Opinião

A ilegalidade da despedida por algoritmos

Autores

  • Silvia Teixeira do Vale

    é juíza do Trabalho no TRT da 5ª Região mestra em Direito pela UFBA doutora pela PUC-SP pós-doutora pela Universidade de Salamanca professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito Ematra5 Cers Cejas Ucsal e da Escola Judicial do TRT da 5ª 6ª 10ª 13º e 16ª Regiões e diretora da Ematra5 (biênio 2019-2021).

  • Murilo Carvalho Sampaio Oliveira

    é professor doutor associado da Universidade Federal da Bahia e juiz do Trabalho do Tribunal Regional da 5ª Região.

27 de agosto de 2021, 15h21

Este início de milênio é caracterizado por grandes transformações tecnológicas e igualmente culturais. Esse processo de mudanças foi ainda mais acelerado pela trágica vivência da pandemia da Covid-19 e o seu consequente distanciamento social, que provocou ainda mais uso de meios digitais. Alguns autores denominam essas transformações como Quarta Revolução Industrial [1], enquanto outros a caracterizam como processo de digitalização, ou "transformação digital". Em ambas as construções teóricas, há uma certa consensualidade na importância atribuída aos algoritmos como uma das principais ferramentas técnicas para organização, gestão e até controle dos ecossistemas digitais.

Essa visibilidade da aplicação dos algoritmos digitais alcança o mundo laboral. Recentemente, circulou nas redes sociais a notícia de que algumas empresas já estão despedindo os empregados por e-mail, utilizando inteligência artificial e algoritmos, sem qualquer participação humana [2]. Ou seja, os algoritmos de empresas digitais capturam no imenso contingente de dados da web e também de seus aplicativos informações dos clientes e dos próprios trabalhadores dessas empresas para fins de gestão do trabalho destes.

É isso que se designa pela expressão americana "people analicts", na qual as informações da big data — também aqueles exclusivas da empresa — são manejadas por algoritmos para gerir e até sozinhas tomar típicas "decisões de RH". Trata-se da atuação do algoritmo em substituição ao antigo trabalho dos gerentes e consultores de RH, naquilo que pode ser sintetizado na "gestão algorítmica" da força de trabalho [3]. Não à toa, uma rápida pesquisa na internet indica que há diversos cursos ensinando e enaltecendo a prática, como uma espécie de sinais dos novos tempos.

Neste ensaio, a proposta é uma rápida reflexão se tal conduta empresarial encontra amparo na legislação brasileira. A pergunta que se tentará responder é quais são as possibilidades e limites na ordem jurídica nacional para uma despedida de empregado efetivada por algoritmos?

O ponto de partida é a regulação sobre os dados, a qual, logicamente, alcança os algoritmos como entendidos como instrumentos que operam programações a partir de dados. A Lei nº 13.709/2018 (LGPD) não foi pensada para tratar sobre os dados na relação de trabalho, diferentemente da RGPD — conjunto de regras sobre privacidade válido para a União Europeia —, que em seu artigo 88 [4] dispõe sobre o tratamento de dados no contexto laboral. Apesar desse hiato, a incidência da LGPD à relação de trabalho é inafastável, diante da necessidade específica de coleta, recepção, armazenamento e retenção de dados pessoais dos trabalhadores, desde a fase da candidatura até o rompimento do contrato, fazendo com que empregado e empregador sejam considerados titular e controlador de dados, respectivamente.

O artigo 6º da LGPD estabelece que as atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e alguns princípios, entre os quais se destaca o princípio da transparência, que, na literalidade da norma, significa "a garantia, aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial". É dizer, a nova norma foi além do direito à informação (fundamento, inclusive, previsto no artigo 2º, II da lei), impondo a transparência em relação aos dados do titular trabalhador.

E a necessidade na transparência dos dados fica ainda mais evidente diante da previsão presente no artigo 20 da LGPD, segundo o qual "o titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses", inclusive as "decisões destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional, de consumo e de crédito ou os aspectos de sua personalidade". Perceba-se que a referida lei não exigiu a participação direta humana na tomada de decisões, mas assegurou a possibilidade de revisão das decisões provenientes de inteligência artificial, que são alimentadas justamente pela definição do perfil pessoal do trabalhador.

Mais adiante, no parágrafo 1º, a aludida lei é ainda mais explícita ao estabelecer que "o controlador deverá fornecer, sempre que solicitadas, informações claras e adequadas a respeito dos critérios e dos procedimentos utilizados para a decisão automatizada, observados os segredos comercial e industrial". É dizer, não há mais lugar para a denúncia contratual vazia ou desprovida de motivação, seja para o trabalhador de modo geral ou para o empregado, de modo específico, na perspectiva do que já se pontuou acima e partindo do pressuposto segundo o qual trabalhadores/empregados e tomadores de serviços/empregadores passaram a ser, a partir da "era dos dados", respectivamente, titulares e controladores.

O direito individual à informação igualmente encontra previsão na RGPD, que em seu artigo 22 estatui o direito de o titular de dados não ficar sujeito a decisões tomadas exclusivamente com base no tratamento automatizado, contemplando algumas exceções, mas ainda assim a norma europeia prevê que "o controlador deverá fornecer, sempre que solicitadas, informações claras e adequadas a respeito dos critérios e dos procedimentos utilizados para a decisão automatizada, observados os segredos comercial e industrial" [5].

Ainda no Velho Mundo, foi publicado o Real Decreto-ley nº 9 em 11/5/2021, introduzindo a letra "d" no artigo 64.4 do Estatuto dos Trabalhadores da Espanha, evidenciando que o comitê de empresa deve ser informado pela empresa "de los parámetros, reglas e instrucciones en los que se basan los algoritmos o sistemas de inteligencia artificial que afectan a la toma de decisiones que pueden incidir en las condiciones de trabajo, el acceso y mantenimiento del empleo", incluindo-se "la elaboración de perfiles".

No Brasil ainda não há legislação semelhante, mas nada impede que no pleno exercício da autonomia privada coletiva as partes resolvam negociar de modo a estabelecer obrigação de transparência e informação por parte das empresas, no que diz respeito aos critérios de admissão, manutenção e cessação do contrato de trabalho, quando a tomada de decisão se basear em algoritmos ou inteligência artificial. De igual modo, o artigo 8º da CLT admite o uso desse "Direito Comparado", notadamente o europeu pela sua proximidade histórica e cultural com o sistema jurídico nacional.

A nova legislação brasileira, é importante frisar, veio colocar luz não só nos direitos fundamentais de intimidade e privacidade, mas também no contraditório, garantia cidadã que decorre do devido processo legal e vale como direito subjetivo na relação de emprego.

Nunca será demais recordar que o empregador é diretamente vinculado aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, fazendo com que todos os direitos de cidadania devam ser observados no contrato de trabalho, sempre tendo como norte a certeza de que dita relação laboral encerra um poder, unicamente concentrado na pessoa do empregador e sem qualquer similitude ao jus resistentiae destinado ao empregado.

Nesse trilhar, João Leal Amado [6], partindo do regramento estatuído no artigo 98º do Código do Trabalho português [7], desvenda que o empregador legisla, governa e pune, sendo esta última faculdade uma exceção ao princípio da justiça pública — vez que a aplicação das penas pelo empregador constitui-se em exercício de sanções privadas —, bem assim ao princípio da igualdade das partes, tendo-se que a relação de emprego é amplamente dominial por parte do tomador de serviços. Tais características do poder punitivo conduzem à conclusão de que o poder disciplinar laboral é um poder punitivo privado e isso justifica a aplicação dos princípios da proporcionalidade [8] e do contraditório [9].

Em obra recente, o referido professor lusitano afirma que, no que diz respeito ao procedimento disciplinar no Brasil, o ordenamento jurídico pátrio "claudica de forma gritante" [10], pois inexiste na Consolidação das Leis do Trabalho a previsão de contraditório e ampla defesa para o empregado. Com isso, o empregador terminar por punir o obreiro, inclusive com a pena capital de despedida por justo motivo, sem ofertar ao empregado qualquer oportunidade de defesa, o que acarreta, muitas vezes, não só denúncias contratuais vazias, mas também, cessações contratuais por suposto justo motivo, sem sequer se apontar a causa, levando o obreiro insatisfeito a somente ter a oportunidade de discutir as razões patronais em sede de ação ajuizada perante o Poder Judiciário.

Se o Direito Civil avançou bastante no sentido de aplicar o devido processo legal nas relações privadas, com toda a força que o princípio conduz, o Direito do Trabalho prossegue com a embrionária discussão acerca da necessidade de se ofertar o contraditório e a ampla defesa aos empregados acusados da prática de um ato previsto na legislação trabalhista como capaz de cessar o contrato de trabalho, apesar da tão clarividente e igualmente silenciada previsão do artigo 7º, I e da ("afastada") Convenção nº 158 da OIT. Trata-se de um déficit de perspectiva de democracia no uso imotivado do poder punitivo do empregador [11].

Na conjunção dessas regras, preceitos e princípios, defende-se que a despedida de trabalhadores sem a observância do devido processo legal e, mais particularmente, do contraditório, por meio de algoritmos, é contrária à ordem jurídica nacional, seja na perspectiva da proteção de dados (LGPD, artigo 20), seja pela aplicação do devido processo legal nas relações privadas ou mesmo pela regra constitucional que veda a dispensa arbitrária.

 


[1] SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro. 2016.

[3] HOWCROFT, Debra; BERGVALL-KÅREBORN, Birgitta. "A Typology of Crowdwork Platforms." Trabalho, Emprego e Sociedade , vol. 33, não. 1, fevereiro de 2019, pp. 21—38. Disponível em  https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0950017018760136.

[4] RGPD, Artigo 88 – "Os Estados-Membros podem estabelecer, no seu ordenamento jurídico ou em convenções coletivas, normas mais específicas para garantir a defesa dos direitos e liberdades no que respeita ao tratamento de dados pessoais dos trabalhadores no contexto laboral, nomeadamente para efeitos de recrutamento, execução do contrato de trabalho, incluindo o cumprimento das obrigações previstas no ordenamento jurídico ou em convenções coletivas, de gestão, planeamento e organização do trabalho, de igualdade e diversidade no local de trabalho, de saúde e segurança no trabalho, de proteção dos bens do empregador ou do cliente e para efeitos do exercício e gozo, individual ou coletivo, dos direitos e benefícios relacionados com o emprego, bem como para efeitos de cessação da relação de trabalho. As normas referidas incluem medidas adequadas e específicas para salvaguardar a dignidade, os interesses legítimos e os direitos fundamentais do titular dos dados, com especial relevo para a transparência do tratamento de dados, a transferência de dados pessoais num grupo empresarial ou num grupo de empresas envolvidas numa atividade económica conjunta e os sistemas de controlo no local de trabalho".

[5] RGPD, Artigo 22 – "O titular dos dados tem o direito de não ficar sujeito a nenhuma decisão tomada exclusivamente com base no tratamento automatizado, incluindo a definição de perfis, que produza efeitos na sua esfera jurídica ou que o afete significativamente de forma similar.
Não se aplica se a decisão: a) For necessária para a celebração ou a execução de um contrato entre o titular dos dados e um responsável pelo tratamento; b) For autorizada pelo direito da União ou do Estado-Membro a que o responsável pelo tratamento estiver sujeito, e na qual estejam igualmente previstas medidas adequadas para salvaguardar os direitos e liberdades e os legítimos interesses do titular dos dados; ou c) For baseada no consentimento explícito do titular dos dados.
Nos casos a que se referem o nº 2, alíneas a) e c), o responsável pelo tratamento aplica medidas adequadas para salvaguardar os direitos e liberdades e legítimos interesses do titular dos dados, designadamente o direito de, pelo menos, obter intervenção humana por parte do responsável, manifestar o seu ponto de vista e contestar a decisão.
As decisões a que se refere o nº 2 não se baseiam nas categorias especiais de dados pessoais a que se refere o artigo 9.o, nº 1, a não ser que o nº 2, alínea a) ou g), do mesmo artigo sejam aplicáveis e sejam aplicadas medidas adequadas para salvaguardar os direitos e liberdades e os legítimos interesses do titular".

[6] Contrato de Trabalho. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2014. p. 222-225.

[7] Artigo 98º, CT.: "O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho".

[8] Com sede legal no artigo 330º, 1 do CT, segundo o qual "a sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor, não podendo aplicar-se mais de uma pela mesma infracção".

[9] Com previsão no artigo 329º, 6, do CT: "A sanção disciplinar não pode ser aplicada sem audiência prévia do trabalhador".

[10] AMADO, João Leal. A cessação do contrato de trabalho. Uma perspectiva luso-brasileira. São Paulo: LTr, 2017. p. 99.

[11] VALE, Silvia Teixeira do. Devido processo legal na relação de emprego: Contraditório no poder disciplinar e motivação na cessação contratual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

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