Limite Penal

"Julgadores decidem quando os médicos discordam"

Autor

  • Rachel Herdy

    é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

27 de agosto de 2021, 14h21

O título acima — ambíguo, por sinal — reproduz uma das mais famosas citações da literatura jurídica norte-americana. Ela aparece em um artigo de 1901 do jurista e juiz Learned Hand. Para Hand, a testemunha experta — como é chamada o perito na tradição anglo-saxônica, uma vez que ele é indicado pelas partes — era uma "anomalia": confundia mais do que ajudava. A solução, para Hand, era instituir um conselho de especialistas para o qual seria transferido o poder de decisão sobre as questões de fato.

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O assunto da coluna desta semana é a deferência judicial em matéria probatória. Afinal, quando os peritos apresentam suas interpretações com base no conhecimento de suas respectivas áreas, que esperança podemos ter de que julgadores (juízes e jurados) cientificamente leigos possam avaliar racionalmente as informações fornecidas? Temos boas razões para supor que juízes e jurados são capazes de compreender as inferências periciais, de modo a alcançar um "convencimento motivado"? E quando os peritos discordam, estaria o julgador cientificamente leigo em condições de decidir racionalmente?

A deferência judicial consiste na substituição do juízo do julgador por aquele de outrem. O fenômeno que nos interessa discutir aqui não diz respeito à atitude do julgador frente a autoridades normativas — sejam elas legislativas, administrativas, judiciais ou até mesmo de natureza privada. Estudos sobre a deferência de agentes controladores têm um lugar cativo nas investigações de constitucionalistas e administrativistas. Quero me concentrar aqui no conceito de deferência à autoridade epistêmica [1]. 

As epistemólogas jurídicas Marina Gascón e Carmen Vázquez criticam, com toda razão, o excesso de confiança nos peritos e nas ciências forenses [2] (nessa mesma linha de preocupação, abordamos, em outro artigo desta coluna, o problema dos erros periciais). Para Gascón, a deferência representa, em termos institucionais, "a instauração de um sistema de prova fundado na autoridade dos expertos", o que enfraquece, em termos epistêmicos, "a base cognitiva da decisão do tribunal".

Contudo, entendo que uma atitude de deferência à autoridade epistêmica pode ser não só inevitável, mas também mais racional do que se costuma supor. E mais: a ideia de deferência não deveria nos melindrar, pois ela constitui um fenômeno frequente e característico da própria justificação das decisões judiciais.

Vamos por partes. Primeiro, consideremos a parte que considero inevitável: a possibilidade, de natureza empírico-psicológica, de que os julgadores (juízes e jurados) possam efetivamente compreender as inferências de um experto.

Estudos da Psicologia Cognitiva mostram que, quando as pessoas não possuem os conhecimentos necessários para compreender o conteúdo de uma informação que lhes é transmitida, elas comumente recorrem a indicadores periféricos ou superficiais para avaliar evidências e argumentos [3]. Em geral, os seres humanos usam duas estratégias para processar as informações comunicadas por uma pessoa. A estratégia "periférica" consiste em buscar indicadores para confiar na pessoa que comunica a informação ou na própria informação comunicada. Por outro lado, a estratégia "central" consiste em trabalhar cuidadosamente com as informações obtidas.

Podemos aproximar as estratégias acima aos sistemas de tomada de decisão de Daniel Kahneman: o primeiro processo é rápido, automático e inconsciente (sistema um); o segundo é lento, esforçado e controlado (sistema dois) [4]. Em geral, as pessoas tendem a processar informações de maneira centralizada quando se sentem motivadas pelos recursos cognitivos de que dispõem ou quando o tópico é relevante para elas.

O uso de indicadores periféricos independentes do conteúdo tem sido frequente por jurados que decidem casos complexos — isto é, casos que envolvem provas científico-tecnológicas ou uma massa volumosa de informações [5]. Entrevistas com jurados leigos sugerem que eles acessam frequentemente indicadores superficiais de fiabilidade científica, como credenciais, para avaliar as informações fornecidas pelo especialista. Esses relatos são consistentes com as indicações de estudos experimentais: "Os jurados se envolvem em processamento periférico ao avaliar os depoimentos de especialistas e que as pistas periféricas adquirem significado adicional à medida que as questões científicas do caso se tornam mais complexas" [6].

Em estudo mais recente, Jonathan Koehler et al. identificaram os fatores que influenciam as decisões dos jurados leigos dos EUA em relação às evidências envolvendo o conhecimento oferecido por especialistas em ciência forense [7]. Os autores testaram a influência de três fatores: a validação científica do método utilizado pelo especialista (ou seja, se foi comprovado cientificamente, conforme sugerido pelo Teste Daubert); a formação e experiência do especialista; e a sofisticação tecnológica do método. A conclusão é que fatores relacionados à formação e experiência dos especialistas — ou seja, indicadores periféricos — exercem forte e consistente influência nas decisões dos jurados. Porém, fatores relacionados à qualidade epistêmica do método utilizado, cuja determinação implicaria algum tipo de exercício cognitivo controlado, exerceram influência limitada e inconsistente.

Os estudos supracitados indicam uma tendência dos jurados em considerar indicadores periféricos no processo de avaliação da prova pericial. Isso significa que os jurados não se envolvem de fato em um processo cognitivo de avaliação cuidadosa das generalizações e inferências usadas pelos especialistas ou qualquer outro elemento que requeira algum tipo de processamento cuidadoso, consciente e central.

Diante do exposto, seria possível levantar a objeção de que os juízes, ao contrário dos jurados, são mais preparados e capazes em termos cognitivos. A inevitabilidade da deferência, portanto, estaria restrita à figura dos jurados. Mas será?

Na verdade, como as questões de fato no sistema norte-americano são frequentemente julgadas pelo corpo de jurados, não há muito interesse em investigar as habilidades dos juízes com provas de qualquer natureza. Dada a falta de pesquisas sobre o tópico, pode ser plausível supor que os juízes sejam mais capazes cognitivamente do que os jurados. Afinal, eles foram aprovados em um processo seletivo competitivo que exigiu muito de suas habilidades intelectuais (interpretações, memórias, inferências); ou então são pessoas com capacidade reconhecida em virtude de muitos anos de experiência profissional. Por outro lado, os jurados são pessoas escolhidas aleatoriamente na comunidade. A trajetória intelectual e a experiência profissional são fatores irrelevantes para o papel que devem desempenhar. Além disso, há quem acredite que os juízes estariam mais capacitados para lidar com as evidências técnico-científicas do que os jurados, pois não atuam como julgadores em caráter eventual. Juízes acumulam experiência ao longo do tempo com a repetição do trabalho judicial — seriam uma espécie de "jogadores repetidos" [8].

Mas o ponto principal é que os estudos empírico-psicológicos também apontam que juízes e jurados não raciocinam de maneira tão diferente. Alguns estudos comparativos indicam que os juízes não são menos emocionais do que os jurados, por exemplo; e que o padrão de concordância e discordância entre eles, quando decidem os casos, não difere com a complexidade das evidências [9]. Essas semelhanças entre as habilidades cognitivas de juízes e jurados nos permitem traçar uma analogia importante para a presente discussão: se jurados não processam de forma centralizada as provas técnico-científicas; e se jurados e juízes são semelhantes em aspectos cognitivos relevantes; logo, é plausível supor que os juízes também não processam de forma centralizada as provas técnico-científicas. Essa é uma conclusão analógica que obviamente pode ser derrotada; no entanto, ela não se baseia em mera suposição, mas em dados empíricos e semelhanças relevantes.

Mas talvez a objeção mais importante não seja essa. A questão é se os juízes poderiam aprimorar suas habilidades cognitivas para entender as inferências apresentadas pelos especialistas. Se os juízes não tiverem a "memória de trabalho" necessária para entender as informações oferecidas pelo perito — e os dados indicarem que eles não têm — as informações não serão processadas central e conscientemente. A ideia é que os juízes possam adquirir (em termos potenciais) essa memória de trabalho. Quando a questão é reformulada dessa forma, os dados empírico-psicológicos a serem examinados são aqueles relacionados à aquisição e manutenção de expertise.

Então, seria suficiente educá-los? A resposta é "não", ou pelo menos "não, pois isso implica custos elevados e com resultados incertos". Se levarmos a sério a formação científica de juízes, a literatura que seria importante analisar seria aquela sobre aquisição de expertise e outros bons desempenhos. Para isso, seria necessário definir primeiro o nível de desempenho desejado dos juízes para que entendam as inferências dos peritos. Para adquirir uma expertise, os estudos mostram que é necessário manter experiências e práticas específicas. Muitas horas de treinamento são necessárias para desenvolver um conjunto de atividades denominado "prática deliberada" [10]. Executar repetidamente uma tarefa na rotina sem intenção de melhorar e sem receber feedback não contribui para a aquisição de expertise.

Mas o argumento que apresento aqui também tem um componente epistêmico-normativo. Entendo que a deferência não é necessariamente uma atitude irracional, e que ela assume um papel fundamental na justificação das decisões judiciais. Existem muitas maneiras de se tomar decisões racionais na vida e no Direito; e algumas delas não exigem uma compreensão do conteúdo do que é aceito como premissa. O modelo crítico de deferência epistêmica por parte dos juízes que defendo é não apenas racional, mas também coerente com um dos elementos que distinguem o processo de tomada de decisão no contexto judicial: o conceito de autoridade.

A ideia de procurar boas razões para confiar nos especialistas é representativa do trabalho de John Hardwig [11]. Em um conjunto de artigos sobre a autoridade de especialistas, o epistemólogo norte-americano desenvolveu uma estrutura útil para explicar como ocorre o apelo racional e a confiança nos especialistas. Essa estrutura permite-nos distinguir dois tipos de razões que estão em jogo e pode ajudar-nos a perceber quais são as razões que os juízes podem e devem ter em consideração quando decidir sobre o valor probatório das informações prestadas pelos peritos.

"Se A (juiz ou jurado) tem boas razões para acreditar que B (perito) tem boas razões para acreditar que p (as informações técnico-científicas), então A tem boas razões para acreditar que p."

A estrutura acima indica que a relação entre um tomador de decisão leigo e um especialista é sempre assimétrica — o especialista sabe mais, e suas razões para acreditar em uma hipótese probatória são diferentes. Mas o juiz tem a possibilidade e o dever político-jurídico de considerar criticamente as razões que ele possui para acreditar que o perito tem boas razões. E são essas razões de segunda ordem, por assim dizer, que funcionam, na prática, como indicadores periféricos [12].

Nessa linha de raciocínio, é possível dizer ainda que um modelo educacional para o tratamento da prova pericial, proposto por Gascón e Vázquez, é menos democrático se comparado a um modelo crítico deferencial que tenho defendido. Um modelo educacional aborda o problema da justificação a partir da perspectiva dos juízes e jurados. No entanto, um modelo deferencial crítico oferece uma justificativa para um número maior de pessoas. Não seria apenas o juiz educado, com formação técnico-científica, que teria a capacidade de entender as boas razões para acreditar no que os especialistas dizem (ou decidir em qual especialista confiar quando há um conflito), mas todos os participantes da sociedade — isto é, todos nós, destinatários finais de uma administração racional da justiça.

Mas é preciso dizer mais: a deferência aos especialistas não difere do tipo de deferência que ocorre quando os juízes decidem aplicar uma regra ou precedente contrário às suas crenças morais ou políticas. A suposição de que a deferência debilita a obrigação de motivar, como afirma Gascón, ignora o que acontece nos tribunais. Argumentos de autoridade e a consequente deferência do juiz são fenômenos que invadem os tribunais: eles ocorrem sempre que aplicamos regras ou precedentes como razões excludentes em relação às considerações de primeira ordem que possamos ter [13]. A deferência a interpretações técnico-científicas de fatos não parece ser um fenômeno tão diferente.

* Este texto é uma tradução e adaptação de um artigo da autora publicado no número 24 (2020) da revista Discusiones.

 


[1] Estudos sobre a deferência ao expert têm também lugar cativo na epistemologia. Este foi o tema do 15o Curso de Versão em Filosofia da Universidade de Colônia, Alemanha, realizado este mês em formato online ("Experts, Authority, and the Limits of Epistemic Autonomy")

[2] Gascón, M. Conocimientos expertos y deferencia del juez. DOXA, (39), 2016, pp. 347-365; Vázquez, C. De la prueba científica a la prueba pericial, Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 2015.

[3] Ver, originalmente, Petty, R. y Cacioppo, J. T. Communication and Persuasion: Central and Peripheral Routes to Attitude Change. New York: Springer-Verlag, 1986.

[4] Kahneman, D. Thinking, Fast and Slow. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011.

[5] Saks, M. y Spellman, B. The Psychological Foundations of Evidence Law. New York: NYU Press, 2016; Gertner, N. y Sanders, J. Alternatives to Traditional Adversary Methods of Presenting Scientific Expertise in the Legal System. Daedalus, 147 (4), 2018, pp. 135-151.

[6] Sanders, J. The Merits of Paternalistic Justification. Seton Hall Law Review, 33, 2003, p. 913.

[7] Koehler, J. et al.. Science, Technology, or the Expert Witness: What Influences Jurors’ Judgments About Forensic Science Testimony? Psychology, Public Policy, and Law, 22, 2016, pp. 401-413.

[8] Damaska, M. (1997). Evidence Law Adrift. New Haven: Yale University Press, p. 144.

[9] Saks, M. y Spellman, B. The Psychological Foundations of Evidence Law. New York: NYU Press, 2016, cap. 7.

[10] Ericsson, A. y Pool, R. Peak: Secrets From the New Science of Expertise. Boston: Mariner Books, 2017, pp. 97-100.

[11] Hardwig, J. Epistemic Dependence. The Journal of Philosophy, 82 (7), 1985, pp. 335-349.

[12] Para uma discussão sobre esses indicadores, v. Herdy, R. Appeals to Expert Opinion in High Courts. In Nogueira de Brito M. et al. (eds.). The Role of Legal Argumentation and Human Dignity in Constitutional Courts. Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 2019, pp. 23-46.

[13] Raz, J. Authority and Justification. In: Raz, J. (ed.) Authority. New York: New York University Press, 1990.

Autores

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    é professora de Teoria do Direito na UFRJ, doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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