Opinião

Considerações sobre o Parecer Cosit nº 10/2021

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29 de agosto de 2021, 12h25

A Receita Federal do Brasil (RFB) continua agindo insistentemente para evitar os efeitos jurídicos inexoráveis da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a não inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, tentando, com isso, reduzir os efeitos negativos para a arrecadação.

O novo capítulo dessa verdadeira sequência estarrecedora de ações e reações fiscais, digna de uma série televisiva, revela-se agora por meio do Parecer nº 10 da Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) e anexado pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) em processo que tramita no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. 

Conquanto o referido parecer ainda não tenha sido publicado no Diário Oficial da União, esse fato, tal como noticiado, permite traçar o entendimento da Receita Federal do Brasil quanto à forma de se apurar e reconhecer os créditos de PIS e da Cofins no regime não cumulativo. Por ora, suas disposições não vinculam o contribuinte, mas demonstram a real intensão da RFB no que concerne a essa matéria. 

Aduz, basicamente, que o ICMS deve ser excluído do valor de aquisição de insumos de produção e fabricação de bens e de mercadorias para revenda, para fins de apropriação de créditos de PIS e Cofins. Essa é uma tentativa de aplicar a analogia à luz da decisão do STF que fixou a tese que o ICMS não compõe a receita bruta do contribuinte para fins de apuração dessas contribuições, o que juridicamente não é plausível nesse caso.

O referido parecer procura demonstrar que a manutenção do crédito integral calculado sobre o valor das aquisições de bens, contemplando o ICMS, diminui a arrecadação federal, contrapondo-se ao princípio da razoabilidade, ameaçando as duas das principais fontes de financiamento da seguridade social, ou seja, a contribuição ao PIS e à Cofins.

Entretanto, esses fundamentos, ao nosso sentir, não se sustentam juridicamente.

É preciso afirmar inicialmente que o regime legal da não cumulatividade das referidas contribuições sociais é assimétrico e assistemático. Segundo a legislação, para fazer jus ao aproveitamento do crédito de PIS e Cofins basta que o contribuinte esteja sujeito ao regime não cumulativo e tribute suas receitas às alíquotas conjuntas de 9,25%. Esse critério legalmente definido não está vinculado à forma de apuração do PIS e Cofins que incidiu na operação anterior de aquisição de bens e serviços.

No caso, a apuração de débitos e créditos se revela por meio de relações jurídicas distintas colocando seus agentes em polos opostos. Na apuração dos débitos, o contribuinte aplica as alíquotas sobre as receitas passíveis de tributação pelo PIS e pela Cofins. Por outro lado, a legislação faculta ao contribuinte o direito de tomar o crédito sobre o valor das aquisições, o que faz com que se proceda, como consequência, a contraposição dos débitos com os créditos. Assim, não há um liame legal entre a formação de débitos e créditos, ou, ainda, o mecanismo de apuração de um não interfere na mensuração do outro. 

A legislação traz a regra expressa de que os créditos são calculados sobre o "valor de aquisição" dos bens adquiridos e, por consequência, nele está incluído o ICMS, conforme sempre reconheceu a própria RFB por meio da Instrução Normativa RFB nº 404/2004 (artigo 8, § 3º, II: "O ICMS integra o valor do custo de aquisição dos bens e serviços"). Note-se que o referido ato normativo usou incorretamente a expressão "custo de aquisição", quando a legislação estabelece o "valor da aquisição" como base dos créditos. Tratam-se de expressões conceitualmente distintas. Por isso, nesse ponto, precisou indicar a inserção do ICMS no cômputo dos créditos, uma vez que, contabilmente, este tributo não integra o custo, sendo registrado de forma segregada.

Essa impropriedade foi ajustada pela IN RFB nº 1.911/2018, a qual passou a utilizar acertadamente a expressão "valor da aquisição", razão pela qual não foi mais preciso explicar que o ICMS estaria nele contido. Isso porque o ICMS está dentro do valor da aquisição conforme dispõe a Lei Complementar nº 87/96 quando define o cálculo "por dentro" desse imposto estadual. Por razões didáticas, acrescentou essa nova instrução normativa o cômputo dos demais gastos como frete, seguro e o IPI não recuperável (cujo ônus tributário também não sofreu a incidência do PIS e da Cofins na operação de venda), que se agregam ao valor de aquisição e por isso, podem ser abarcados na composição dos créditos. 

Frise-se, a única vedação legal existente para a tomada de créditos se refere a situações de aquisições que não sofreram a incidência das referidas contribuições. Essa previsão foi citada pelo parecer Cosit, contudo, não se aplica ao caso analisado, que trata de aquisições tributadas normalmente pelo PIS e pela Cofins, motivo pelo qual cabe ao contribuinte não incluir o ICMS na receita bruta de vendas.

De outro giro, o princípio da razoabilidade invocado no parecer pode ser entendido sob vários contornos em sua aplicação ao Direito Tributário, mas nenhum deles deve resultar em uma inovação, o que se traduziria na situação ora tratada ao criar uma vedação à tomada de créditos não prevista em lei, ainda que sob pretexto de dar coerência ao nosso ordenamento. Vale aqui lembrar que ainda reinam soberanos os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade cerrada, os quais se sobrepõem ao da razoabilidade quando se trata do direito tributário. 

A perda da arrecadação provocada pela decisão da Corte Suprema quanto à não inclusão do ICMS na base de cálculo das contribuições aqui tratadas não pode ser arguida como mote para invocar o princípio da razoabilidade. O referido parecer Cosit deixou de reportar a realidade anterior ao julgamento, em relação a qual, durante anos, os cofres federais foram locupletados ilegitimamente com valores indevidos correspondentes a todos os recolhimentos de PIS e Cofins calculados sobre o ICMS. Também não foi razoável o fato de o Estado ter demorado décadas para reconhecer a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo das referidas contribuições, o que gerou incertezas e um enorme sacrifício econômico aos contribuintes.

Ademais de tudo isso, reconheça-se que é difícil buscar uma razoabilidade no exame do sistema não cumulativo das contribuições aqui aludidas, diante das inúmeras alterações legislativas que foram sendo editadas, conforme alertou o ministro Dias Tofolli para quem as leis que tratam da não cumulatividade das contribuições estão em processo de inconstitucionalização, em razão da "ausência de coerência e de critérios racionais e razoáveis" das sucessivas alterações legislativas em relação à escolha das atividades e das receitas atinentes ao setor de prestação de serviços (RE nº 607642 — questionamento da não cumulatividade do PIS sobre as prestadoras de serviços — Lei 10.637/2002)). 

Por outro lado, ainda que o Parecer nº 10/2021 seja oficializado, a despeito da falta de fundamentação jurídica, seu teor pode ser caracterizado como uma mudança de entendimento da autoridade fiscal, a qual somente poderá ser projetar para o futuro, não podendo retroagir a situações pretéritas que legitimaram a tomada de créditos pelos contribuintes em consonância com as disposições da Instrução Normativa nº 404/2004, a qual preceitua que o valor do ICMS integra o cálculo dos créditos nas aquisições de insumos de produção e fabricação e mercadorias para revenda. Essa verdadeira mudança de critério jurídico não pode retroagir sobre pena de ferir o Código Tributário Nacional (CTN), em seus artigos 100, III, e artigo 146, além do além do artigo 24, caput, e parágrafo único, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). 

Não obstante todos os fundamentos jurídicos aqui exarados que desafiam a validade jurídica do Parecer Cosit nº 10/2021 e mesmo considerando que ele ainda não foi publicado no Diário Oficial e nem percorreu os demais trâmites administrativos para torná-lo vinculante em relação à fiscalização federal, pode-se esperar que a Receita Federal intensifique o questionamento da forma de apuração do PIS e da Cofins e dos respectivos créditos nas aquisições de bens em relação a todos os contribuintes que estão sujeitos ao regime não cumulativo. 

Os contribuintes que já obtiveram decisões transitadas em julgado reconhecendo a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo das contribuições poderão ser instados a demonstrar nos processos de compensação administrativa eletrônica (via sistema Perdcomp) a composição dos créditos de PIS e Cofins utilizados. Isso decorre da previsão trazida pela Lei nº 13.670/2018 que permite ao Fisco instaurar procedimento para aferir a sua liquidez e certeza, levando ao travamento do processo de realização desses ativos até que seja procedida essa aferição, o que é agravado pelo fato de a lei não ter estabelecido um prazo certo para o Fisco se pronunciar.

Como referido, se isso vier a ocorrer os pedidos de compensação ficarão suspensos, sem que haja fixação de limite temporal na legislação para a conclusão desse processo. Ainda, em razão do entendimento esposado no parecer Cosit, a RFB poderá glosar parcialmente os direitos creditórios e as compensações anteriormente apresentadas, com lançamento da multa isolada de 50%. 

Ressalte-se que não somente os processos de compensação poderão ser afetados. As informações ordinárias prestadas na declaração eletrônica EFD-Contribuições também estariam sujeitas à glosa de créditos em relação ao ICMS que compôs o valor das aquisições.

Não é preciso fazer um grande exercício de futurologia para antever um aumento significativo da judicialização em torno do PIS e da Cofins que já são "campeões de audiência" em matéria de disputa tributária no país (vide a questão do conceito de insumos, por exemplo). Diante desse cenário, terá o contribuinte que buscar o socorro do Poder Judiciário para desbloquear as compensações e obstar as penalidades por afronta à coisa julgada e ao direito líquido e certo de realizar as compensações, decisão essa que deve ser precedida de uma avaliação criteriosa da situação específica de cada empresa, além da análise de outras variáveis jurídicas como as disposições do artigo 170-A do CTN, que impõem o trânsito em julgado de ações judiciais como pressuposto para permitir a efetivação das compensações. 

Espera-se, ainda, o surgimento de questionamentos no âmbito dos processos judiciais em que a via eleita para a restituição seja a dos precatórios, desdobrando-se novas discussões em torno do cálculo do valor dos indébitos a serem restituídos a título da não inclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins.

Não bastassem todos os aspectos jurídico-tributários aqui pontuados, é importante também comentar os impactos societários e contábeis decorrentes desse posicionamento. 

Desde 2017, quando o STF decidiu pela não inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, as companhias abertas, a cada encerramento de exercício social e para fins de apresentação de suas demonstrações financeiras, debatem com seus auditores externos a forma mais confiável de mensurar os valores relevantes e materiais de ativos referentes aos indébitos fiscais a que fazem jus a esse título em face de decisões judiciais e a reversão de passivos provisionados.

Essa discussão tornou-se ainda mais importante com a edição da Solução de Consulta Interna da Cosit nº 13/2018, que trazia a metodologia de cálculo baseada no entendimento de que o ICMS a ser desconsiderado na apuração da base de cálculo do PIS e da Cofins seria aquele efetivamente recolhido aos cofres estaduais, e não o destacado na nota fiscal de venda, em desalinho com o que havia decidido o STF no julgamento do RE 574.706.

Esse ponto de divergência em relação à mensuração dos ativos levou a CVM, em várias oportunidades, a se pronunciar requerendo das empresas cautela na mensuração e registro contábil de ativos, bem como a transparência na divulgação para o mercado, em notas explicativas, dos valores envolvidos (vide Ofício Circular CVM/SNC/SEP/n.º 01/2021). 

Quando, finalmente em 2021, essa questão se dissolveu em face do julgamento dos embargos de declaração pelo STF, a RFB vem agora tentar provocar um outro conflito por meio do Parecer Cosit nº 10/2021, que apresenta um questionável critério de apuração de créditos das contribuições, o qual, se aplicado pela fiscalização, certamente fará ressurgir as dúvidas e desafios na rediscussão dos valores de indébitos tributários a serem contabilizados e compensados pelos contribuintes, especialmente se a Receita Federal vier a impedir a realização desses créditos fiscais originados da chamada "tese do século", além das dúvidas que redundarão nas apurações mensais dessas mesmas contribuições. 

Esse cenário de incertezas, se concretizado, poderá novamente gerar um tratamento não uniforme nas demonstrações financeiras das companhias, considerando-se todas as variáveis e ponderações jurídicas que fundamentarão cada posição tributária a ser tomada e os pareceres das auditorias externas, repercutindo negativamente na movimentação do mercado de valores mobiliários brasileiro e na visão dos investidores. 

Difícil, ainda, será explicar aos investidores estrangeiros que essa ação da fiscalização poderá revirar processos legítimos de compensação tributária completados anteriormente, o que representa a completa tradução da máxima atribuída a um antigo ministro da Fazenda segundo a qual "no Brasil, até o passado é incerto". 

Por tudo o que foi aqui exposto, espera-se que a Receita Federal reavalie seu posicionamento jurídico refletido no Parecer Cosit nº 10 e que este seja definitivamente engavetado, posto que destituído de fundamento jurídico. Como se comentou anteriormente, a legislação que rege a incidência do PIS e da Cofins estatui que a base de apropriação de créditos dessas contribuições é o valor da aquisição, não restando dúvidas de que o valor do ICMS é sua parte integrante. 

Nova disputa entre Fisco e contribuinte a esse respeito é um caminho em que todos perdem. O Fisco, pelo custo da administração desses processos, o contribuinte, despossuído de segurança jurídica, o Poder Judiciário, já combalido de recursos para dar vazão às necessidades da jurisdição, e o país por tornar-se cada vez menos atrativo ao investimento em face de seu complexo, desafiador e inconstante ambiente tributário e de negócios.

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