Garantias do Consumo

Necessária atualização do CDC no comércio eletrônico e direito de arrependimento

Autor

  • Antonia Espíndola Longoni Klee

    é professora advogada doutora e mestre em Direito pela UFRGS especialista em Direito Internacional pela UFRGS professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFPEL professora convidada do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais da UFRGS membro da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB/RS triênio 2019-2021 e membro da Diretoria Nacional do Brasilcon.

25 de agosto de 2021, 8h00

A essência ou a verdadeira natureza da proteção do consumidor no comércio eletrônico está em assegurar à parte mais vulnerável da relação contratual o direito de arrependimento. "Conceder ao consumidor um prazo para reflexão, dentro do qual possa manifestar seu arrependimento, sem necessidade de justificá-lo, deixando sem efeito o contrato, sem qualquer responsabilidade" [1], foi uma maneira encontrada pelo legislador para garantir um direito mínimo do consumidor, e constitui "a peça mestra" [2] de proteção nos contratos a distância.

Desde a defesa da tese de doutorado concluída em 2013 no PPGD da UFRGS [3], almeja-se o reforço do direito de arrependimento do consumidor que celebra contrato a distância e por meios eletrônicos com seus fornecedores na sociedade de consumo. O desenvolvimento e o avanço da tecnologia da informação possibilitaram o consumo na era digital em escala mundial. Esse fenômeno, que aproxima pessoas e empresas, consumidores e fornecedores na sociedade de consumo globalizada, exige a reflexão sobre alguns conceitos jurídicos e sua adequação ao meio eletrônico.

As diretivas europeias podem servir de inspiração a essa necessária adequação e atualização do CDC. Concorda-se com o que afirmam Marques e Miragem quanto ao Projeto de Lei 3.514/2015 [4]: "No seu estágio atual de tramitação, permite, inclusive, sugerirmos algumas modificações e temas não tratados, como o dos serviços e produtos inteligentes (…) com algum foco especial nos serviços de consumo" [5]. Faz-se necessário o acréscimo de alguns dispositivos acerca dos produtos (ou conteúdos) e serviços digitais, a que Marques e Miragem denominam "serviços simbióticos" [6].

Com o aumento das transações nos meios digitais, o consumidor nem sempre se sente seguro. "Um dos principais fatores que contribui para a falta de confiança dos consumidores traduz-se na incerteza relativamente aos seus direitos contratuais principais e a ausência de um regime contratual claro para os conteúdos ou serviços digitais" [7]. Nesse sentido, as cláusulas dos contratos de consumo na era digital devem ser objetivas, claras, esclarecedoras e informativas. O direito à informação do consumidor é o que garante a confiança no meio eletrônico impessoal e desumanizado [8].

Retiram-se do artigo 2º da Diretiva (UE) 2019/770 [9], que entrou em vigor no último dia 1º de julho, alguns conceitos: 1) conteúdo digital: dados produzidos e fornecidos em formato digital; 2) serviço digital: a) um serviço que permite ao consumidor criar, tratar, armazenar ou aceder a dados em formato digital; ou b) um serviço que permite a partilha ou qualquer outra interação com os dados em formato digital carregados ou criados pelo consumidor ou por outros utilizadores desse serviço.

Segundo a Diretiva 2019/770, são conteúdo e serviço digitais: programa informático, aplicativo, arquivos de vídeo, de áudio e de música, jogo digital, livro eletrônico e outras publicações eletrônicas, bem como serviços digitais que permitem a criação, o tratamento ou o armazenamento de dados em formato digital ou o acesso a eles, nomeadamente o software enquanto serviço, de que são exemplo o compartilhamento de arquivos de vídeo e áudio e outro tipo de hospedagem de arquivos, o processamento de texto ou jogos disponibilizados no ambiente de computação em nuvem, bem como as redes sociais [10].

Buscando-se inspiração da Diretiva 2011/83/UE, esses produtos e serviços não são passíveis de direito de arrependimento pelo consumidor [11], por não permitirem o status quo ante — não é possível restituí-los —, e diferem dos seguintes: conteúdos digitais fornecidos num suporte material, tais como DVD, CD, pen drive ou chave USB e o cartão de memória, bem como do próprio suporte material, desde que funcione exclusivamente como meio de disponibilização de conteúdo digital [12].

Os produtos e serviços digitais podem ser transmitidos — copiados, reproduzidos, disponibilizados e acessados — exclusivamente por meios eletrônicos, como a internet [13]. A sua devolução por parte do consumidor que se arrepende da contratação fica prejudicada, pois não se pode devolver ao fornecedor produtos ou serviços que já foram prestados.

É necessário dispor sobre o direito de arrependimento do consumidor de forma mais clara e adequada ao uso da tecnologia. Quando a contratação por meio eletrônico tiver por objeto bem imaterial e incorpóreo, em que é possível ao consumidor copiar, reproduzir ou acessar o conteúdo digital — e em que é impossível devolver o bem ou se desfazer do serviço já prestado —, não deve ser permitido ao consumidor se arrepender do contrato, injustificadamente, e receber a restituição da totalidade do valor pago.

A Diretiva 2011/83/EU impôs deveres de informar específicos ao meio e ao conteúdo digital: determinou que o fornecedor, antes de permitir que o consumidor descarregue e/ou faça a transmissão do conteúdo digital para seu computador, informe o consumidor sobre as especificidades técnicas dos conteúdos digitais. O objetivo é munir o consumidor de subsídios para que não adquira um produto ou um serviço que não seja compatível com o seu computador — e por isso o programa não venha a rodar —, e o consumidor não possa se arrepender de ter adquirido um produto ou um serviço do qual não possa usufruir [14].

A Diretiva 2011/83/UE admite certas exceções ao exercício do direito de arrependimento dos consumidores na era digital [15] que devem servir de inspiração para o reforço do direito de arrependimento do consumidor brasileiro nos contratos celebrados por meios eletrônicos. Sustenta-se que o ordenamento jurídico brasileiro adote algumas exceções ao direito de arrependimento do consumidor, a serem incluídas no PL 3.514/2015, com o objetivo de assegurar o exercício desse direito, quando a situação fática permitir. Essa sugestão de alteração do artigo 49 do CDC visa a um reforço do direito de arrependimento do consumidor, no sentido de que o fornecedor respeite e resguarde o direito de reflexão do consumidor quando este quiser e puder exercer, sem que o fornecedor se sinta lesado. Objetiva-se evitar a banalização do direito de arrependimento na sociedade de consumo massificada pelos meios de comunicação a distância e eletrônicos, de maneira que não seja mais respeitado pela sociedade.

O PL 3.514/2015, ao propor nova redação ao artigo 49 do CDC, não enfrentou a questão do fornecimento de conteúdos e serviços digitais. As situações previstas nas Diretivas 2019/770, 2019/771 [16] e 2011/83/UE podem servir de inspiração para o legislador brasileiro. Por isso, é indispensável a inclusão de alguns dispositivos acerca do consumo de conteúdos e serviços digitais no PL 3.514/2015, para que o CDC disponha de norma que discipline o direito de arrependimento nos contratos na era digital, notadamente dispondo sobre a não aplicação desse direito no caso de compra de determinados produtos e serviços, sob pena enfraquecer ou fragilizar essa garantia, com o argumento de que o consumidor está abusando de seu direito. É preciso pensar no exercício do direito de arrependimento do consumidor como um direito potestativo e irrenunciável, evitando casuísmos [17].

Sustenta-se que o direito de arrependimento não pode ser exercido, desde que previamente informado pelo fornecedor ao consumidor, em determinados casos: a) contrato de prestação de serviço, depois de o serviço ter sido integralmente prestado, caso a execução tenha iniciado com o consentimento expresso do consumidor; b) fornecimento de produto fabricado segundo a especificação do consumidor ou claramente personalizado, desde que a restrição ao direito de arrependimento esteja destacada no momento da contratação; c) fornecimento de disco, gravações de áudio ou de vídeo seladas, ou de programa informático selado de que tenha sido retirado o selo após a entrega ou que possam ser baixados (download) por meio eletrônico de acesso à internet; d) fornecimento de conteúdo digital, tais como arquivo de computador, gravações de áudio e vídeo, programa informático, que não sejam fornecidos em um suporte material e, sim, eletronicamente (streaming), se a execução tiver início com o consentimento expresso do consumidor, já que o conteúdo pode ser baixado (download) e/ou reproduzido imediatamente para uso permanente.

O legislador brasileiro precisa incluir alguns dispositivos sobre os contratos de fornecimento de conteúdos digitais ou à prestação de serviços digitais no PL 3.514/2015, com o objetivo de reforçar a proteção do consumidor no meio eletrônico e estabelecer o equilíbrio entre o elevado nível de proteção do consumidor e a promoção da competitividade entre fornecedores. Esses "serviços no mundo digital são múltiplos e complexos, e hoje há serviços conectados ou incluídos nos chamados 'produtos digitais' ou 'inteligentes'" [18].

 

Referências bibliográficas
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil: da extinção do contrato: artigos 472 a 480. Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 6, t. 2.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3.514/2015. Altera a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar as disposições gerais do Capítulo I do Título I e dispor sobre o comércio eletrônico, e o artigo 9º do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), para aperfeiçoar a disciplina dos contratos internacionais comerciais e de consumo e dispor sobre as obrigações extracontratuais. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1408274&filename=PL+3514/2015. Acesso em: 26 jul. 2021.

BRASIL. Lei n. 14.010, de 10 de junho de 2020. Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14010.htm. Acesso em: 27 jul. 2021.

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KLEE, Antonia Espíndola Longoni. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

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ROBERTO, Wilson Furtado. O comércio eletrônico nos tribunais brasileiros. In: CIAMPOLINI NETO, Cesar; WARDE JUNIOR, Walfrido Jorge (Coord.). O direito de empresa nos tribunais brasileiros. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 327-416.

STIGLITZ, Gabriel. O direito contratual e a proteção jurídica do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 184-199, mar. 1992.

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UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32011L0083&from=en . Acesso em: 26 jul. 2021.

 


[1] STIGLITZ, Gabriel. O direito contratual e a proteção jurídica do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 189, mar. 1992.

[2] CALAIS-AULOY, Jean. Venda a domicílio e venda à distância no direito francês. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 1, n. 28, p. 65, 1992.

[3] Ver KLEE, Antonia Espíndola Longoni. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[4] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3.514/2015.

[5] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. "Serviços simbióticos" do consumo digital e o PL 3.514/2015 de atualização do CDC. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 132, p. 91-118, nov./dez. 2020.

[6] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. "Serviços simbióticos" […].

[7] Considerando (5). UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2019/770.

[8] Sobre a confiança no meio eletrônico, ver o belíssimo livro de MARQUES, Claudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

[9] Artigo 2º. UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2019/770.

[10] Exemplos retirados do Considerando (19). UNIÃO EUROPEIA. Diretiva (UE) 2019/770.

[11] Ao comentar o artigo 473 do CC/2002, Aguiar Júnior aponta para uma situação não regulada pelo CDC: é o caso do contrato de fornecimento de serviço, "quando a prestação do fornecedor, por já ter sido feita a benefício do consumidor, é irrestituível". O autor defende a não aplicação do direito de arrependimento do consumidor, a esse caso. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil: da extinção do contrato: artigos 472 a 480. Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 6, t. 2, p. 297.

[12] Exemplos retirados do Considerando (20). UNIÃO EUROPEIA. Diretiva (UE) 2019/770.

[13] PARENTONI, Leonardo Netto. Direito de arrependimento na Internet e estabelecimento virtual. Repertório IOB de jurisprudência: civil, processual, penal e comercial, São Paulo, n. 16, p. 514, 2. quinz. ago. 2006.

[14] Considerando (19) da Diretiva 2011/83/EU.

[15] Considerando (49) da Diretiva 2011/83/EU.

[16] UNIÃO EUROPEIA. Diretiva (UE) 2019/771.

[17] Um exemplo de casuísmo é a inclusão do artigo 49-A no texto do PL 3.514/2015, relativo à compra e venda de passagens aéreas. Outro casuísmo estava presente no artigo 8º da Lei n. 14.010/2020, não mais em vigor. BRASIL. Lei n. 14.010, de 10 de junho de 2020.

[18] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. "Serviços simbióticos" […].

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    é professora, advogada, doutora e mestre em Direito pela UFRGS, especialista em Direito Internacional pela UFRGS, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFPEL, professora convidada do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais da UFRGS, membro da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB/RS, triênio 2019-2021 e membro da Diretoria Nacional do Brasilcon.

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