam beneficiar-se do processo eleitoral, maculando a paridade de armas que é fundamental para a lisura e integridade dos pleitos.

Nas sociedades hodiernas, a seara fática superou as considerações de Alexis de Tocqueville no sentido de que o Judiciário não poderia ser considerado como um superpoder, pois lhe faltariam as condições necessárias para sobrepujar os demais poderes, uma vez que deveria pautar seus posicionamentos por meio de mandamentos legais.[1] São frequentes decisões que não ostentam alicerce em parâmetros normativos, revestindo-se, muitas vezes de mero caráter voluntarista, sem a necessária mensuração de suas consequências, principalmente as econômicas e sociais.

A afirmação feita por Alexander Hamilton – de que o Judiciário é o mais frágil dos três poderes, pois não dispõe nem da espada, nem da bolsa para garantir autoexecutoriedade de suas decisões – não mais guarda pertinência para a realidade dos dias atuais.[2] Além de velar para que os direitos humanos tenham uma eficácia mínima, e acompanhar a aplicação de políticas públicas, evitando abusos de poder em suas mais variadas modalidades, o STF, ápice da pirâmide judicial, vem exercendo a missão de defender a Constituição de arroubos extremados, eivados de autoritarismos e tentativas implícitas e explícitas de quebra da ordem democrática, no que escreve uma das páginas mais honrosas de sua história, deixando um exemplo claro na defesa dos valores republicanos. 

A atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público ganhou uma densidade nunca dantes vista na história da República, o que merece os mais fortes aplausos quando esse escopo tiver como missão pragmática a defesa dos postulados constitucionais. Todavia, para o exercício dessas funções salutares, sua atuação obrigatoriamente tem que estar amparada em densos substratos de legitimidade.

A legitimidade pode ser conceituada como a formação de níveis de consensos na sociedade.[3] Ela não é uma condicionante oriundo do universo jurídico; exerce, todavia, assaz influência para realizar a eficácia e efetividade normativa, em razão de que o seu referencial ontológico não reside no agasalhar de normas, mas nas searas sociológica e política.[4] Quanto mais estorvos houver na atuação do Judiciário e do Ministério Público, maior será a dificuldade dessas duas instituições exercerem o seu mister e solidificar sua propalada legitimidade, principalmente em momentos de crise como os atuais.

Saliente-se que o próprio exercício de suas funções, sem qualquer ultrapassagem ao campo de incidência normativo ou perpetração de qualquer abuso de poder, nem mesmo na sua modalidade de desvio, por si só representa um acinte ao princípio da paridade de armas nas eleições, pela relevância, publicidade, repercussão e simbolismo que o exercício dessas funções representa. Em um mundo cada vez mais fluido, sem a ajuda de metanarrativas consistentes, a atuação dos membros dessas duas instituições, mesmo dentro dos limites legais, pode influenciar decisivamente o resultado eleitoral.[5]

Não se está presumindo que todos juízes e promotores venham a utilizar seus múnus públicos para tirar vantagens nas eleições. O que se está defendendo é uma salvaguarda para que essas funções essenciais à Justiça mantenham sua legitimidade crescente na sociedade e sua honorabilidade seja cada vez mais densificada. Entrando no mundo das lutas políticas, que não obedece a uma regulamentação lógica ou mesmo preordenada, a atuação dessas instituições será questionada, fazendo com que a sua legitimidade possa ser vilipendiada de forma mortal.

O Poder Judiciário e o Ministério Público são essenciais à Justiça porque são os guardiões do Estado de Direito, ambos, com as diferenciações no exercício de seu mister, são também propulsores para a transformação deste em um Estado Democrático Social de Direito, capaz de garantir a formação de uma sociedade mais justa e menos desigual.[6] Permitir uma participação sem barreiras aos juízes e promotores, em todos os níveis, no processo democrático pode estorvar sua imprescindível missão institucional, fazendo que em vez de obedecerem aos ditames da Constituição, possam ser tentados a analisar os postulados da Carta Magna sob a ótica de seus interesses políticos.

Outro argumento razoável para esse impedimento é tentar evitar uma politização de membros do Judiciário e do Ministério Público, em que seus posicionamentos sejam guiados por interesses pragmáticos do cálculo político em detrimento do resguardo as cominações legais. Essa politização teria o potencial de erodir definitivamente o princípio da neutralidade política dessas instituições, que é um dos pilares que sustentam o seu mister constitucional.

A neutralidade política das decisões judiciais é um dogma que tem valido como instrumental para legitimar várias atuações do Judiciário e do MP, mormente quando essas decisões se encontram no limbo entre o jurídico e o político. Teoricamente, os juízes e promotores devem exercer suas funções de forma imparcial e com independência política, vinculando-se apenas à lei; as interferências políticas e ideológicas ficam restritas à formação da lei, no processo normogenético realizado pelo Poder Legislativo, cabendo aos órgãos que exercem o jurisdictio a função de aplicar a lei, sob pena de ultrapassarem os limites de sua atuação.[7] Não obstante, não se pode negar que suas atuações apresentam efeitos políticos.[8]

Os juízes e promotores não estão alheios as suas múltiplas interferências sociais, fazem parte de uma realidade histórica, cultural e social e dela não podem se apartar. O sentido deontológico dos postulados legais abriga determinados valores que refletem uma dada concepção ideológica, estruturando as relações sociais nesse diapasão.[9]  A neutralidade tal como fora defendida por Kelsen apenas pode ser defendida em situações abstratas, dissolvendo-se em fatos concretos. Partindo-se desse elemento empírico, a neutralidade deixa de ser um dado a priori, para ser um elemento que precisa ser protegida normativamente, e a quarentena nessas linhas defendidas se configura como um instrumento importante para sua efetivação.

Ressalte-se que o Judiciário e o Ministério Público exerceram uma atividade bastante proativa para garantir a aplicação da “Lei da Ficha Limpa” e dissipar alegações de inconstitucionalidade, algumas até mesmo gritantes, como, por exemplo, o desrespeito à coisa julgada, não sob o argumento de que seria uma sanção, mais um requisito para a obtenção do registro de candidatura[10]. Agora, majoritariamente se posicionam contra a mencionada quarentena, que tem o mesmo fator teleológico de impedir posições privilegiadas, configurando-se taxionomicamente como o mesmo requisito de candidatura defendido anteriormente.

Além do que esse não seria um impedimento inusitado, a própria Constituição prevê, em seu art. 95, parágrafo único, inciso V, a vedação de o juiz de exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração. Ou seja, a enfocada estrutura normativa não traz inovações ao ordenamento jurídico, ela estabelece a quarentena em defesa das garantias institucionais do Judiciário e do Ministério Público, que poderão decidir de forma mais reflexiva, com menos pressões circunstanciais acerca da conveniência de ingressar na política. Considera-se, inclusive, seguindo a trilha do comando esculpido pela Lei Maior, que o prazo de impedimento para participação de eleições poderia ser de três anos, o que uniformizaria os prazos de impedimento.

Bastante interessante a argumentação vertida por Maria Rosaria Ferrarese, planteando que o advento de uma sociedade democrática surgida das ruínas de uma sociedade aristocrática, atingida por todas as consequências da pós-modernidade, passou a ser assegurado por uma elite de caráter aristocrático, responsável pela concretização da jurisdição, personificada no Judiciário e no Ministério Público que exercem as mediações para refrear os arroubos populistas e manter o Estado Democrático Social de Direito.[11] Segundo a mencionada autora, essas instituições seriam um estamento aristocrático, no sentido de não serem democraticamente eleitos, mas escolhidos num processo meritocrático que teria como missão indelével o resguardo da entronização do princípio da legalidade. A questão se problematiza quando esses estamentos resolvem participar diretamente do processo democrático, não em suas nuances jurídicas, mas atuando proativamente, chegando até mesmo a influenciar nos resultados eleitorais ou participar diretamente do processo.

A indispensável contribuição que o Poder Judiciário e o Ministério Público podem realizar para a sociedade brasileira não é apenas o resguardo do ordenamento normativo, a concretização dos direitos humanos ou a proteção da coisa pública. O bem mais imperioso que cabe não apenas a essas instituições, mas a todo cidadão, principalmente em épocas de obscurantismo e negacionismo, consiste na luta incessante pela democracia inclusiva. Pois bem, diante dessa evidência, a contribuição mais salutar é a de evitar as máculas ao processo democrático, impedindo que seus membros possam utilizar de suas funções, mesmo no âmbito normativo, para entrar e ser bem-sucedidos no processo político.

A construção de uma democracia exige sacrifícios, principalmente em sociedades que apresentam grande nível de desigualdade social. A maior contribuição que o Poder Judiciário e o Ministério Público podem dar a uma maior lisura do processo de aferição da vontade popular é evitar que sua atuação possa ser questionada como parcial. Portanto, essa distância do processo eleitoral se revela como benéfica. Aqueles que queiram entrar nas refregas políticas são livres, mas sem as prerrogativas dessas duas instituições.

 


[1] “Os americanos entregaram aos seus tribunais um imenso poder político; todavia, obrigou-os a atacar a lei apenas com meios jurídicos, dessa forma diminuíram em muito o perigo deste poder. Se os juízes pudessem se pronunciar contra uma lei de maneira teórica e geral; se pudessem tomar a iniciativa de censurar os legisladores, tornando-se partidário do interesse de algum partido, poderiam excitar todas as paixões que dividem o país e poderiam fazer parte dessa luta”. TOCQUEVILLE, Alexis. La democracia in America. Trad. [ s.t], Milano: Rizzoli, 1999. P. 104.

[2] “Qualquer um que analisar atentamente os poderes que formam um Estado poderá perceber que em uma Constituição em que eles sejam rigorosamente separados, o poder que apresenta um menor perigo para os direitos políticos sancionados pela Carta Magna será sempre o Judiciário, pela própria natureza das funções que ele desenvolve, haja vista que ele terá sempre as menores prerrogativas para obstacular ou afrontar os outros poderes. O Executivo, de fato, além de gozar dos predicados inerentes a um poder, dispõe também da espada. O Legislativo, de fato, além de gozar dos predicados inerentes a um poder, dispõe também da espada. Ele não apenas tem a bolsa, mas, absolutamente, estabelece as normas que delineiam os direitos e os deveres de cada um dos cidadãos. O Judiciário, ao contrário, não pode influenciar nem com a espada nem com a bolsa, não pode administrar nem a força nem a riqueza da sociedade e não pode proferir alguma decisão que seja verdadeiramente auto-executável”. HAMILTON, Alexandre. Il Federalismo. Trad. Biancamaria Tedeschini Lalli. Milano: Edizioni Olivares, 1980. P. 218-219.

[3] AGRA, Walber de Moura. A Reconstrução da Legitimidade do Supremo Tribunal Federal. Densificação da Jurisdição Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005. P.149.

[4] “Se o conceito de legitimidade é um conceito jurídico-formal, ou seja, considera-se o que determinado está na Lei, a legitimidade, pelo contrário, é um conceito sociológico-político, interessando-lhe valores e ideais do grupos, ou seja, legítimo é aquele poder que, mesmo à margem da Lei, se exerce atendendo aos interesses da sociedade para a qual se destina”. DANTAS, Ivo. Teoria do Estado. Direito Constitucional I.Belo Horizonte: Del Rey. 1989. P. 115.

[5] BAUMAN, Zygmundt. Em busca da política, 1ª ed., Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro, Zahar, 2000.

[6] STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 85.

[7] “A teoria clássica da divisão dos poderes, construída com um claro acento anti-hierarquizante e com a finalidade de implodir a concepção mono-hierárquica do sistema político, iria garantir, de certa forma, uma progressiva separação entre política e direito, regulando a legitimidade da influência política no governo, que se torna totalmente aceitável no Legislativo, parcialmente no Executivo e fortemente neutralizada no Judiciário, dentro dos quadros ideológicos do Estado de Direito”. FERRAZ  JÚNIOR, Tércio Sampaio. “O Judiciário Frente à Divisão dos Poderes: Um Princípio em Decadência ? In. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. N. 11, Recife: UPFE, 2000. P. 347.

[8] Pode-se afirmar que uma norma jurídica tem efeitos político quando ela afeta diretamente a estruturação da ordem social estabelecida.

[9] Os valores imputados às normas constitucionais dependem da ideologia do operador jurídico. Themístocles Cavalcanti  define da seguinte o conceito de ideologia: “ É o conjunto de idéias a respeito da sociedade, da vida, do governo e que se transforma, pela sua importância, pelo seu sentido dogmático, em credo de um grupo social, de um partido, de uma nacionalidade”. CAVALCANTI, Themístocles. “Reflexões sobre o Problema Ideológico”. In: Revista de Direito Público e Ciência Política.. Vol. VIII, set/dez, n.º 3, Rio de Janeiro: [ s.e. ]. P. 84.

[10] Supremo Tribunal Federal, ADI nº 4578/AC, Rel. Min. Luiz Fux, j. 16/02/2012.

[11] FERRARESE, Maria Rosaria. Il Diritto al Presente. Globalizzazione e Tempo della Istituzione. Bologna: Mulino, 2002. P. 192.

Autores

  • é procurador de Pernambuco, advogado, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP), pós-doutor pela Université Montesquieu Bordeaux IV (França) e doutor pela UFPE/Universitá Degli Studio di Firenzi (Itália). Membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.

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