Segunda Leitura

Profissionais do direito "à beira de um ataque de nervos"

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

29 de agosto de 2021, 10h22

Atravessamos momentos estranhos, em que muitos se consideram vítimas de tudo e de todos, não hesitam em ofender o próximo por nada e se alimentam de conflitos, gastando sua energia em algo inútil e desgastante.

Spacca
No mundo do Direito não é diferente. Uma opinião da qual se discorde basta para que alguém se ofenda, na proteção que a tela do computador ou do celular propiciam, e guarde mágoa eterna contra quem teve a ousadia de discordar do seu “absolutamente correto” pensamento.

Nesta nova e desagradável realidade, o mundo do Direito dá-nos exemplos diários. Vejamos três, começando pelo ensino jurídico. Afinal, é lá nos bancos da Faculdade de Direito que se forma a personalidade do futuro profissional.

Não raramente, alunos em aula online, ou até presencial, destratam o professor por discordar do encaminhamento da aula, da avaliação ou seja lá do que for. Na verdade, o fato pouco importa, pois a pessoa, desvirtuando o secular princípio “dai-me os fatos que eu te darei o direito”, adapta-o para “dai-me os fatos que eu te darei o conflito”.

Valho-me dos comentários de Benamê Kamu Almudras[i], que cita diversas passagens das quais extraio um parágrafo, a título de exemplo:

Outra professora de Universidade Pública localizada no Planalto Central recebeu de um aluno um e.mail em que ele declarava ter decidido que o melhor para ele seria não escrever o trabalho final da disciplina – e solicitava ser aprovado assim mesmo. Uma amiga que leciona ciências exatas em uma universidade mineira recebeu de seus alunos uma lista de temas que eles queriam ver tratados na palestra a ser dada por uma pesquisadora visitante. No meio da pandemia, um pós-graduando – bolsista com dedicação exclusiva – enviou uma mensagem de última hora a seu orientador, dizendo que não participaria de uma reunião online de seu grupo de pesquisas porque estava cansado.

Este tipo de insurgência, que pode surgir das mais variadas formas, às vezes expostas com pouca clareza ou se referindo a fatos totalmente estranhos ao programa da matéria, por vezes é feita em aula, deixando o professor em situação constrangedora.

A que serve tal tipo de conflito? Em que ele colaborará para o aprimoramento da transmissão de conhecimentos? Na verdade, o único resultado será um professor desmotivado, por vezes disposto a largar a cátedra, e um aluno que ostentará a contestação como título de sua inútil ousadia e seguirá na vida criando problemas para si ou para terceiros. Com alerta Lya Luft, esquecido o melhor mestre, que é o bom senso.[ii]

É óbvio que o relacionamento professor-aluno mudou e que deve adaptar-se aos tempos atuais, inclusive com a tolerância necessária pelas consequências decorrentes da pandemia. A depressão é apenas uma delas e merece atenção especial. Mas esta mudança, de todo necessária, não passa por inúteis ofensas ou desconsideração.

Passo agora aos conflitos institucionais. Nenhum exemplo será mais marcante do que a notícia de que o Procurador Geral da Justiça de São Paulo resolveu processar uma Procuradora de Justiça da mesma instituição por crime contra a honra.[iii] Cito o exemplo com tristeza, pois pertenci ao MPSP por 10 anos, aprendi muito, respeito e sou grato à instituição.

O conflito surgiu em uma reunião do Órgão Especial, onde o PGJ teria se expressado aos gritos contra uma procuradora. Daí outra procuradora, não a ofendida, colocou o fato em uma lista de membros da classe, afirmando que tal procedimento era o "retrato de uma sórdida sociedade machista". E assim tornou público o que era privado, aquilo que se resolve no âmbito interno.

Inconformado, o PGJ propôs a queixa crime. Quem ganha com isto? Ninguém, óbvio. Quem perde com isto? O Ministério Público, evidentemente. Submete divergências internas a comentários, agrava a tensão, estimula o ódio. Como serão as próximas reuniões do Órgão Especial depois disto?

Prossigo com um terceiro exemplo, os conflitos envolvendo os juízes. Neste tópico a situação é mais complexa, porque envolve milhares de pessoas diariamente, em audiências, sessões e atos processuais. Passam os magistrados por uma fase difícil.

As causas são muitas. Entre elas, o pagamento de elevadas quantias a título de direitos não quitados, os processos que alguns respondem por corrupção (p. ex., nesta semana o CNJ, por meio de sua corregedoria, determinou uma fiscalização extraordinária nos gabinetes de sete desembargadores e de uma juíza, todos do TJRJ, por suspeita de envolvimento em esquema de corrupção[iv]) e os conflitos políticos em que acabou se envolvendo o Supremo Tribunal Federal, deixando a posição discreta de quem diz a última palavra.

O desgaste reflete na ponta, alcança os que fazem as audiências na primeira instância, os que se expõem diretamente, ainda que sob a forma eletrônica. Com cerca de 17.000 magistrados em atividade e mais de 1.000.000 de advogados inscritos na OAB, é difícil prever solução em médio prazo.

Por exemplo, os magistrados, como reagir a uma provocação que, na verdade, possa ter sido feita para criar uma animosidade e gerar suspeição? Que fazer com uma petição malcriada que ofende e desacredita o juiz perante os servidores públicos da Vara?  Como administrar um conflito entre o promotor de Justiça e o advogado no Tribunal do Júri?

Os demais profissionais também estão sujeitos a deparar com situações de conflito, inclusive o Ministério Público, Defensorias, AGU e OAB. Por exemplo, uma resposta ofensiva dada pelo juiz ao advogado diante de um requerimento. Por óbvio,  situações como esta necessitam ser tratadas com profissionalismo e não com uma frase ofensiva, hipótese em que todos acabam perdendo a serenidade e a razão.

As reuniões internas ou externas a que todos atualmente se submetem, da mesma forma precisam ser conduzidas com objetividade e cordialidade. Posições antagônicas existem dentro de qualquer órgão. E pessoas que falam além do tempo, ou que impugnam tudo, lembrando um remoto artigo do Regimento Interno, estão presentes em qualquer instituição, pública ou privada.

O importante é que há técnicas para administrar tais situações. Por exemplo, anotar tudo o que alguém oponente diga para poder rebater depois; concordar em algum ponto que não altere sua proposta de forma radical; não demonstrar emoção; colocar-se no lugar do outro; nunca negar terminantemente, se for o caso, cogitar de novos estudos; quando os ânimos se exaltarem, fazer uma pausa para o café, para que as ideias possam se recompor.

Importante também é ignorar a ofensa. Isto não é ato de covardia, mas sim de inteligência. Augusto Cury lembra que “ninguém tem o poder de nos ferir, a não ser que permitamos ou que haja lesão física. A virtualidade dos pensamentos nos liberta e nos protege, mas não sabemos usar essa proteção”.[v]

Todas as instituições, de acordo com as suas carências e necessidades, podem preparar seus profissionais para evitar ou bem conduzir tais incidentes. Por exemplo, no âmbito do Poder Judiciário, as Escolas da Magistratura podem convidar profissionais da área de relações humanas, psicólogos, psiquiatras e magistrados experientes que, certamente, darão lições preciosas.

O essencial é que todos percebam, seja qual for a área de atuação, de estudante à cúpula das instituições, que incidentes inúteis geram  imensa perda de tempo e  energia, que poderiam ser bem aproveitados em outras atividades. Por exemplo, um conflito que mal resolvido resulta em ações de natureza civil, penal ou administrativa, gera às partes anos de incômodos, depoimentos, arrazoados e julgamentos.

Se não for por outra razão, que sejam evitados simplesmente por inteligência, pois a vida já nos apresenta problemas naturalmente, criar outros revela dificuldades em distinguir o que realmente importa e leva a sofrimentos adicionais.

 


[i] ALMUDRAS, Benamê Kamu (nome   fictício de um aluno que não quis se expor às críticas de terceiros). Parece revolução, mas é só neoliberalismo. Revista Piauí nº 172, janeiro, p. 25

[ii] LUFT, Lya. Perdas e ganhos. Coleção Folha de São Paulo, p. 35.

[iii] PGJ de SP apresenta queixa-crime contra procuradora que o chamou de machista. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 26 ago. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-26/pgj-sp-processa-procuradora-chamou-machista. Acesso em 28 ago. 2021.

[iv] Globo.com. CNJ determina fiscalização em gabinetes de desembargadores do TJRJ por suposto esquema de corrupção. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/08/23/cnj-determina-fiscalizacao-em-gabinetes-de-desembargadores-do-tjrj-por-suposto-esquema-de-corrupcao.ghtml. Acesso em 28 ago. 2021.

[v]  CURY, Augusto. A fascinante construção do eu. Academia, p. 126.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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