Processo Tributário

Pedido de revisão de dívida inscrita e processo tributário

Autor

  • Esdras Bocatto

    é procurador da Fazenda Nacional mestre e doutorando em Direito Constitucional pela USP e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

29 de agosto de 2021, 8h00

Falar de processo tributário é pensar em conflito. Estado versus cidadão, Fisco versus contribuinte, Leviatã versus indivíduo. Um conflito que, para muitos, é inexorável ao arranjo social, porque seria decorrente da natureza das coisas. A difundida percepção de que tributo é norma de rejeição social é um bom exemplo disso. Estruturada que é no senso comum de que o Estado cobra mais tributos do que deveria, a tese de Ives Gandra Silva Martins tem por indiscutível haver uma lei natural que rege as relações econômicas, a qual é agredida sempre que a lei positiva institui tributação que vá além do mínimo necessário ao funcionamento das funções estatais, seja lá qual for esse teto.

Numa acepção como essa, onde houver tributação, haverá um conflito em potencial, uma tensão permanecente a eclodir com fagulhas. E, por ser assim, a desembocadura do litígio terá no Poder Judiciário o locus primordial — se não, exclusivo —, dado o imaginário de que a administração tributária é essencialmente enviesada a cobrar sempre mais, e exigir a qualquer custo, sob qualquer pretexto. Se a tal voracidade arrecadatória estatal tem no que se convencionou chamar de Fisco seu representante ideal, não será em sua estrutura administrativa que os conflitos tributários serão preferencialmente resolvidos. Visto como um jogo de cartas marcadas, o exercício da autotutela (Súmula STF nº 473) a partir do direito de petição é visto com cinismo e desconfiança.

O processo tributário, com efeito, está sempre à mercê de uma visão antropológica de ser humano idealmente considerado e de uma concepção sociológica de como se dá o entrelaçamento indivíduo-coletividade. A litigiosidade entre Fazenda Pública e contribuinte será tanto mais presente quanto for o grau de relativismo com que se veja a natureza humana. Se, por exemplo, o ser humano é visto como autointeressado, ensimesmado em seus interesses, e refratário a normas que não lhe favorecem, a eclosão de conflitos com o Estado parece ser-lhe sempre iminente. E tanto mais será judicializada a litigiosidade quanto maior for o nível que se adote de liberalismo — tendo por ápice o libertarianismo, para cuja orientação a tributação redistributiva é tida por moralmente errada (Kymlicka, Will, "Filosofia política contemporânea: uma introdução", São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 151). Afinal, sob essa vertente, só o Poder Judiciário poderia barrar o interesse estatal, calcada que está numa crença sacrossanta da imparcialidade judicial.

Por se apostar na superação desse antagonismo simplista que, não há muito tempo, foi institucionalizado o chamado "pedido de revisão de dívida inscrita (PRDI)" como alternativa à judicialização dos conflitos tributários. Normatizado pela Portaria PGFN nº 33/2018, veio com o fim de aprimorar os mecanismos multiportas de controle de legalidade no processo de positivação da norma tributário. Veio, por isso, a cabo de demonstrar que a administração tributária também se obriga a rever seus atos quando maculados por ilegalidade, ao contrário do estereótipo a que se vê jungida sob uma ótica econômica antiestatal.

Não se trata de uma nova roupagem ao já conhecido pedido de revisão de débito inscrito em dívida ativa da União (artigo 3º, §1º, Portaria SRF/PGFN nº 01/1999), coloquialmente chamado de pedido de envelopamento. Diferem-se, especialmente, nas hipóteses em que são admitidos, pois enquanto o antigo pedido de revisão de débito só o era com alegações de causas extintivas do crédito tributário ou suspensiva de sua exigibilidade ocorridas antes da remessa do débito à PGFN (artigo 3º, inciso II, Portaria SRF/PGFN nº 0/1999), o pedido de revisão de dívida inscrita (PRDI) é cabível para apresentação de alegação de pagamento, parcelamento, suspensão de exigibilidade por decisão judicial, compensação, retificação da declaração, preenchimento da declaração com erro, vício formal na constituição do crédito, decadência ou prescrição, ocorridos antes ou depois da inscrição em dívida ativa (artigo 15, § 1º, Portaria PGFN nº 33/2018). Com o PRDI, parte considerável de toda matéria útil à defesa em que os embargos de devedor se escoram (artigo 16, §2º, Lei nº 6.830/80) pode — e preferencialmente deve — ser apreciada ainda na esfera administrativa.

Pelo pedido de revisão de dívida inscrita, a alegação que mais leva ao Judiciário uma litigiosidade estéril pode ser apreciada e tratada: a de erro de fato nas informações constantes das declarações fiscais. Como se sabe, os créditos tributários cuja constituição esteja submetida ao lançamento por homologação (artigo 150, CTN) surgem com a mera entrega das declarações fiscais (artigo 5º, §1º, Decreto-Lei nº 2.124/84), sendo suficiente para a cobrança deles a apuração fiscal de não ter havido os pagamentos que nelas são mencionados (artigo 5º, §2º, Decreto-Lei nº 2.124/84). Por isso, sem que o contribuinte alegue e demonstre ter havido erro no preenchimento dessas declarações, não há como a administração tributária rejeitar a confissão de dívida, pois não há previsão legal de um procedimento fiscalizatório às avessas. Ancorado na presunção legal, não raro o Fisco leva à inscrição créditos tributários sem que os fatos geradores informados nas declarações correspondam à realidade, já que tal verificação sempre será a posteriori.

Sem dúvida, essa é uma das grandes virtudes da inovação trazida com a instituição do pedido de revisão de dívida inscrita: viabilizar que, independentemente de postulação judicial, o contribuinte leve a conhecimento da administração tributária um possível erro de fato capaz de, sendo provado e reconhecido, ocasionar a revisão do lançamento (artigo 149, inciso IV, CTN) e o subsequente cancelamento da inscrição. Com isso, ou se evita a judicialização de lides aparentes — pois, se são estruturadas em ações cuja causa de pedir remota sequer podia ter sido apreciada pela Fazenda Pública antes de ser alegada, não necessariamente implicariam antagonismos de interesses — ou, pelo menos, as clarifica, porque já terá havido algum pronunciamento da administração tributária sobre o erro de fato.

Mais: apesar de o pedido de revisão de dívida inscrita não acarretar, per si, a suspensão de exigibilidade dos créditos tributários — para tanto, haveria de haver previsão no artigo 151, CTN a incluí-lo ao conceito de "reclamações e recursos, nos termos das leis regulamentadoras do processo tributário administrativo" (STJ, REsp 1.341.088/PR) —, foi previsto o prazo de 30 dias para que a unidade da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional proceda a sua análise, definindo-o (artigo 17, §1º, Portaria PGFN nº 33/2018). Em sendo necessário subsídios de fato pela Receita Federal do Brasil — em especial, para os PRDIs alicerçados em fatos ocorridos antes da remessa do débito à inscrição —, também foi previsto o prazo de sessenta dias para que o órgão de origem se posicione conclusivamente (artigo 17, § 3º, Portaria PGFN nº 33/2018). E, em não havendo resposta nesse prazo, foi autorizado que o procurador da Fazenda Nacional proceda ao cancelamento da inscrição com base em um juízo de verossimilhança das alegações do contribuinte (artigo 18, Portaria PGFN nº 33/2018), o que é absolutamente inovador quanto ao alcance do controle de legalidade da inscrição em dívida ativa (artigo 2º §3º, Lei nº 6.830/80), importando em evidente aperfeiçoamento do processo tributário.

Hoje, portanto, o contribuinte tem à sua disposição um instrumento eficaz de defesa de seus interesses que só agrega valor à legalidade da cobrança tributária e afasta lides temerárias postas à análise do Poder Judiciário. Com o pedido de revisão de dívida inscrita (PRDI), ou a inscrição é baixada antes mesmo de instruir uma certidão de dívida ativa (CDA) ajuizada em execução fiscal, ou o fundamento de sua validade é qualificado, a justificar — aí, sim — sua judicialização, caso o devedor permaneça em seu inconformismo. Nada disso, porém, será útil se mantida a interdição ideológica de se ver a administração tributária como pária da sociedade.

Todos ganham, novamente, se acreditarem na seriedade dos sistemas de controle de legalidade. Cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional demonstrá-la, é fato. A aposta foi feita com a Portaria PGFN nº 33/2018. Agora é esperar que a realidade de imponha e o cinismo lhe ceda lugar.

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  • é procurador da Fazenda Nacional, mestre e doutorando em Direito Constitucional pela USP e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

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