Direito Eleitoral

O combate à violência política de gênero como fortalecimento da democracia

Autores

  • Marina de Mello Gama

    é mestre em Democracia e Bom Governo pela Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (USAL/ES) secretária adjunta de Assuntos Jurídicos e da Justiça da Prefeitura de Cotia (SP) pesquisadora do Grupo Gênero y Política da Associação Espanhola de Ciência Política e Administração (AECPA) e membro da Associação Visibilidade Feminina.

  • Thalita Abdala Aris

    é corregedora geral do Município de São Paulo chefe de gabinete da Controladoria Geral do Município doutoranda em Direito pela Universidade de Salamanca (USA/ES) e pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito de Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo professora convidada do curso de pós-graduação das Universidades Mackenzie e FMU membro do Observatório de Direito Eleitoral da OAB-SP Abradep Ocla Ceapro IBDP e Ibdee.

23 de agosto de 2021, 8h00

Nos últimos tempos, os episódios de violência política de gênero têm ganhado destaque na mídia. Apesar de apresentarem algumas variantes (diferentes partidos políticos, ideologias, esferas de atuação etc.), a semelhança dos casos se dá quanto ao seu alvo: as mulheres na política. Longe de se tratar novidade, a hostilidade à participação feminina na política se faz presente desde a conquista do direito ao voto feminino, como narra Diva Nazário [1].

Nesse sentido, diante desse histórico depreciativo à participação das mulheres na política, somado ao reduzido número de eleitas até hoje — não obstante as ações afirmativas existentes [2] , fato é que, por muito tempo, os episódios que envolviam violência política de gênero não eram sequer notados. Tratava-se de condutas desrespeitosas, porém, naturalizadas dentro desse ambiente político avesso às mulheres. A título ilustrativo, vale lembrar que apenas em 2016 o Senado Federal passou a ter um banheiro feminino para suas parlamentares.

Com os olhos voltados à participação feminina na política, passou-se, então, a se notar situações que implicam violência de gênero.

De fato, a violência política de gênero pode ser descrita por comportamentos dirigidos especificamente contra as mulheres que visam a desestimular, impedir ou restringir seu acesso ao espaço da política institucional, tanto no contexto do processo eleitoral quanto no período de seus mandatos. Esse tipo de violência de gênero é cada vez mais reconhecida ao redor do mundo, especialmente na América Latina, e ocorre em diversos espectros ideológico-partidários e cenários políticos.

Alguns países latino-americanos como Bolívia, Argentina, Equador e México possuem legislações que visam ao combate à violência política de gênero [3]. Ressalte-se que a Bolívia foi um dos países pioneiros a ter uma legislação sobre o tema, tendo aprovado, em 2012, norma que tipificou como crime o assédio e a violência política contra a mulher, como estratégia de tentar combater o fenômeno que era crescente no país (Lei nº 243/2012).

O conceito do que consiste violência política de gênero é amplo e inclui tipos de violência física, econômica, psicológica e simbólica, além de práticas adicionais, como cerceamento da liberdade de expressão, intimidação na participação de espaços públicos e na atuação política, além da disseminação de fake news. Dessa forma, a violência política tem semelhanças com os discursos de ódio, já que usa mecanismos de poder e opressão contra pessoas com determinada identidade, como forma de reafirmar ameaças contra hierarquias tradicionais.

Além disso, é considerada como uma possível forma de impedir ou diminuir a participação das mulheres como candidatas e, posteriormente, a atuação em seus mandatos, retirando-as do debate político, da disputa por posições, podendo até mesmo ensejar o abandono de seus mandatos. Assim, ainda que a violência possa ser pontualmente dirigida contra uma mulher em particular, tais ações tem por consequência atingir e intimidar a participação de outras mulheres na política, passando, ainda, uma mensagem social de que elas não deveriam participar de determinado espaço [4].

Como destacam Danielle Gruneich e Iara Cordeiro, a violência política de gênero é uma das causas da sub-representação no parlamento e nos espaços de poder e decisão, sendo que as mulheres sofrem violência "antes de concorrerem, quando concorrem e também quando são eleitas" [5].

No Brasil, importante passo se deu com a edição da Lei nº 14.192/2021, tendo-se, pela primeira vez no país, a regulamentação do tema. Ainda que o normativo possa, com o tempo e maior maturação a respeito, sofrer futuras alterações e adequações que possam se fazer necessárias, fato é que a questão passou a ter a atenção do legislador, mediante alterações promovidas no Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965); na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/1995); e na Lei da Eleições (Lei nº 9.504/1997).

Nesse sentido, a Lei nº 14.192/2021 trouxe a conceituação da violência política contra a mulher como "toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher" (artigo 3º). A norma prevê ainda que constituem atos de violência política contra a mulher "qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício dos seus direitos e das suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo", determinando que as autoridades competentes priorizarem o "imediato exercício do direito violado, conferindo especial importância às declarações da vítima e aos elementos indiciários".

O aludido normativo possui como um dos objetivos punir práticas que reduzam a condição da mulher na política, que estimulem a discriminação em razão do sexo ou também em relação à raça e etnia. Ao acrescentar o artigo 326-B ao Código Eleitoral, tipificou como crime eleitoral "sediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo", estabelecendo pena de reclusão de um a quatro anos e multa, além de trazer hipóteses de aumento de pena (mulher gestante, maior de 60 anos ou com deficiência).

Como se observa, as alterações promovidas pela Lei nº 14.192/2021 ampliam os instrumentos para combate à violência de gênero e à discriminação político-eleitoral contra as mulheres em todos os momentos relacionados ao exercício dos direitos políticos (não apenas durante a campanha eleitoral), tornando, ainda, crime a divulgação de notícias falsas, com conteúdos inverídicos sobre os partidos políticos e as candidatas.

Acreditamos que com a criação da norma se faça possível buscar novos modelos para solução do problema, tratando-se de um pontapé inicial para que os atores políticos passem a se debruçar sobre a questão, evitando-se, ainda, os casos mais graves de violência política de gênero até então verificados no país, sem correspondente punição.

Em debate sobre o tema promovido, em 2020, pela Câmara dos Deputados, foram trazidos dados da ONU Mulheres sobre a questão: "82 % das mulheres em espaços políticos já sofreram violência psicológica; 45% já sofreram ameaças; 25 % sofreram violência física no espaço parlamentar; 20%, assédio sexual; e 40% das mulheres afirmaram que a violência atrapalhou sua agenda legislativa" [6].

O respeito à participação feminina nos espaços de poder está intrinsecamente ligado ao regular exercício da cidadania, à democracia, ao olhar da sociedade como um todo, sendo esta composta por homens e mulheres, que devem ser tratados igualmente. Episódios de violência de gênero na política não devem ser mais admitidos.

Com efeito, os fatos que excluem as mulheres dos espaços públicos e de poder constituem violação aos seus direitos políticos. Ou seja, trata-se de violação a direito fundamental resguardado tanto pela Constituição Federal quanto por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário [7]. Trata-se, assim, de afronta à compromissos nacionais e internacionais que afetam diretamente a própria democracia.

Dos diversos episódios de violência politica de gênero verificados por todo país, nos mais diferentes espaços, ideologias, partidos ou posição política, registre-se o da parlamentar Marielle Franco, eleita para o cargo de vereadora no Rio de Janeiro e assassinada no exercício de seu mandato por motivações políticas, como apontado nas investigações. Recentemente, a parlamentar Damiris Rinarlly, vereadora do município de Conselheiro Lafaiete (MG), denunciou ter sofrido ameaças de morte e perseguição em razão do exercício de seu mandato. A jovem vereadora é a única mulher entre os representantes da Câmara Municipal de Lafaiete, sendo bastante atuante na defesa de bandeiras políticas relacionadas justamente ao enfrentamento da violência doméstica e do feminicídio, bem como à defesa da comunidade LGBTQIA+, à luta antirracista e à preservação e efetivação de direitos humanos.

Dessa forma, como se vê, a maior participação feminina nos espaços de poder e a promoção da igualdade de gênero nesse ambiente político-eleitoral constituem elementos essenciais para que se mitigue a violência perpetrada contra as mulheres. Mais do que isso, a recente regulamentação a respeito da violência política de gênero corresponde a importante instrumento para incentivar a criação de uma nova cultura na qual não mais se admita a discriminação, a hostilidade, entre outras posturas depreciativas e violentas dirigidas às mulheres na política. A tipificação da conduta garante que sejam punidas as ações que constranjam as mulheres no exercício de suas funções públicas. Assim, a promoção de esforços coletivos na busca por ferramentas que impeçam a violência política de gênero implica evidente fortalecimento da própria democracia, tendo-se uma sociedade mais justa e igualitária, o que se transmuda em inequívocos benefícios para a coletividade como um todo.

 


[1] Durante o processo de busca das mulheres por se tornarem cidadãs em sua plenitude, participando da vida pública, os argumentos de alguns políticos, à época, contrários à medida, eram execráveis. A título exemplificativo, o então deputado Tito Lívio sustentava que as mulheres tinham "cérebros infantis", sendo portadoras de "inferioridade mental" e "retardo evolutivo" (NAZÁRIO, Diva Nolf. Voto feminino e feminismo. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, pp. 199-201).

[2] Conforme Leis nºs. 9100/1995, 9.504/1997, 12.034/2009 e 13.165/2015.

[3] Dados obtidos no Portal eletrônico "Proyecto de Reformas Políticas en América Latina". Recuperado de https://reformaspoliticas.org/violencia-politica-contra-las-mujeres-2/ . Em 16/07/2021.

[4] KROOK, Mona Lena y RESTREPO SANIN, Juliana. Género y violencia política en América Latina. Conceptos, debates y soluciones. Polít. gob [online]. 2016, vol.23, n.1 [citado 2021-07-18], pp.127-162. ISSN 1665-2037. Disponível em: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1665-20372016000100127#B22.

[5] "Violência política de gênero: das violências invisíveis aos aspectos criminais". Por Danielle Gruneich e Iara Cordeiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-03/gruneich-cordeiro-violencia-politica-genero.

[7] Destaca-se aqui o Pacto de San José da Costa Rica.

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    é mestre em Democracia e Bom Governo pela Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (USAL/ES), secretária adjunta de Assuntos Jurídicos e da Justiça da Prefeitura de Cotia (SP), pesquisadora do Grupo Gênero y Política da Associação Espanhola de Ciência Política e Administração (AECPA) e membro da Associação Visibilidade Feminina.

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    é doutoranda em Direito pela Universidade de Salamanca (Usal/ES) e pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito de Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora da pós-graduação das Universidades Mackenzie e FMU, membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SP, da Abradep, do OCLA e da Visibilidade Feminina e corregedora-geral do município de São Paulo.

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