Opinião

A pensão alimentícia e o crime de abandono material

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26 de agosto de 2021, 9h14

O ordenamento jurídico-constitucional pátrio confere especial proteção à família, que considera a base da sociedade (CF artigo 226) e estabelece que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, ao passo em que os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade (CF, artigo 229). O Código Penal prevê, nessa linha de ideias, crimes contra a assistência familiar, entre os quais se insere o crime de abandono material.

Previsto no artigo 244 do Código Penal, o crime de abandono material pode se configurar mediante duas condutas. A primeira delas é a recusa voluntária e injustificada em prover a subsistência de cônjuge, filho menor de 18 anos/inapto para o trabalho, ou ascendente inválido/maior de 60 anos, quer lhes privando dos recursos necessários ao seu sustento ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada. Também é possível cometer abandono material deixando-se, sem justa causa, de socorrer ascendente ou descendente gravemente enfermo.

Neste artigo, vamos nos limitar a discutir a configuração do tipo penal pelo não pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada a filho menor de 18 anos ou inapto para o trabalho. Quando o não pagamento de pensão alimentícia pode configurar o crime de abandono material?

Inicialmente, vale observar que o crime do artigo 244 é omissivo próprio e veicula em si um elemento normativo, isto é, se houver alguma justificativa válida para a falta de assistência material, não se há de cogitar da configuração típica. Do mesmo modo que o ordenamento processual civil admite a possibilidade de apresentação de justificativa para o inadimplemento na execução de alimentos ou no cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de prestar alimentos (CPC artigos 911 e 528), também o sistema de persecução penal pode reconhecer que a ausência de pagamento de pensão alimentícia encontra fundamento em circunstâncias fáticas que a justifiquem, afastando a existência de crime.

Além disso, é importante salientar que, quando o Código Civil pensa em alimentos, está falando mais do que de mera subsistência. Os alimentos têm como finalidade suprir as necessidades do alimentando, sem que isso signifique seu enriquecimento ou empobrecimento do devedor. Abrangem não apenas a alimentação (como o nome pode levar a crer), mas também vestuário, habitação, assistência médica, educação e instrução, ou seja, todo o necessário à manutenção da subsistência. Apenas excepcionalmente os alimentos vão se prestar a garantir apenas a subsistência (quando a necessidade resultar de culpa de quem pleitear os alimentos, conforme o §2º do artigo 1.694 do Código Civil).

Assim, o simples inadimplemento de pensão alimentícia não tem o condão de configurar o crime do artigo 244 do Código Penal. É preciso mais: a) que o inadimplemento seja injustificado [1]; e b) que prive o beneficiário do necessário à sua subsistência [2].

Mostra-se inquietante, entretanto, a conformação da previsão em estudo quando se leva em conta que o Direito Penal deve ser entendido como a ultima ratio do sistema jurídico. Ora, se o inadimplemento do mais, que são os alimentos, já é apto a ensejar a prisão civil do devedor (conforme a autorização constitucional e o artigo 528, §3º do CPC), há razoabilidade em ainda se prever o crime de abandono material?

Nos parece que não.

O débito alimentar recente pode ser cobrado judicialmente, até mesmo mediante a constrição da liberdade do devedor. O inadimplemento da obrigação alimentar pode ensejar a prisão civil do devedor, prisão a ser cumprida em regime fechado por até três meses. O devedor dos alimentos se vê, assim, coagido ao cumprimento da obrigação.

Seria o Direito Penal necessário e eficaz para garantir a paternidade responsável? Devendo o Direito Penal ser encarado como ultima ratio, não estaria essa responsabilização criminal contrariando o princípio da intervenção mínima?

O Direito Penal somente pode atuar quando os demais ramos do Direito não o fizerem de forma adequada, quando não foram capazes de tutelar de maneira devida os bens jurídicos protegidos. Ao se analisar a tutela civil dada ao devedor dos alimentos, pode-se notar que este o faz de maneira suficiente. Isso porque, sendo permitida a imediata prisão do alimentante inadimplente, ela se mostra mais eficaz do que a via penal. Na esfera criminal, há necessidade de ação penal e o crime é cumprido em regime semiaberto ou aberto, uma vez que o delito é punido com detenção.

Ora, se o intuito maior da prisão do devedor seria compeli-lo ao seu pagamento, evidente que a esfera civil se mostra mais eficiente, pois a prisão pode ser decretada de imediato, independentemente de processo-crime e mais, com prisão a ser cumprida em regime fechado.

Dessa forma, tem-se que o Direito Penal não seria o meio adequado à tutela da paternidade responsável e dos direitos do alimentando, eis que o Direito Civil se mostra suficiente à sua proteção.

Não significa que estamos incentivando ou fechando os olhos para o abandono familiar, apenas temos que não seria o Direito Penal o meio necessário e adequado à sua tutela.

Até porque, a partir do momento em que se utiliza da esfera penal, pode-se acabar por contribuir com a maior violação da já fragilizada relação entre alimentante e alimentado.

Outra "vantagem" do Direito Civil em relação ao Direito Penal é a possibilidade da perda do poder familiar por decisão judicial, o que não pode ocorrer na área criminal, vez que o crime do artigo 244 é punido com detenção e somente se admite a perda do poder familiar a crime punido com reclusão.

Assim, o inadimplemento da pensão alimentícia, por mais abjeto que possa se demonstrar, tem melhor solução em âmbito do Direito de Família, não cabendo ao Direito Penal, que deve ser utilizado quando os demais ramos do Direito falharem, ser utilizado como forma de impelir o devedor a cumprir com sua obrigação.

Saliente-se que não se está afastando a fundamental importância da família (entendida como bem jurídico penalmente tutelado). No entanto, a tutela desse valioso bem jurídico deve ser feita com base nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

Tem-se, portanto, que a criminalização da conduta de não pagamento da pensão alimentícia, antes de compelir o devedor a adimplir com sua obrigação, acaba por contribuir para maior segregação familiar.

Nesse contexto, conclui-se que a tipificação penal do abandono material, em caminho oposto de salvaguardar a família, acaba por lesioná-la. E ademais, o Direito de Família é certamente mais eficaz para tutelar tais questões, não se podendo utilizar o Direito Penal quando outros ramos do Direito se demonstrarem suficientes.

 


[1] Parece-nos que a (in)justiça do inadimplemento é matéria a ser aferida judicialmente, sob o crivo do contraditório.

[2] Segundo Cléber Masson, "não se exige […] efetivo prejuízo à vítima, Prevalece o entendimento no sentido de quer o crime de abandono material subsiste na hipótese em que a subsistência […] sejam garantidos por terceira pessoa" (Código Penal Comentado, 6ª ed – São Paulo: Método, 2018, pág. 970).

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