Opinião

O que é a reforma administrativa?

Autor

  • Pedro Carneiro Sales

    é mestrando em Direito e Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa/Portugal especialista em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito e em Direito Eleitoral pela mesma instituição professor de Direito Administrativo e Direito Constitucional advogado sócio do escritório Menezes Santos & Sales Advogados associado efetivo do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB-BA) e ex-auditor do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol da Bahia.

24 de agosto de 2021, 14h09

Com a promessa do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, de colocar em votação, em um futuro próximo, a PEC nº 32/2020, que trata sobre a propagada reforma administrativa, impõem-se alguns esclarecimentos sobre a proposta que tem deixado preocupados alguns servidores públicos.

Trata-se de uma obra engendrada pelo governo federal e encaminhado para a Câmara, que teve parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). O texto prevê a aplicação das alterações apenas para novos ingressantes no funcionalismo público, de modo que não alcançariam os servidores públicos que já estejam investidos nos respectivos cargos quando da eventual promulgação da emenda constitucional.

Entre as alterações mais relevantes propostas estão o fim da estabilidade para algumas carreiras do funcionalismo público, a extinção das progressões automáticas e de diversos benefícios, que costumam ser grandes atrativos para as carreiras públicas.

O fim da estabilidade, na verdade, aplicar-se-ia tão somente para aquelas carreiras que não fossem consideradas típicas de Estado. A definição dessas carreiras típicas de Estado ficaria a cargo de lei posterior e os servidores a elas pertencentes — que exercem as atividades fins do Estado, ou seja, tarefas exclusivamente públicas e indispensáveis para a representação e a existência do Estado (caso de diplomatas e auditores, por exemplo) — continuariam a conquistar a estabilidade após três anos de serviço, exatamente como já acontece atualmente.

Os demais servidores, que ocupariam os chamados cargos por prazo indeterminado, cargos por prazo determinados e cargos de liderança e assessoramento, portanto, deixariam de ter estabilidade. Os servidores pertencentes aos dois primeiros grupos — que desempenhariam as atividades administrativas, técnicas e especializadas —, entretanto, continuariam a ingressar nos quadros do poder público via concurso público, enquanto os "líderes" e "assessores" corresponderiam aos chamados cargos de comissão ou de confiança existentes hoje, nomeados livremente pela autoridade competente ou via processo seletivo simplificado.

Quanto a essas alterações, a grande celeuma gira em torno da contraposição entre a eficiência que se poderia ganhar com o fim da estabilidade e, portanto, da acomodação de alguns servidores públicos, e a perda da independência e autonomia dos servidores públicos, que poderiam, por exemplo, sofrer pressões políticas e passar a ter medo de denunciar malversações do dinheiro público praticadas por seus superiores.

A um porque a falta de eficiência de alguns servidores públicos não é ocasionada necessariamente pela estabilidade, mas, sim, pela omissão do Congresso Nacional, que nunca editou lei complementar para regulamentar o inciso III do artigo 41 da Constituição da República de 1988, que foi introduzido pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998, também chamada naquela época de reforma administrativa. Segundo esse dispositivo constitucional, o servidor público, mesmo estável, pode perder o cargo em avaliação periódica de desempenho, cujo procedimento deveria ser regulamentado por lei complementar. Acaso o Parlamento cumprisse seu dever, regulamentando a matéria, o servidor ineficiente já poderia ser demitido, sem que fosse necessário para isso retirar a sua estabilidade, submetendo-o ao risco de assédio e à perda de sua independência.

Portanto, o debate público de hoje, quanto a esse ponto, é mais uma exibição do "museu de grandes novidades" chamado Brasil.

A PEC nº 32/2020 segue a lista de inovações com a criação do vínculo de experiência, que é de dois anos para as carreiras típicas de Estado e de um ano para as demais. Em quaisquer dos casos, somente serão efetivados aqueles mais bem avaliados, o que pode representar um avanço, já que ocorrerá uma nova filtragem pela qual passarão apenas aqueles que, já exercendo os desígnios do cargo para o qual foram aprovados em concurso, demonstrarem maior aptidão. Essa medida é positiva, porque não são poucos os "concurseiros" que se atraem apenas por salários e benefícios do funcionalismo público, mas que sequer têm certeza de sua vocação para o múnus escolhido. Os que não desempenharem satisfatoriamente simplesmente não serão efetivados.

Outra alteração positiva é o fim de privilégios como licença-prêmio (folga de três meses após cinco anos de trabalho, que ainda existe em alguns entes federativos), aumentos retroativos, férias superiores a 30 dias (aplicável apenas em algumas carreiras), adicional por tempo de serviço, aposentadoria compulsório como forma de sanção (também existente apenas em algumas carreiras), parcelas indenizatórias sem previsão legal, incorporação de valores pelo exercício de funções ou cargos e promoções baseada apenas em tempo de serviço.

Esses são os famosos "penduricalhos", sem paralelo no mercado de trabalho privado, que causam uma nefasta distorção, contribuindo com o estímulo trocado que tira bons quadros do setor que produz a riqueza (setor privado) e os coloca no setor que consome a riqueza (setor público). É realmente preciso corrigir essa assimetria, que, além de ser um dos entraves ao desenvolvimento nacional, é moralmente condenável. O funcionalismo público não pode ser uma casta especial, que mereça, por exemplo, mais tempo de férias que os trabalhadores do setor produtivo.

A PEC da reforma administrativa, no entanto, traz uma perigosa concentração de poderes para o presidente da República, ao autorizar a criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicos, além da criação, fusão, transformação ou extinção de ministérios, tudo via decreto. Ou seja, retira-se a necessidade de chancela do Legislativo, na interação harmoniosa entre os poderes, que é necessária para o funcionamento do sistema de freios e contrapesos. Em tempos de preocupação com a defesa da democracia, esse ponto da reforma com traços autoritários merece atenção redobrada.

Por fim, não deixa de chamar atenção a exclusão da reforma dos magistrados, membros do Ministério Público, parlamentares e militares. A desculpa apresentada pelo governo foi a necessidade de apresentação pelos chefes de cada um dos poderes e do Ministério Público da proposta de reforma para cada respectiva carreira e que os militares tiveram a carreira alterada pela reforma da Previdência. No entanto, trata-se de nítida lereia para esconder o real motivo da exclusão: o receio de dessagrar classes que sabidamente exercem grande pressão no universo político.

Quanto aos juízes, membros do Ministério Público e parlamentares, não haveria necessidade de iniciativa por cada chefe para legitimar que a reforma os atingisse, uma vez que se trata de proposta de emenda à Constituição. A própria constituição disciplina o processo de sua tramitação em seu artigo 60, prevendo a possibilidade de iniciativa do presidente da República (inciso II), sem que haja limitações quanto à possibilidade de suas disposições alcançarem os demais poderes. A competência seria de cada chefe se se tratasse de um projeto de lei ordinária ou complementar, a depender do caso, sobre temas específicos previstos no texto constitucional.

Já com relação aos militares, o fato de terem sido contemplados pela reforma da previdência também não poderia servir de fundamento. É que, naquela reforma, os militares receberam diversas concessões. Tais mudanças, portanto, foram em sentido oposto ao espírito da PEC nº 32/2020, que visa a cortar privilégios, diminuindo distorções e assimetrias com relação à iniciativa privada e, assim, ampliando a eficiência do funcionalismo público.

É possível perceber, portanto, que a reforma administrativa traz alguns aspectos positivos e outros negativos, carecendo de maior debate na sociedade e no próprio parlamento para seu aperfeiçoamento.

A reforma para ser boa deve encontrar um equilíbrio entre a valorização e a garantia de independência aos servidores públicos e o ganho de eficiência administrativa, com uma similaridade maior entre estes e os trabalhadores do setor privado. Mas a isonomia também deve ser buscada internamente porque a reforma justa é aquela que alcança a todos, não havendo justificativa para preservar os privilégios e regalias da elite do funcionalismo público.

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    é mestrando em Direito e Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa/Portugal, especialista em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito e em Direito Eleitoral pela mesma instituição, professor de Direito Administrativo e Direito Constitucional, advogado, sócio do escritório Menezes, Santos & Sales Advogados, associado efetivo do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB-BA) e ex-auditor do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol da Bahia.

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